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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

As coisas no BRICS andam um pouco confusas, para dizer o mínimo...

 Heads of state from Brazil, Russia, India, China and South Africa will make a pronouncement on the enlargement of the group when they meet 


A planned announcement on the expansion of BRICS at a forthcoming summit in South Africa will mark a significant change in the global order, the nation’s ambassador to the five-nation bloc said, even as some of its members push back against new admissions.

Heads of state from Brazil, Russia, India, China and South Africa will make a pronouncement on the enlargement of the group when they meet Aug. 22-24, Anil Sooklal said in a lecture at the University of KwaZulu-Natal on Wednesday. Twenty-two nations have asked formally to become full-time members of the group, and more than 20 others have submitted informal requests.

China favors a rapid expansion of the bloc, which will require consensus among its members. But it has encountered opposition from India, which wants strict rules on how and when other nations could move closer to the group without formally enlarging it, and from Brazil, which is wary of alienating the US and European Union, according to officials with knowledge of the matter. 

“BRICS has been a catalyst for a tectonic change you will see in the global geopolitical architecture starting with the summit,” Sooklal said. While he emphasized that the bloc doesn’t see itself as a counterweight to any other organization, he said its expansion was stoking anxiety and opposition among nations in “privileged positions.” 

Russian leader Vladimir Putin will participate at the gathering virtually, avoiding the risk of possible arrest on a warrant from the International Criminal Court for alleged war crimes if he travels to South Africa, which is a member of the tribunal.

A decision on whether Indian Prime Minister Narendra Modi will attend has yet to be taken, although necessary security arrangements have been made and other pre-visit formalities have been completed, according to a person with knowledge of the matter. While Modi’s absence may be viewed as a snub to the host and he would miss out on bilateral meetings with other leaders, India isn’t comfortable with him holding talks with Chinese President Xi Jinping while a border dispute remains unresolved, they said. 

So far, representatives from 71 nations have been invited to attend the summit, according to Sooklal. 

“This will be the largest gathering in recent time of countries from the Global South coming together to discuss the current global challenges,” he said. 

Formed officially in 2009-2010, BRICS has struggled to have the kind of geopolitical influence that matches its collective economic reach. The bloc’s members represent more than 42% of the world’s population and account for 23% of global gross domestic product and 18% of trade.

An expanded BRICS will account for “almost 50% of the global population and over 35% of global GDP and that figure will grow,” Sooklal said. He also highlighted the role that the bloc’s leaders were playing in trying to end Russia’s war in Ukraine.

“There is no tangible evidence that any one of the BRICS countries, South Africa included, is feeding weapons into that conflict,” he said. “But there is clear evidence to the global community that the West is pumping billions of dollars into that conflict and the conflict is raging, so who is talking peace and who is talking war?”

domingo, 9 de julho de 2023

Bric-Brics e agora Brics+: onde está o interesse nacional brasileiro? - Paulo Roberto de Almeida e Oliver Stuenkel


O BRIC-BRICS SEMPRE FOI RUIM PARA O BRASIL: O BRICS+ SERÁ PIOR

Paulo Roberto de Almeida

 O BRIC (2006-2009) foi uma decisão equivocada, estrategicamente destruidora da autonomia em política externa, objetivo perseguido pela diplomacia brasileira desde sempre, adotada por um governo, o de Lula 1, claramente antiamericano e antiocidental, praticante de uma diplomacia partidária, sectária, enviesada e contrária aos interesses nacionais maiores do Brasil; já o ingresso da África do Sul (em 2011) representou uma imposição chinesa, que tende a se reproduzir agora na ampliação do BRICS, que só interessa à China e à Rússia. 

A decisão errada adotada entre 2006-2009, depois ampliada em 2011, agora ameaça de vez a pretensa autonomia da política externa do Brasil. O “bebê” acalentado de forma excessivamente otimista ao inicio, agora se transformou num “jovem” problemático, que serve a outros interesses que não os do Brasil. 

Não sei como Oliver Stuenkel ainda não percebeu isso. Meu livro sobre A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Kindle Amazon, 2022) aprofunda esse debate. 

Paulo Roberto de Almeida

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AMPLIAR O BRICS É RUIM PARA O BRASIL!

Oliver Stuenkel

Analista político e professor de relações internacionais da FGV em São Paulo

 O Estado de S. Paulo, 3/07/2023

No próximo dia 22 de agosto, os líderes do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul se reunirão em Joanesburgo para a 15ª cúpula do Brics. Por vários motivos, será o encontro mais importante da história do bloco, que se transformou em um grupo geopolítico em 2009, ano de sua primeira cúpula.

Em primeiro lugar, o anfitrião precisa lidar com uma situação diplomática delicada: como signatária do Tribunal Penal Internacional (TPI), a África do Sul tem a obrigação de prender o presidente russo se ele comparecer à reunião, pois o TPI emitiu, em março, mandado de prisão contra Vladimir Putin pela deportação ilegal de crianças ucranianas para a Rússia.

Nos últimos meses, o governo sul-africano até considerou transferir a cúpula para a China – que não é signatária do TPI. Afinal, como o ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki apontou recentemente: “Não podemos dizer ao presidente Putin, ‘por favor, venha para a África do Sul’ e depois prendê-lo. Ao mesmo tempo, não podemos dizer ‘venha para a África do Sul’ e não o prender – porque estamos violando nossa própria lei”.

Porém, ao que tudo indica, é justamente isso que o governo sul-africano fará, atitude que não apenas representaria um triunfo diplomático para Putin, mas também fortaleceria o grupo Brics: afinal, o país se mostraria disposto a violar sua própria legislação para preservar a tradição diplomática das cúpulas do Brics, às quais até hoje nenhum presidente deixou de comparecer.

Em segundo lugar, em Joanesburgo o grupo estará diante da decisão mais importante de sua história: criar ou não um processo formal para admitir novos integrantes. Em 2010, a China conseguiu convencer o Brasil, a Rússia e a Índia a agregar a África do Sul, argumentando que incluir um país africano dava ao Brics mais legitimidade para falar em nome do mundo em desenvolvimento.

Parte da motivação, porém, provavelmente foi o desejo chinês de tornar supérfluo o IBAS – grupo criado em 2003 composto por Índia, Brasil e África do Sul – pois a consolidação de um agrupamento de três grandes democracias no Sul Global não era do interesse de Pequim. De fato, em 2013, o IBAS, uma das principais inovações da política externa do primeiro mandato Lula, perdeu relevância.

Desde 2017, a China promove sua visão de um Brics ampliado, e perto de 20 países – entre eles o Egito, o Irã, a Argentina e a Arábia Saudita – sinalizaram o interesse em aderir. Como a China, cujo PIB é maior do que de todos os outros integrantes somados, sempre será vista como líder do grupo, a expansão faz sentido para Pequim, e um Brics com dez ou vinte integrantes pode ajudar a formalizar a enorme influência econômica e política que a China já exerce globalmente. Para a Rússia, a expansão também faz sentido para se proteger do crescente isolamento diplomático.

Para a Índia e o Brasil, porém, ampliar o grupo teria um custo estratégico significativo: um Brics diluído dificilmente traria o mesmo prestígio, status e exclusividade que oferece hoje. É em parte graças ao Brics que o Brasil ainda é visto como uma potência em ascensão, apesar de estar em estagnação há uma década. Enquanto Nova Deli e Brasília têm a capacidade de vetar decisões em um agrupamento de cinco países, é bem mais difícil exercer a mesma influência em uma aliança de dez ou vinte, onde o maior objetivo dos novos integrantes é fortalecer laços econômicos com a China.

Além disso, é importante lembrar que vários dos países que buscam aderir ao grupo adotam uma estratégia explicitamente anti-ocidental, contrária à estratégia brasileira e indiana de articular uma postura de não-alinhamento no contexto das crescentes tensões entre os EUA e a China. Um Brics que inclua a Venezuela, o Irã e a Síria dificultaria garantir que as declarações finais das cúpulas tenham um tom moderado.

A participação brasileira do grupo Brics, do jeito que está, produz vantagens concretas para o Brasil, trazendo prestígio diplomático e facilitando o diálogo com quatro atores-chave no sistema internacional com os quais o País não tinha relação estreita há apenas duas décadas. Aceitar um Brics ampliado equivaleria a abrir mão desses benefícios.


quarta-feira, 28 de junho de 2023

Definições simples: a de uma tirania, por exemplo - Paulo Roberto de Almeida

Definições simples: a de uma tirania, por exemplo

A diferença entre um governo normal e uma tirania é quando o chefe de governo ignora completamente os órgãos de Estado para mandar e desmandar a seu bel prazer, ou quando decide, por exemplo, massacrar o seu próprio povo, ou outros povos, sem nenhum objetivo concreto, a não ser por puro terror e desejo de vingança pessoal.
Putin é exatamente isso e só isso.
Lula ainda não percebeu?
O que mais seria preciso ocorrer, nessas categorias indignas de qualquer postura civilizada, para que ele e o seu assessor para assuntos internacionais se convençam de que eles estão justamente apoiando um criminoso de guerra, um violador do Direito Internacional, um monstro depravado e sedento de sangue?
O BRICS e o tal de Sul Global ainda não estão convencidos disso?

Onde está a consciência moral, ou simplesmente ética, desses mandatários? 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 28/06/2023

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O BRICS e os Brics em face da desordem internacional trazida pela guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

 Os chanceleres do BRICS, representando os atuais cinco Brics individuais, reuniram-se recentemente na Cidade do Cabo, África do Sul, para preparar a próxima cúpula do grupo, que deverá reunir-se em Johannesburg, capital daquele país, em agosto.

Como quando da reunião de chanceleres do ano passado, e da própria declaração final dos chefes de Estado e de governo, ocorrida já em meio à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, os diplomatas fizeram cara de paisagem, em face da cruel realidade da guerra, inclusive já revelados os massacres, crimes de guerra inomináveis, perpetrados pelas forças russas em Bucha, arredores da capital Kiev, que elas não conseguiram tomar (levado ao local, para uma exposição na igreja local sobre os cadáveres deixados espalhados nas ruas pelos assassinos do Exército russo, o atual assessor internacional do presidente Lula para assuntos internacionais, e ex-chanceler nos governos Lula 1 e 2, disse que "não dava para saber, pois são apenas fotos). 

Transcrevo abaixo, para renovar a lembrança da vergonha já cometida em 2022 e renovado neste ano, trechos da declaração dos chanceleres, que se vangloriam reciprocamente do compromisso de seus países com o multilateralismo e a "defesa do direito internacional"... "em um sistema internacional no qual Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável, garantir a promoção e proteção da democracia, dos  direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos e promover a cooperação baseada no espírito de respeito mútuo, justiça e igualdade."

Não consigo imaginar hipocrisia maior, sabendo-se de todos os crimes já perpetrados (e ainda a perpetrar) pelos invasores em território soberano da Ucrânia, sobretudo a recente explosão deliberada da barragem de Nova Krakhovka, causando um desastre humanitário e uma catástrofe ecológica e ambiental. 

Imagino que os chanceleres continuarão impérvios à realidade da guerra, deslanchada sem provocação, por um dos membros contra um vizinho, na violação da Carta da ONU e de normas elementares do direito internacional, ou da própria moralidade dos seus atos de guerra, que cabe a cada Estado respeitar, segundo os protocolos em vigor sobre as leis da guerra, que a Rússia viola seguidamente.

Entendo que a hipocrisia continuará na reunião de cúpula de 2023, talvez até com a presença do criminoso de guerra cuja prisão já foi solicitada pelo Tribunal Penal Internacional, mas que não será eventualmente cumprida pela República da África do Sul, a que seria obrigada pelo Estatuto de Roma ao qual subscreveu e ratificou. Ah, sim, a hipocrisia se estendeu inclusive a um curto parágrafo sobre a "situação na Ucrânia", na qual ignoram completamente a situação de guerra causada por uma das partes.

Nada mais tenho a expressar, a não ser uma vergonha alheia, pela diplomacia de meu país, nesta conjuntura diplomática que aparentemente não mudou absolutamente nada, desde o governo demolidor de nossa política externa até o final de 2022.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 14 de junho de 2023


Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Imprensa 

Nota nº 76, 19 de maio de 2022

Declaração Conjunta do BRICS sobre o tema: “Fortalecer a Solidariedade e a Cooperação do BRICS; Responder às novas Características e Desafios da Situação Internacional”

(...)

3. Os Ministros reiteraram seu compromisso com o multilateralismo por meio da defesa do direito internacional, inclusive os propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas como sua pedra angular indispensável, e com o papel central das Nações Unidas em um sistema internacional no qual Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável, garantir a promoção e proteção da democracia, dos  direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos e promover a cooperação baseada no espírito de respeito mútuo, justiça e igualdade.

4. Os Ministros reiteraram seu compromisso de realçar e aprimorar a governança global, promovendo um sistema mais ágil, eficaz, eficiente, representativo e responsável, realizando consultas e colaboração inclusivas para o benefício de todos com base no respeito à soberania, à independência, à integridade territorial, à igualdade, aos interesses e preocupações legítimos dos diferentes países. 

 (...)

11. Os Ministros recordaram suas posições nacionais sobre a situação na Ucrânia, conforme expressas nos fóruns apropriados, nomeadamente o CSNU e a AGNU. Apoiaram as negociações entre a Rússia e a Ucrânia. Discutiram também suas preocupações sobre a situação humanitária dentro e ao redor da Ucrânia e expressaram seu apoio aos esforços do Secretário-Geral da ONU, das Agências da ONU e do CICV para fornecer ajuda humanitária de acordo com a resolução 46/182 da Assembleia Geral da ONU.


terça-feira, 25 de abril de 2023

BRICS debate expansão na próxima cúpula na África do Sul - Ana Flávia Castro (Metrópoles)

 O BRICS pode virar uma casa de Mãe Joana, nessa próxima cúpula na África do Sul: 


Brics recebeu 19 pedidos de adesão antes de cúpula na África do Sul
Representante sul-africano no Brics informou que o grupo debate a possibilidade de expandir membros antes da cúpula no país, em agosto
Ana Flávia Castro
Metrópoles, 25/04/2023

Os integrantes do grupo dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) receberam pelo menos 19 pedidos de adesão ao bloco econômico, segundo informou o representante da África do Sul para o Brics, Anil Sooklal. O tema será debatido em reunião com ministros das Relações Exteriores dos países membros, marcada para os dias 2 e 3 de junho na Cidade do Cabo.
A possibilidade de expansão é discutida de forma contundente desde a última cúpula na China, em 2022. O assunto, no entanto, é visto com ressalvas. Apesar de Pequim defender a entrada de outros países, os demais integrantes veem esse movimento com preocupação, pelos riscos envolvidos.

Segundo Sooklal, 13 países fizeram pedidos formais para entrar no grupo, enquanto outros seis realizaram consultas informais sobre o assunto. O Brics criou um grupo de trabalho especificamente para o tema, focado em estabelecer regras e diretrizes para uma eventual expansão.
“O que vai ser discutido é a expansão dos Brics e a forma como isso vai acontecer”, afirmou o diplomata sul-africano, em entrevista à imprensa local nessa segunda-feira (24/4). “Treze países pediram formalmente para aderir, e outros cinco ou seis fizeram consultas informais. Estamos recebendo pedidos todos os dias”, completou.

“Aumentar o número de membros é algo que, a princípio, os nossos líderes concordaram, mas estamos discutindo sobre como e quando isso ocorrerá”, prosseguiu.

A expansão do Brics começou em 201o, com a adesão da África do Sul ao grupo de países emergentes. Entre as nações que formalizaram os pedidos para entrar no bloco estão Irã, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, na Ásia, Egito e Argélia, na África, e Argentina, na América Latina.

Impasse com a Rússia
A realização da próxima reunião dos Brics, entre os dias 22 e 24 de agosto na África do Sul, se tornou uma incógnita desde que o Tribunal de Haia emitiu um mandado de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em março deste ano.

Por reconhecer a jurisdição da Corte, a África do Sul teria como obrigação prender e extraditar Putin para a Holanda, onde o líder russo seria julgado pelo Tribunal de Haia.

Com a situação delicada envolvendo o presidente da Rússia, o porta-voz da presidência afirmou que o governo de Cyril Ramaphosa busca “mais compromissos em termos de como isso será gerenciado”, e que assim que as negociações forem concluídas os anúncios necessários serão realizados.

sexta-feira, 31 de março de 2023

BRICS é um bloco majoritariamente ditatorial - Astrid Prange (Deutsche Welle, via Augusto de Franco)

Da página de Augusto De Franco:

BRICS É UM BLOCO MAJORITARIAMENTE DITATORIAL

Além do Brasil e da África do Sul, compõem o bloco três das maiores autocracias do mundo: Rússia (autocracia eleitoral), Índia (autocracia eleitoral) e China (autocracia fechada). Agora estão tentando incluir nos BRICS, além da Argentina, mais quatro autocracias: Egito (autocracia eleitoral), Irã (autocracia eleitoral), Turquia (autocracia eleitoral) e Arábia Saudita (autocracia fechada). O perigo é que seja o embrião de um bloco de uma segunda grande guerra fria das autocracias contra as democracias liberais.

Vejam o que escreve Astrid Prange, Deutsche Welle (27/03/2023):

A sigla começou como um termo um tanto otimista para descrever quais eram as economias de crescimento mais rápido do mundo na época. Mas agora as nações do BRICS – Brasil , Rússia, Índia, China , África do Sul – estão se estabelecendo como uma alternativa aos fóruns financeiros e políticos internacionais existentes.

"O mito fundador das economias emergentes desapareceu", confirmou Günther Maihold, vice-diretor do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança, ou SWP. "Os países do BRICS estão vivendo seu momento geopolítico."

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul estão tentando se posicionar como representantes do Sul Global, oferecendo “um modelo alternativo ao G7”.

Desde o início da guerra russa na Ucrânia, os países do BRICS só se distanciaram ainda mais do chamado Ocidente. Nem Índia , Brasil, África do Sul ou China estão participando de sanções contra a Rússia. Isso ficou cada vez mais claro com níveis quase históricos de comércio entre Índia e Rússia, ou na dependência do Brasil de fertilizantes russos.

"Diplomaticamente, a guerra na Ucrânia parece ter traçado uma linha divisória rígida entre uma Rússia apoiada pelo leste e o Ocidente", escreveu o cientista político Matthew Bishop, da Universidade de Sheffield, para o Economics Observatory no final do ano passado. "Consequentemente, alguns formuladores de políticas europeus e americanos temem que os BRICS possam se tornar menos um clube econômico de potências emergentes que buscam influenciar o crescimento e o desenvolvimento global e mais um clube político definido por seu nacionalismo autoritário."

segunda-feira, 13 de março de 2023

Uma moeda digital para o Brics? Não custa sonhar... - André Liohn (Medium)

 Você confiaria numa moeda emitida por este quinteto? E se fosse com o Lula no meio deles? Mesmo sendo digital?

O dinheiro é a mensagem

Em 1964, três anos depois que o mundo foi dividido pelo Muro de Berlim, o filósofo canadense Marshall McLuhan afirmou que “o meio é a mensagem”.

Isso significa que o meio pelo qual recebemos informações ou nos comunicamos é tão importante quanto o conteúdo dessa comunicação. McLuhan argumentou que as mudanças na mídia têm impactos profundos na sociedade e na cultura.

A teoria de McLuhan é particularmente relevante no contexto do CBDC (Moeda Digital do Banco Central).

CBDC tem sido uma palavra da moda no mundo financeiro nos últimos anos. Quem nunca ouviu falar, até o considera uma teoria conspiratória. Apesar de sua crescente popularidade entre políticos e chefes de bancos centrais, muitos ainda precisam aprender o que é e como funciona o CBDC.

O CBDC não é uma teoria conspiratória, e não é apenas uma palavra da moda. A tecnologia por trás do CBDC está em desenvolvimento há vários anos, e bancos centrais de todo o mundo continuam explorando seu potencial. De fato, mais de 80% dos bancos centrais do mundo estão explorando os possíveis usos de CBDCs, e cerca de 14% deles lançaram projetos-piloto. Muitos países estão explorando essa tecnologia como uma opção potencial para seus sistemas financeiros. O número exato de países que trabalham ativamente em CBDCs ainda está sendo determinado, já que está em constante evolução. Ainda assim, é seguro dizer que vários países já começaram a pesquisar e implementar CBDCs, incluindo China, Brasil, Canadá, Reino Unido, Noruega, Suécia, Rússia, União Europeia e Estados Unidos.

A tecnologia revolucionária muitas vezes é apresentada como uma maneira nova e simples de transferir dinheiro ou fazer pagamentos. Mas é muito mais do que isso.

É um meio fundamentalmente diferente de troca de valor.

As moedas tradicionais existem como objetos físicos, como moedas e notas de papel, ou como entradas digitais em contas bancárias. O CBDC, por outro lado, é totalmente digital e pode ser transferido diretamente entre indivíduos sem precisar de um intermediário.

Uma moeda digital do banco central (CBDC) criptográfica é uma moeda digital baseada em tecnologia de registro distribuído (DLT), como blockchain. Em contraste com as moedas fiat tradicionais, que são emitidas e garantidas pelos bancos centrais e gerenciadas pelos bancos comerciais, um CBDC criptográfico é emitido e gerenciado diretamente pelo banco central usando DLT.

CBDCs e criptomoedas, como o Bitcoin, são dois tipos de moedas digitais que muitas vezes são confundidos um com o outro. Embora ambos se baseiem na tecnologia digital blockchain, eles têm finalidades diferentes. Uma das principais diferenças entre CBDCs e criptomoedas é o uso pretendido. CBDCs são destinados a serem usados em transações diárias, como comprar mantimentos ou pagar contas, enquanto as criptomoedas são usadas principalmente para investimentos ou como reserva de valor.

Antes da decisão de abandonar o padrão-ouro, muitas moedas em todo o mundo estavam vinculadas ao ouro. Isso significava que cada unidade monetária era apoiada por uma quantidade fixa de ouro e poderia ser trocada por essa quantidade a qualquer momento. O valor da moeda estava, portanto, diretamente relacionado ao valor do ouro.

Após a Segunda Guerra Mundial, os países começaram a se afastar do chamado “padrão-ouro” e adotaram um sistema de moeda fiduciária.

Sob esse sistema, o valor da moeda não está ligado a nenhum ativo tangível, mas é baseado na total confiança e crédito do governo que a emite.

As moedas de hoje, incluindo o dólar americano e o euro, são exemplos de moedas fiduciárias. Elas não estão diretamente ligadas a nenhum ativo tangível ou intangível, mas dependem da promessa do governo de honrá-las como meio de troca e aceitá-las como pagamento de impostos.

No caso dos CBDCs, eles podem ser projetados para ter seu valor diretamente ligado a ativos tangíveis e intangíveis. Isso significa que o valor do CBDC seria baseado em um ou vários ativos subjacentes, em vez da promessa do governo de honrá-lo.

Por exemplo, o valor de um CBDC pode estar ligado ao valor de outra moeda, ouro ou outros metais preciosos, proporcionando estabilidade e valor à moeda. Da mesma forma, um CBDC poderia estar ligado a outros ativos tangíveis, como imóveis, commodities ou outras formas de propriedade.

Os ativos intangíveis, como propriedade intelectual, identidades digitais e reputação, tradicionalmente foram difíceis de avaliar e negociar. No entanto, com o surgimento da tecnologia blockchain e contratos inteligentes, agora é possível criar um sistema no qual o valor do CBDC está ligado a ativos intangíveis específicos.

Contratos inteligentes são contratos autoexecutáveis em que os termos do acordo entre comprador e vendedor são diretamente escritos em código. Essa tecnologia inovadora abre novas possibilidades para a indústria financeira, incluindo o uso de contratos inteligentes para vincular o valor de CBDC a ativos intangíveis como propriedade intelectual, dados ou outros ativos digitais, incluindo fatores ambientais como a “saúde” da floresta amazônica. Isso é conhecido como “CBDC verde” ou “CBDC baseado na natureza”.

Créditos de carbono representam uma redução nas emissões de gases de efeito estufa e são frequentemente usados como uma forma de incentivar empresas e países a reduzir sua “pegada” de carbono. Por exemplo, o Brasil e outros países tropicais que tentam financiar a preservação de suas florestas poderiam criar uma reserva de créditos de carbono vinculada à proteção de suas florestas tropicais. Ao vincular sua CBDC a uma reserva de créditos de carbono, o Brasil poderia criar um incentivo financeiro para preservar a floresta.

O Padrão ouro

A decisão de abandonar o padrão-ouro mudou significativamente a maneira como as moedas eram vinculadas a ativos. Embora tenha permitido uma maior flexibilidade e independência na política monetária, também introduziu o risco de inflação e desvalorização da moeda. CBDCs vinculados a ativos tangíveis e intangíveis podem fornecer um nível de estabilidade e valor à moeda, ao mesmo tempo que permitem flexibilidade na política monetária.

Essa mudança para um novo meio de troca tem o potencial de transformar fundamentalmente a maneira como pensamos sobre dinheiro e economia.

McLuhan argumentou que as novas mídias perturbam as estruturas de poder estabelecidas e criam padrões sociais e culturais. O mesmo princípio pode ser verdadeiro para CBDC. À medida que a CBDC se torna mais amplamente adotada, pode desafiar o poder de bancos tradicionais e instituições financeiras, que atualmente têm um controle significativo sobre o sistema financeiro global.

Além disso, a natureza da CBDC pode mudar a maneira como pensamos e usamos o dinheiro. A CBDC poderia potencialmente permitir transações mais diretas e imediatas, contornando a necessidade de intermediários como bancos e processadores de pagamento. Isso poderia levar a um sistema financeiro descentralizado e democrático, com indivíduos e comunidades tendo mais controle sobre suas próprias finanças.

No entanto, a CBDC também levanta preocupações significativas em torno da privacidade e da vigilância. Com a CBDC, as autoridades centrais podem rastrear e monitorar cada transação. Isso pode ter importantes implicações para a privacidade individual e potencialmente levar à erosão das liberdades civis.

O papel da China

A China tem sido um dos países mais ativos no desenvolvimento de uma CBDC, conhecida como Yuan Digital. O governo chinês tem enquadrado o Yuan Digital como uma forma de aumentar a inclusão financeira e promover a estabilidade econômica. No entanto, alguns observadores levantaram preocupações de que o Yuan Digital possa ser usado para expandir as capacidades de vigilância da China e reforçar o Sistema de Crédito Social do governo. Uma maneira pela qual a China usa a CBDC para financiar seu SCS é aproveitando sua capacidade de monitorar e rastrear transações financeiras. Com a CBDC, o Banco Popular da China (PBOC) teria visibilidade em tempo real de todas as transações de moeda digital. Isso permite ao PBOC identificar indivíduos e organizações que não estão cumprindo o SCS e reter ou congelar suas contas de CBDC. O PBOC também incentiva indivíduos e organizações a melhorar suas pontuações de SCS, fornecendo juros ou recompensas por manter uma pontuação alta.

O Bank Policy Institute (BPI), que faz lobby em nome dos maiores bancos dos EUA, argumentou que nem o Federal Reserve nem o Tesouro dos EUA têm a autoridade constitucional para emitir uma moeda digital.

O BPI argumentou que a Constituição dos EUA não concede explicitamente ao governo federal a autoridade para emitir uma moeda digital. Embora a Constituição conceda ao Congresso o poder de “cunhar dinheiro” e regular seu valor, o BPI argumentou que esse poder pode não se estender a moedas digitais, pois elas não existiam quando a Constituição foi escrita.

O Banco de Compensações Internacionais (BIS), fundado com os Acordos de Haia, assinados pelos bancos centrais da Alemanha, Bélgica, França, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial para servir como um banco para os bancos centrais e facilitar a cooperação monetária e financeira internacional, tem monitorado de perto o desenvolvimento de sistemas de CBDC transfronteiriços e oferecido insights sobre os benefícios e desafios potenciais de tal sistema.

De acordo com o BIS, um sistema de CBDC transfronteiriço pode oferecer benefícios significativos, como a redução do custo e do tempo das transações transfronteiriças, a melhoria da inclusão financeira e o aprimoramento da eficiência e resiliência do sistema financeiro global. As CBDCs também podem ajudar a mitigar os riscos associados ao uso de sistemas de pagamento tradicionais, como riscos de liquidação e de contraparte.

No entanto, o BIS também destaca vários desafios que devem ser abordados no desenvolvimento de um sistema de CBDC transfronteiriço. O BIS observa que um sistema de CBDC transfronteiriço pode ter implicações significativas para a política monetária, a estabilidade financeira e o sistema monetário internacional.

Um sistema de CBDC transfronteiriço pode potencialmente ameaçar a dominância do dólar americano na economia global. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o dólar tem sido a principal moeda de reserva do mundo, com outros países mantendo grandes quantidades de dólares para facilitar o comércio e o investimento internacional. No entanto, um sistema de CBDC pode oferecer uma alternativa ao dólar, enfraquecendo potencialmente sua posição. Uma das maneiras pelas quais um sistema de CBDC pode ameaçar o dólar é reduzindo a necessidade de dólares em transações transfronteiriças. Atualmente, a maioria das transações comerciais e financeiras internacionais é liquidada em dólares, exigindo que os participantes mantenham quantidades significativas de dólares para facilitar as transações. No entanto, um sistema de CBDC poderia permitir transações transfronteiriças mais eficientes e seguras, reduzindo a necessidade de dólares como meio de troca.

Um sistema de CBDC poderia oferecer uma nova reserva de valor e um “ativo porto seguro”, desafiando o papel do dólar como a principal moeda de reserva do mundo. À medida que mais países adotam CBDCs, eles podem deslocar suas reservas do dólar para CBDCs, levando a uma queda na demanda por dólares.

O papel do BRICS

Os países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) há muito tempo procuram diminuir sua dependência do dólar americano no comércio e finanças internacionais. Uma possível maneira de fazê-lo é por meio do uso de CBDCs. Ao desenvolver e utilizar um sistema de CBDC transfronteiriço, os países BRICS poderiam reduzir a dependência do dólar americano como moeda dominante para transações internacionais.

THE NEW INTERNATIONAL PAYMENT SYSTEM IN «BRICS PLUS» FORMAT & ITS «BRICS PAY» RETAIL SEGMENT

Desde 2020, os cinco países discutem a possibilidade de criar um sistema de pagamento transfronteiriço usando uma moeda digital. A ideia é que um CBDC dos BRICS facilite o comércio e o investimento entre os países, reduzindo a necessidade de transações serem conduzidas em dólares americanos.

O governo brasileiro agora mais uma vez liderado Luís Inácio Lula da Silva, um dos idealizadores do BRICS, expressou seu desejo de garantir que a presidência do Banco BRICS na China seja comandada por alguém muito próximo a ele e está fazendo lobby para que a ex-presidente Dilma Rousseff, assuma a posição. O movimento é visto como uma grande tentativa do Brasil de afirmar sua influência no grupo BRICS e além. Se Dilma assumir o cargo, o Brasil estará bem-posicionado para assumir um papel de liderança no sistema CBDC do BRICS.

A Russia

Em 17 de fevereiro de 2023, o Banco Central da Rússia anunciou planos para lançar uma versão digital de sua moeda nacional, o rublo, atrelada ao ouro em abril de 2023. Esse novo CBDC deverá ser chamado de “Ruble Digital” e funcionará ao lado do rublo físico existente.

O programa de CBDC russo tem atraído atenção de todo o mundo, com alguns analistas especulando que ele poderia fazer parte de uma estratégia maior da Rússia de desvincular sua economia permanentemente do Ocidente. Semanas depois que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022, o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown mencionou em uma entrevista à CNN que via o futuro como um mundo e dois sistemas. Se ele estiver certo, a Rússia poderia estar abrindo o caminho para outras economias se desvincularem do sistema financeiro do Ocidente.

A ligação ao ouro é também uma característica notável do programa russo de CBDC. Embora a maioria das CBDCs não seja respaldada por nenhum ativo físico, o rublo digital russo estará vinculado às reservas de ouro, o que poderia torná-lo um meio de troca mais estável e confiável. Isso pode ser particularmente atraente para investidores e países em busca de um ativo de refúgio seguro.

O lançamento do rublo digital russo também pode ter implicações significativas para o sistema financeiro global. Se a CBDC russa for bem-sucedida e ganhar ampla adoção, poderá desafiar a dominância do dólar americano como a moeda de reserva mundial. Isso pode levar a uma mudança no poder econômico global e aumentar ainda mais as tensões entre o Ocidente e a Rússia.

Simples como o interruptor que acende e apaga luzes

Bem, vivemos em um mundo onde pagar um café usando um telefone celular como meio de transferência de fundos em CBDC já é uma realidade, onde pagar por um café ou qualquer outra transação é tão fácil quanto ligar um interruptor! O PIX foi recebido como uma bênção! Acabaram-se os dias de se preocupar em levar dinheiro ou esquecer sua carteira. Com o Pix, tudo o que você precisa é do seu telefone celular e do aplicativo, e está pronto para ir! A simplicidade do processo é semelhante a acender as luzes em nossas casas — é fácil e intuitivo.

O Muro de Berlim é um lembrete sombrio de um mundo dividido, onde um sistema prevaleceu sobre o outro. Foi um pedágio erguido para evitar a guerra, mas tornou-se o símbolo do aprofundamento do fosso entre o Oriente e o Ocidente. Hoje, ao nos aproximarmos de um futuro mais digital, devemos considerar o impacto potencial de novas mídias como as CBDCs. A teoria da mídia de Marshall McLuhan nos alerta que o meio molda e controla a escala e a forma de associação e ação humana. As CBDCs têm o potencial de transformar a maneira como pensamos sobre dinheiro, perturbar estruturas de poder estabelecidas e levantar preocupações significativas sobre privacidade e vigilância. É essencial que projetemos e implementemos as CBDCs de uma maneira justa e equitativa para evitar uma maior divisão e garantir que nos movamos em direção a um mundo, em vez de dois sistemas.


domingo, 12 de março de 2023

O que o Brasil deixou de aprender com a Alemanha? (artigos na revista Crusoé) - Paulo Roberto de Almeida

 O que o Brasil deixou de aprender com a Alemanha?

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Colaboração com a revista Crusoé, a propósito da visita ao Brasil do chanceler Olaf Scholz, enfatizando educação de qualidade na Alemanha e trajetórias diferentes do SPD e do PT. Publicado em 3/02/2023 (link: https://oantagonista.uol.com.br/brasil/crusoe-o-que-o-brasil-deixou-de-aprender-com-a-alemanha/).

 

 

Na origem de tudo: o marxismo juvenil e o capitalismo tardio

Quando o jovem Marx e colegas da esquerda hegeliana se cansaram da censura prussiana e decidiram partir para o exílio, na França, na Bélgica, no Reino Unido, eles não estavam tão oprimidos pela repressão da polícia dos Hohenzollern quanto obcecados pela visão de uma Alemanha dividida e muito atrás, economicamente falando, da pujante Grã-Bretanha, na sua marcha triunfal do primeiro capitalismo (manchesteriano). De fato, a Alemanha da primeira metade do século XIX era o próprio símbolo daquilo que os ideólogos da UniCamp chamariam, no seguimento de Trotsky e outros epígonos, de capitalismo tardio, uma “maldição” que também atingia, ao que parece, o Brasil da primeira metade do século XX. Pouco depois, graças a List e outros “desenvolvimentistas” prussianos, entre os quais o próprio Bismarck, a Alemanha unificada deslanchou sua “revolução pelo alto”, o que a fez ultrapassar a Grã-Bretanha ainda antes do final do século XIX. 

O Brasil não conseguiu igualar tal feito, e só enveredou pela segunda revolução industrial quando o capitalismo avançado já estava na quarta, mesmo tendo tido vários generais e intelectuais bismarckianos na condução de seu “desenvolvimentismo” tardio. Mas o que a Alemanha conheceu de original, no plano dos movimentos de massa, foi ter criado um modelo de partido socialista, tendo na sua base o marxismo sindical, que conseguiu sobreviver à crise da República de Weimar, à tirania hitlerista, para construir, no pós-guerra, junto com o ordo-liberalismo da democracia cristã, um modelo de capitalismo liberal e de democracia de mercado, que assegurou à nova Alemanha, novamente reunificada, o galardão de economia mais produtiva do mundo e a de maior sucesso nas exportações de ponta.

Como isso foi possível? Parte do sucesso é histórico, partindo da educação de massa ainda sob o absolutismo prussiano, passando pela educação humboldtiana da nação liberta da dominação napoleônica, tanto na sua vertente popular, das escolas técnicas superiores para a formação da mão-de-obra trabalhadora, quanto na formação graduada, deixando de lado o modelo escolástico dos países pioneiros para enveredar por universidades vinculadas à indústria, até chegar à inovação tecnológica contínua, com pesquisa científica associada. A outra parte é propriamente social, ou política, e está vinculada às vidas paralelas dos partidos conservadores (majoritariamente cristãos) e do grande partido socialista, o mais antigo em funcionamento no mundo, o SPD, fundado quando Marx ainda era vivo. Na terceira década do século XX, impulsionadas pelo fervor bolchevique da Revolução russa, frações radicais do socialismo marxista formam o Partido Comunista, que será selvagemente reprimido quando Hitler chega ao poder, em 1933, como de resto o SPD e todos os demais partidos. 

No pós-guerra, o SPD permanece geralmente na oposição, pois a CDU, de base cristã-democrata, obtém o controle quase constante do Bundestag, o parlamento alemão. O “milagre alemão” dos anos 1950-60 será presidido sobretudo pelo seu líder, Konrad Adenauer, mas os socialistas chegam ao poder em 1969, com Willy Brandt. Tal evolução deve-se especialmente à reviravolta política ocorrida no SPD, a partir de seu congresso de Bad Godesberg, em 1959, que abandona o velho programa marxista de construção do socialismo em favor da adoção de um programa reformista dentro do capitalismo liberal e da democracia de mercado. Tal visão não estava distante daquilo que pretendia o socialista Friedrich Ebert, o primeiro dirigente da República de Weimar, em 1919, em linha com o reformismo moderado adotado por vários partidos socialistas que, desde o final do século XIX, tinham decidido abandonar o projeto revolucionário para reformar o capitalismo a partir do seu interior. 

Data dessa época, a fundação da Segunda Internacional, organização política de caráter nitidamente socialdemocrata, em contraposição à primeira Internacional, dos tempos de Marx, onde se digladiavam marxistas e anarquistas. A Segunda Internacional permanece até hoje, tendo deixado para trás a Terceira, fundada pelo próprio Lênin, e a anêmica Quarta Internacional, criada por Trotsky para se contrapor ao stalinismo da Terceira (que acabou sendo extinta em plena Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética precisava da ajuda das potências capitalistas para vencer a superioridade bélica do Exército nazista). Nessa época, a Alemanha foi seduzida e destruída pelo psicopata perverso que só perdeu para Mao Tse-tung no número de vítimas de seu horrível regime totalitário. A derrota e a ocupação militar estrangeira durante a Guerra Fria parecem tê-la curado de ideologias extremas. Com a auto implosão da União Soviética, o que sobrou de “comunismo” no mundo acabou escanteado nas antípodas (em Cuba e na Coreia do Norte), sobrevivendo pateticamente em alguns poucos partidos leninistas espalhados sobretudo na América Latina.

 

Mas o que o Brasil e o PT deixaram de aprender com a Alemanha? 

Alemanha e Brasil são ambos exemplos de capitalismo tardio, como proclamam acadêmicos da UniCamp, o que, aliás, é válido para qualquer outro país que não a Inglaterra da primeira revolução industrial. O Brasil também seguiu o modelo da modernização pelo alto de estilo bismarckiano, chegando até a praticar certa modalidade de “stalinismo industrial” durante o auge da “marcha forçada para a frente” do período militar. Nos anos 1930, o Brasil varguista e a Alemanha nazista eram os países que mais defendiam seus mercados com tarifas elevadíssimas, e até fizeram acordo bilateral para comerciar sem divisas, o que, aliás, alguns alucinados argentinos e brasileiros querem adotar atualmente para supostamente “estimular o comércio recíproco”, o que significaria um retrocesso de mais de 80 anos na modalidade multilateral de pagamentos estabelecida em Bretton Woods (1944).

O que o Brasil não fez foi a grande revolução educacional, que tinha começado na Prússia numa primeira derrota para os suecos, ainda no regime absolutista, que foi a escolarização compulsória para alfabetização das crianças, seguida, depois da derrota para Napoleão em Iena (1806), da grande transformação do ensino médio para capacitar sua mão-de-obra industrial, a Technische Hoschschule, e, sobretudo, pela novidade da universidade humboldtiana, mais vinculada à indústria do que à escolástica medieval das primeiras universidades europeias, criadas ainda na Idade Média. Comparado aos países pioneiros na alfabetização universal – os Estados Unidos e a própria Alemanha do início do século XIX –, o Brasil só conseguiu atingir esse objetivo – puramente quantitativo, vale recordar – no final do século XX, quando dos esforços do governo FHC em apoio ao ciclo primário local. 

O segundo não aprendizado tem mais a ver com traços da vida política e social vinculados à ideologia progressista que tanto o SPD alemão quanto o PT dizem defender, o primeiro de maneira mais pragmática, o segundo de forma bizarramente canhestra. Depois do grande desafio do renascimento alemão do pós-Segunda Guerra, marcado pela liderança moderada e democrática de Adenauer, e do “ordo-liberalismo” da política econômica que permitiu o “milagre alemão” dos anos 1950 e 60, o SPD resolveu finalmente se modernizar, abandonando a ideologia marxista das décadas precedentes para adotar o reformismo dentro do capitalismo e da democracia, o que foi feito no famoso Congresso de Bad Godesberg, em 1959, revolução partidária que o New Labour de Tony Blair só fez nos anos 1990, depois do furacão neoliberal de Margaret Thatcher. Ora, o PT jamais fez o seu “Bad Godesberg”, pois que continua a exibir as mesmas más ideias do “desenvolvimentismo” inflacionário iniciado nos anos 1950, continuado pelo extremo intervencionismo estatal da ditadura militar. 

Ainda agora, depois da Grande Destruição Econômica da era Dilma, a maior recessão de toda a história do Brasil (superior à crise dos anos 1930-31), lideranças do PT continuam a exibir a mesma incompreensão sobre os mecanismos de uma moderna economia integrada aos mercados mundiais quanto a que caracterizou o partido e seus conselheiros econômicos na maior parte de sua história. No plano da geopolítica mundial, o contraste não poderia ser mais eloquente entre o SPD e o PT: em face do desafio representado pelo comunismo soviético – que, por sinal, inundou as duas Alemanhas de espiões e funcionários subornados pela sua “atração fatal” –, os socialistas alemães adotaram resolutamente a defesa dos valores das liberdades, da democracia e dos direitos humanos, os valores centrais desse “Ocidente” tão desprezado pelos aliados do “socialismo sem exploração do homem pelo homem”. O PT, formado por sindicalistas anticapitalistas e ex-guerrilheiros reciclados – complementados pela massa eleitoral da “teologia da libertação” –, jamais proclamou abertamente sua opção pelo reformismo capitalista, que eles praticaram contra a vontade, canhestramente, durante os mandatos confusos dos anos 2003-16. Pior ainda, prisioneiros do apoio castrista e chavista nos primeiros anos, o PT e seus líderes nunca se distanciaram dos seus “amigos” ditatoriais pretensamente de esquerda (quando são apenas brutais ditadores muito similares ao fascismo de estilo mussoliniano). 

Essa distância se torna ainda mais dramática quando o chanceler Olaf Scholz, o primeiro alto dirigente estrangeiro em visita ao Brasil de Lula 3, vem pleitear do Brasil, não a defesa desse “Ocidente” identificado com a Otan, mas a simples adesão aos princípios mais elementares do Direito Internacional enfeixados na Carta da ONU e integrados à Constituição de 1988. Ao proclamar uma falsa “neutralidade” na guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, com o cometimento de crimes de guerra, contra a humanidade e o supremo crime contra a paz – os mesmos que levaram dirigentes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg em 1946 –, a nova-velha diplomacia lulopetista mostra a pior face de um alheamento completo às realidades da nova “guerra fria” entre o Ocidente e as autocracias remanescentes do século XX. Pior ainda, o grande erro estratégico cometido pela mesma diplomacia obtusa, na criação dessa entidade bizarra chamada Brics – derivada, em 2011, do Bric original de 2006-2009 –, faz com que o Brasil lulista se torne caudatário, hoje, dos interesses nacionais de duas grandes autocracias.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4314: 31 janeiro 2023, 4 p.

 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

O que Lula fará com o Brics? - Guga Chacra (O Globo)

 Permito-me remeter, sobre a questão do Brics, ao meu livro recentemente publicado: 

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira, Brasília: Diplomatizzando, 2022, 277 p.; ISBN: 978-65-00-46587-7; Edição Kindle: 1377 KB; ASIN: B0B3WC59F4; At Amazon.com, link: https://www.amazon.com/dp/B0B3WC59F4

O que Lula fará com o Brics?

Cenário geopolítico atual, com guerra na Ucrânia e linha dura de Xi, levanta dúvidas sobre sentido do bloco que há uma década parecia se consolidar como representação das potências não ocidentais

O Globo, 05/01/2023
Guga Chacra

Quando Lula deixou o governo 12 anos atrás, o Brics parecia consolidar-se como o bloco das potências não ocidentais. Vladimir Putin ainda era um líder respeitado no Ocidente e estava num hiato fora da Presidência da Rússia, exercendo o cargo de premier. Hu Jintao governava a China, mas não como um autocrata. A Índia seguia nas mãos do Congresso Nacional Indiano, uma agremiação mais centrista. A África do Sul vivia a transição de Thabo Mbeki para Jacob Zuma e permanecia nas mãos do Congresso Nacional Africano desde o fim do apartheid. E o Brasil vivia um de seus melhores momentos econômicos, além de ter sido escolhido como sede da Copa e da Olimpíada.

As mudanças em pouco mais de uma década foram gigantescas e, na maior parte, para pior nesse bloco que visava unir-se como uma força separada, mas não antagônica, do Ocidente. Putin anexou a Crimeia em 2014 e invadiu no ano passado a Ucrânia no maior conflito militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra. Repudiado no Ocidente, o líder russo vê sua ofensiva fracassar, com os EUA e as nações europeias se unindo a favor dos ucranianos liderados pelo presidente Volodymyr Zelensky.

A China, depois da pandemia, perdeu o fôlego, crescendo a patamares bem inferiores aos de anos atrás. Mais grave, Xi Jinping mudou as regras para permanecer um terceiro mandato e se tornou um autocrata. As ameaças a Taiwan se intensificaram e ainda pesam as acusações de genocídio contra minorias como os uigures. A Índia emerge como uma das grandes vitoriosas do período pós-pandemia e superará a China como a nação mais populosa do planeta nos próximos meses. Ao mesmo tempo, seu primeiro-ministro é o nacionalista e supremacista hindu Narendra Modi, com uma agenda bem mais polarizada do que seus antecessores.

O único do Brics que não mudou muito foi a África do Sul. Afinal, mesmo o Brasil de Lula vive um contexto bem diferente do de 2011. A economia luta para superar uma década perdida, o país segue dividido e sua imagem se deteriorou após quatro anos de governo de um pária internacional como o extremista Jair Bolsonaro.

Diante desse novo cenário geopolítico global, cabe a pergunta se o Brics ainda faz sentido, se é que fazia no passado. Qual o interesse de Brasil, Índia e África do Sul de integrarem um bloco junto com a Rússia, vista como inimiga no mundo ocidental? Naturalmente, esses países mantêm e manterão relações comerciais e diplomáticas com Moscou. Como disse o chanceler da Índia ao New York Times, "a Europa importou seis vezes mais petróleo da Rússia do que a Índia desde fevereiro", ao dizer que os indianos devem defender seus interesses. Mas tratar como aliado? 2023 não é 2010.

Uma alternativa razoável para o Brasil seria seguir a defender seus interesses no cenário geopolítico internacional, mas sem deixar de lado seus valores. É óbvio que o país precisa seguir com o comércio com a China. Não há necessidade, porém, de adular Xi. Deve condenar a Rússia por sua agressão à Ucrânia nos fóruns internacionais, mas levando em conta os interesses brasileiros no comércio bilateral. E é importante o novo governo Lula investir numa aproximação com a Índia no âmbito comercial, ainda que mantendo uma certa distância de Modi.

Já o Brics como bloco deveria ser extinto, ainda que não formalmente. Lula não pode se sentar ao lado de um criminoso de guerra como Putin. Seria um desrespeito a todas as vítimas do conflito na Ucrânia.



quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Como chegamos à miséria geopolítica atual? No mundo e no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Como chegamos à miséria geopolítica atual?

Paulo Roberto de Almeida

George W. Bush (2000-2008), o pior presidente que os EUA já tiveram (com exceção de Trump, que é hors concours), carrega a suprema culpa pelas terríveis decisões que impactaram por décadas a atualidade (para trás e para a frente): a guerra do Iraque (o maior desastre da história militar dos EUA, comparável à insana guerra do Vietnã) e o antagonismo contra a Rússia (pela expansão da OTAN no glacis ucraniano) e a China (pela impossível decisão de contenção de sua irresistível ascensão), todas elas derivadas da arrogância e soberba daquele momento unipolar. 
Retrospectivamente, uma história diplomática dos EUA, se for honesta, terá de reconhecer esses tremendos erros de conduta estratégica.
Se ouso acrescentar algo para o Brasil e a sua política externa, seria isto: a decisão de se unir a duas autocracias (Rússia e China) e a uma democracia de baixa qualidade (a Índia, nisso semelhante ao Brasil) para formar o BRIC, a partir de uma simples sugestão de oportunidade de mercado por um economista de banco de investimentos, foi o maior ERRO ESTRATÉGICO da diplomacia brasileira em décadas, talvez historicamente. Venho alertando para esse erro desde 2006, quando o BRIC tomou forma em nível ministerial. 
O futuro confirmará meu julgamento, feito em diversos trabalhos reunidos neste livro,  cujo prefácio segue logo abaixo do índice: 


A grande ilusão do Brics : e o universo paralelo da diplomacia brasileira (2022): https://www.amazon.com.br/grande-ilus%C3%A3o-Brics-diplomacia-brasileira-ebook/dp/B0B3WC59F4

Índice

 

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo

1. O papel dos Brics na economia mundial

O Bric e os Brics 

A Rússia, um “animal menos igual que os outros” 

A China e a Índia  

E o Brasil nesse processo?

 

2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos 

Esse obscuro objeto de curiosidade  

O Brasil, como fica no retrato?

Russia e China: do comunismo a um capitalismo especial 

O fascínio é justificado? 

O que os Brics podem oferecer ao mundo? 

 

3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil  

    Introdução: a caminho da Briclândia  

Radiografia dos Brics 

Ficha corrida dos personagens 

De onde vieram, para onde vão? 

New kids in the block  

Políticas domésticas 

Políticas econômicas externas 

Impacto dos Brics na economia mundial 

Impacto da economia mundial sobre os Brics  

Consequências geoestratégicas  

O Brasil e os Brics   

Alguma conclusão preventiva?

 

4. A democracia nos Brics  

A democracia é um critério universal?  

Como se situam os Brics do ponto de vista do critério democrático? 

Alguma chance de o critério democrático ser adotado no âmbito dos Brics? 

 

5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics   

Sobre um funeral anunciado  

Qualificando o debate   

O que define o G7, e deveria definir também o Brics e o G20

Quais as funções do G7, que deveriam, também, ser cumpridas pelo G20? 

 

6. O Bric e a substituição de hegemonias 

Introdução: por que o Bric e apenas o Bric?   

Bric: uma nova categoria conceitual ou apenas um acrônimo apelativo? 

O Bric na ordem global: um papel relevante, ou apenas uma instância formal?  

O Bric e a economia política da nova ordem mundial: contrastes e confrontos 

Grandezas e misérias da substituição hegemônica: lições da História 

Conclusão: um acrônimo talvez invertido 

 

7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009 

Existe um papel para os Brics na crise econômica?  

Os Brics podem sustentar uma recuperação financeira europeia? 

A ascensão dos Brics tornaria o mundo mais multipolar e democrático?

 

8. O futuro econômico do Brics e dos Brics  

Das distinções necessárias 

O Brics representa uma proposta alternativa à ordem mundial do G7? 

O que teriam os Brics a oferecer de melhor para uma nova ordem mundial? 

O futuro econômico do Brics (se existe um...)  

Existe algum legado a ser deixado pelo Brics? 

 

9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição 

O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar 

Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional 

A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil  

A política externa brasileira e sua atuação no âmbito do Brics 

O que busca o Brasil nos Brics? O que deveria, talvez, buscar?

 

10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil 

Uma sigla inventada por um economista de finanças 

Um novo animal no cenário diplomático mundial 

Existe um papel para o Brics na atual configuração de poder? 

Vínculos e efeitos futuros: um exercício especulativo 

 

11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria  

Introdução: o que é um relatório de minoria? 

O que é estratégico numa parceria? 

Quando o estratégico vira simplesmente tático 

Parcerias são sempre assimétricas, estrategicamente desiguais  

A experiência brasileira de parcerias: formuladas ex-ante 

A proliferação e o abuso de uma relação não assumida 

 

Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia  


Indicações bibliográficas 

Nota sobre o autor 

 

Prefácio

Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo

 

 

Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”. 

A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946. 

Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.

Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.

Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.

Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014. 

Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.

De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas. 

Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

 

 

Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política. A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.

O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil. 

Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais. 

Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo. Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de maio de 2022