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sexta-feira, 15 de setembro de 2023

O abraço dos párias - Editorial, O Estado de S. Paulo

O abraço dos párias

Editorial, O Estado de S. Paulo (15/09/2023)

O apelo de Putin ao lunático Kim mostra que suas cartas estão acabando, mas pressagia riscos para a Ucrânia, para as democracias, a estabilidade na Ásia e para a segurança global

Depois da primeira invasão da Ucrânia, em 2014, a Rússia foi expulsa do G-8. Após a segunda invasão, Vladimir Putin faltou às duas cúpulas do G-20 e foi “desconvidado” da última cúpula do Brics pela África do Sul, que se veria obrigada a cumprir uma ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional. Com efeito, sua única visita internacional (sem contar os antigos satélites soviéticos que hoje integram o Tratado de Tasquente, a Otan russa) foi ao Irã. Agora, Putin estendeu o tapete vermelho para Kim Jong-un, o neto do tirano fantoche imposto por Stalin à Coreia do Norte, o Estado mais fechado e totalitário do mundo – uma versão em miniatura, mas com esteroides, do que a Rússia está se transformando sob Putin.

O conclave na base espacial de Vostochny foi celebrado com pompa e circunstância pelas mídias dos dois regimes, e Kim prometeu “apoio pleno e incondicional” à Rússia em sua “luta sagrada contra o Ocidente”. Mas não houve comunicados oficiais. É certo, no entanto, um acordo para o fornecimento de armas à Rússia.

Isso representa um risco iminente para a Ucrânia. Após o fracasso fragoroso de seu Plano A, uma blitzkrieg contra a Ucrânia, Putin aposta numa guerra de atrito, na expectativa de que o tempo exaurirá as forças ucranianas e a solidariedade ocidental. Mas Kiev tem realizado avanços, ainda que modestos, em sua contraofensiva. O Kremlin está com dificuldades de repor sua munição, e os recrutamentos compulsórios têm gerado desgosto na população. A Coreia do Norte tem amplos estoques e fábricas de bombas e foguetes, a maioria baseada em tecnologias soviéticas compatíveis com o arsenal russo. O acordo pode envolver ainda mísseis balísticos de curto alcance, blindados, drones e até mesmo tropas.

Em troca, a Rússia pode oferecer óleo cru e grãos a um país famélico e falido. O principal interesse de Kim, contudo, está na transferência de tecnologia para modernizar seu arsenal. Isso intensificaria as tensões na Ásia. Vizinhos apreensivos com um Estado errático e agressivo poderiam responder escalando sua corrida por arsenais.

A China, que exerce um poder tutelar sobre os dois países, não tem interesse nessa instabilidade e pode interferir para limitar esse escambo sinistro. Mas só em parte. Pequim não vê nenhum problema em uma guerra prolongada na Europa e certamente se compraz com a tal “luta sagrada” contra o “imperialismo” ocidental.

O pacto pode ainda intensificar a degradação do controle global de armas nucleares, já no seu ponto mais periclitante desde a guerra fria. Nem à Rússia nem à China interessa robustecer as capacidades nucleares de Kim. Mas, a depender da barganha, Moscou pode violar seus compromissos com as sanções da ONU à Coreia do Norte e cooperar com o desenvolvimento não só de satélites de espionagem, como de mísseis e submarinos nucleares.

O conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, advertiu que os países “pagarão um preço”. Mas anos de sanções unilaterais e mesmo multilaterais tiveram impacto limitado sobre a Coreia do Norte, e a Rússia tem engendrado meios de contornar essas barreiras para financiar sua guerra. No G-20, as potências ocidentais se viram obrigadas a aliviar as pressões pela condenação da Rússia para garantir uma declaração conjunta e impedir o malogro da presidência rotativa da Índia, com quem contam para reequilibrar as relações de poder na Ásia. O presidente americano, Joe Biden, legitimamente preocupado com uma escalada, tem hesitado em enviar mísseis de longo alcance para a Ucrânia, apesar do apoio bipartidário do Congresso. A hesitação pode se transformar em franca recusa se Donald Trump for eleito no ano que vem, algo com que Putin conta.

Nada de bom pode sair desse abraço sombrio dos párias. Ele pressagia ameaças para a Ucrânia, para a estabilidade na Ásia, para o eixo democrático e para a segurança global. Se há um aspecto positivo, é o fato de que ele revela que as cartas de Putin estão se esgotando. Mas mesmo esse consolo é ambivalente. Déspotas desesperados são mais, não menos, perigosos.


sexta-feira, 8 de setembro de 2023

O que esperar de aliança por etanol que o Brasil, Índia e EUA devem lançar amanhã no G20 - Felipe Frazão (O Estado de S. Paulo)

 O que esperar de aliança por etanol que o Brasil, Índia e EUA devem lançar amanhã no G20

Por Felipe Frazão


ENVIADO ESPECIAL A NOVA DÉLHI - 
Brasil, Índia e Estados Unidos planejam lançar neste sábado, 9, uma aliança global de biocombustíveis, como forma de fomentar, sobretudo, a produção e o consumo do etanol no mundo. Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden, e o anfitrião, o primeiro-ministro Narendra Modi, lideram a iniciativa e participam do evento de lançamento, em paralelo à 18ª Cúpula do G-20, em Nova Délhi. A iniciativa conta com o apoio do setor produtor de etanol no Brasil, e o governo vê na Índia um mercado potencialmente interessante para o biocombustível brasileiro. Analistas alertam, no entanto, que a demanda mundial pelo produto ainda é muito baixa. A aliança de biocombustíveis reúne três dos cinco principais produtores de etanol do mundo. Os EUA, com seu etanol de milho, respondem por 55% da produção mundial, segundo a RFA (Associação de Combustíveis Renováveis). Na vice-liderança do ranking, o Brasil produz o equivalente a 27% desse total. A Índia é a quinta colocada, com 3%, atrás da UE, com 4,8% e da China, com 3,1%. De olho em mercados emergentes 

A ideia da aliança, batizada de Global Biofuels Alliance – GBA (em inglês) surgiu de uma demanda da indústria de produção de etanol, que começou a se articular em janeiro com representantes do setor nos demais países. Participam as associações do setor privado de cada país: a brasileira Única, a indiana Isma - Indian Sugar Mills Association -, a norte-americana US Grains Council e a europeia ePure. Elas acabaram adiando o projeto, para inserir o setor público. Em julho, os ministros de Energia dos três países que encabeçam a estratégia lançaram a iniciativa em Goa, em reunião preparatória do G-20. O plano é vender biocombustível a nações em desenvolvimento, que podem ter no uso do etanol uma forma de redução da pegada de carbono no setor de transporte, seja terrestre, aéreo ou marítimo. 

 Nesse cenário, governo e setor privado apostam que a expansão do mercado global de etanol vai abrir caminho ainda para maior inserção no mundo da engenharia automotiva brasileira, que poderá virar uma referência por já ter consolidado o desenvolvimento de veículos a etanol, bi-combustíveis e autopeças. Biocombustíveis e descarbonizaçao Evandro Gussi, presidente da principal associação brasileira do setor, a Única (União da Indústria de Cana de Açúcar e Bionergia), afirma que o futuro é da coexistência de alternativas aos combustíveis fósseis. Segundo ele, o mercado vai se expandir globalmente nos próximos 25 anos com demanda crescente pelos biocombustíveis – até três vezes maior no transporte terrestre - e o desafio é convencer as indústrias a considerarem o etanol como alternativa em diversos mercados, para adaptação de automóveis, de aviões e embarcações. O argumento da Única é que nem sempre a solução da eletrificação basta. A Índia é considerada um caso que exemplifica o problema. Cerca de 76% da energia elétrica do país vem de combustíveis fósseis, sobretudo a queima de carvão mineral, um grande emissor de poluentes, que responde por cerca de 70%. Portanto, eletrificar a frota nacional não bastaria. É daí que vem a aposta no etanol. 

A África do Sul é outro exemplo de mercado potencial. “Temos que descarbonizar. Como vamos fazer depende da melhor solução, do que é mais apto para a situação econômica, social e ambiental de cada país e região”, afirma Gussi. “Eletrificação não é sinônimo de descarbonização. Se a energia elétrica é mais suja, o carro a etanol pode ser melhor do que o elétrico. Vamos ter espaço para os dois. " “Desde segurança para motores, sistema de injeção dos veículos, até controle da pegada de carbono, o Brasil produziu muita informação. A troca com indianos em larga escala fez com que entendêssemos mais e criamos um centro de excelência virtual onde tem um repositório desse material. A ideia agora é que isso se expanda numa aliança global de modo a acelerar esses processos nos demais países com vocação na Ásia, na África e na América Latina.” Índia como mercado estratégico 

Além do setor privado, o Itamaraty também vê o mercado indiano é estratégico. O governo de Narendra Modi anunciou recentemente um plano para aumentar a mistura do etanol na gasolina para 20%, até 2025. O primeiro-ministro passou a considerar o etanol como uma das prioridades estratégicas do país. Em 2019, a mistura era de 1,4% na gasolina, e agora está no patamar de 10%. “Não vamos exportar etanol para a Índia, mas garantir que possa ser parte da solução de descarbonização. Já existe na Índia a definição política de que o etanol é parte da solução, medida de segurança energética e de criação de empregos”, diz o embaixador do Brasil em Nova Délhi, Kenneth Nóbrega. “Vamos consolidar o etanol como rota tecnológica. Vamos exportar conhecimento, A oportunidade de ganharmos dinheiro é com o motor flexfuel, na cadeia de produção industrial, com propriedade intelectual, know-how, melhoria de processos na indústria do açúcar, máquinas e tecnologia de autopeças”, acrescenta. Baixa demanda internacional Na avaliação de João Victor Marques, pesquisador da FGV Energia,no entanto, um dos desafios da aliança será lidar com um mercado global que ainda tem uma baixa demanda pelo biocombustível. “Precisa criar uma demanda que muitos países não têm”, diz Marques. Hoje, a participação do biocombustível na matriz de consumo energético nos transportes é de 21% no Brasil, mas, na média global, é de apenas 4%. “Não tenho clareza de quais serão os instrumentos dessa cooperação que vai surgir entre os países, mas deve trazer algum tipo de geração de fomento de negócios”, afirma o pesquisador. Ainda de acordo com o especialista da FGV, a nova aposta no etanol precisa alcançar mais países para funcionar. “Esforços foram feitos no passado, no governo Bush e nos primeiros governos Lula, para tornar o etanol uma commodity internacional. Era uma iniciativa mais bilateral e que acabou sem um alcance global”, lembra. A Única também reconhece a necessidade de expansão do etanol para outros países. “Temos uma solução tecnológica que entrega a descarbonização que o mundo precisa, mas ela está muito concentrada no Brasil. 

Ficar com uma solução isolada, ilhada, em energia, não é inteligente. Ninguém quer um novo gás russo, ninguém quer um novo Oriente Médio da década de 1970″, cita Evandro Gussi. Como funcionará a aliança A aliança deve ser lançada com 19 países participantes, segundo estimativas de fontes envolvidas no projeto. Os países já deixaram prontos os protocolos de adesão e participação, com minutas de textos negociadas por diplomatas e os respectivos órgãos governamentais de energia. Eles vão criar uma organização interna da GBA. Brasil, Índia e Estados Unidos querem criar um “cinturão de bioenergia”, na zona tropical, para irradiar conhecimento, disseminar o consumo e estimular a produção etanol pelo mundo. A aliança vai fomentar ainda o biodiesel, o biometano e os SAF (Sustainable Aviation Fuels), cujo desenvolvimento também pode incluir o uso do etanol, por meio do processo conhecido como ATJ (Alcohol‐to‐Jet), para obtenção de bioquerosene de aviação. Entre os membros confirmados estão Argentina, Canadá, Paraguai, Bangladesh, Ilhas Seychelles, Ilhas Maurício, Quênia, Uganda e Emirados Árabes Unidos. Há interesse do setor de abrigar mais países em desenvolvimento na Ásia e na África. Na Europa, a Itália foi um dos únicos a manifestar interesse em ingressar, de acordo com embaixadores a par das negociações. 

Países da América Central também são vistos como potenciais integrantes. Além do Brasil, Índia e Estados Unidos, estarão representados no lançamento a África do Sul, a Argentina, os Emirados Árabes Unidos, a Itália e as Ilhas Maurício, dentre os membros da aliança; e Bangladesh, Canadá e Singapura, como observadores, segundo o governo federal. Entre os países vistos como potenciais produtores em grande escala, mapeados pelo setor privado, estão Indonésia, Tailândia, Vietnã, Paquistão, Filipinas, África do Sul, Moçambique, Angola, Quênia, Etiópia, Colômbia, Panamá e El Salvador. 
COLABOROU LUIZ GUILHERME GERBELLI 

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Declínio para a Rússia é problema para o mundo - Oliver Stuenkel (O Estado de S. Paulo)

 Declínio para a Rússia é problema para o mundo 

Oliver Stuenkel
O Estado de S. Paulo, 28/08/2023

Uma das principais fontes de instabilidade internacional são deslocamentos de poder. Um exemplo clássico disso são nações que se encontram em franca ascensão: confiantes, suas lideranças políticas muitas vezes buscam uma atuação internacional mais assertiva, investem em seu poder militar e acabam desafiando potências já estabelecidas. A ascensão dos EUA há cem anos e a da China ao longo das últimas décadas são exemplos clássicos de como a emergência de uma grande potência pode fragilizar o status quo. O atual caso da Rússia, porém, mostra que o declínio de um ator relevante também pode representar um risco, criando vácuos de poder em suas fronteiras ou deixando suas lideranças políticas mais agressivas para compensar os fracassos no âmbito doméstico. O atual declínio russo independe do desfecho da invasão russa à Ucrânia ou do destino político do presidente Vladimir Putin. Os problemas da nação de maior extensão do planeta são mais fundamentais e se refletem nos chocantes dados demográficos: por exemplo, um homem russo com 15 anos de idade hoje tem a mesma expectativa de vida de um homem no Haiti, país em estado de anarquia e há décadas o mais pobre das Américas. Trata-se de uma expectativa de vida mais baixa que a do Iêmen e a do Zimbábue, que figuram entre os países mais pobres do planeta. Na média, um homem russo morre 18 anos antes de um homem japonês. À primeira vista, poderia se presumir que o dado se deve ao elevado número de fatalidades de soldados russos na invasão à Ucrânia. Porém, trata-se de dados oficiais do governo russo, coletados antes do início da guerra. Desde a invasão russa à Ucrânia, a situação demográfica piorou ainda mais: estima-se que 120 mil soldados russos morreram nas batalhas, e aproximadamente 900 mil russos emigraram, muitos deles jovens, representando em torno de 1% da força laboral do país. De acordo com o ministério das Comunicações do governo russo, 10% de todos os profissionais da área de TI emigraram desde o início da guerra, verdadeira catástrofe econômica considerando a importância estratégica do setor. Uma consequência da baixa expectativa de vida dos homens, da guerra e da fuga ao exílio é o desequilíbrio de gênero. Hoje, na Rússia, há 10 milhões de mulheres a mais do que homens. Não se trata de um problema recente: entre 1993 e 2009, por exemplo, a população russa encolheu em quase seis milhões (dados oficiais mostram um aumento recente, que se deve à anexação da península ucraniana da Crimeia). Tudo isso é ainda mais notável porque a Rússia não é um país pobre. É urbanizado, possui indústrias altamente sofisticadas — sobretudo no setor bélico —, a maior quantidade de armas nucleares do mundo, uma produção cultural admirada mundo afora e uma taxa de alfabetização de quase 100%. Além disso, goza de grandes reservas de petróleo e gás, e é o maior exportador mundial de trigo — beneficiando-se, inclusive, das mudanças climáticas, que aumentam a quantidade de terras férteis. Vários outros países ao redor do mundo, sobretudo no Leste Asiático e na Europa, sofrem com crises demográficas. Nenhum deles, porém, sofre com uma baixa tão grande da expectativa de vida ou uma fuga de elites qualificadas tão expressiva. Diferentemente da Rússia, a Europa atrai, a cada ano, milhões de migrantes jovens e motivados. A crise demográfica russa e a emigração de pessoas qualificadas — produto de problemas profundos no país — são elementos-chave para compreender a constante glorificação por Vladimir Putin do “russki mir” (mundo russo), a retórica nostálgica de um passado mistificado, a demonização do Ocidente e a política externa mais agressiva, envolvendo guerras contra vizinhos menores como a Georgia e, mais recentemente, a Ucrânia, que ajudam promover o nacionalismo e a sensação permanente de estar sob ameaça externa. Como ficou evidente no último 23 de agosto, quando o avião de Yevgeny Prigozhin, chefe do grupo Wagner, caiu perto de Moscou, um conflito militar de grandes dimensões ajuda não apenas a desviar a atenção pública de outros problemas, como também para promover expurgos e eliminar opositores com mais facilidade — presumindo que, como acreditam numerosos analistas, o governo russo tenha ligação com a morte do mercenário. Por fim, um líder sabidamente preocupado com seu legado nos livros de história, como Putin, também sabe que, apesar de ter ajudado a estabilizar o país na virada do século, seu saldo desde então é, predominantemente, negativo, e difícil de ser revertido — a não ser que seja lembrado por ter liderado a expansão territorial da Rússia. Não por acaso, em conversa com um oligarca russo no início da invasão à Ucrânia, o chanceler russo Lavrov — que não havia sido informado com antecedência sobre a decisão do presidente, disse: “(Putin) tem três conselheiros: Ivã IV, Pedro o Grande e Catarina II” — todos lembrados por suas conquistas territoriais. 

terça-feira, 8 de agosto de 2023

CÚPULA AMAZÔNICA - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 CÚPULA AMAZÔNICA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 8/08/2023

 

            Pela quarta vez, os presidentes dos países amazônicos vão se encontrar no âmbito da cúpula da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Criada em 1995, a Organização, com sede em Brasília, integrada por Brasil, Bolívia, Peru, Venezuela, Guiana, Surinã, Colômbia e Equador, é uma decorrência de um tratado assinado em 1978. Para a reunião ocorrendo hoje e amanhã em Belém do Pará, foram convidados representantes de países com florestas tropicais como a Indonésia, Congo Brazzaville, República Democrática do Congo e de entidades governamentais e civis para debater o desenvolvimento econômico associado à preservação ambiental.

A OTCA não tem atuação autônoma. Apoia as decisões negociadas e aprovadas pelos oito países membros e desenvolve projetos e programas na Amazônia. A cooperação de organismos internacionais para a preservação da floresta poderia ser muito ampliada e complementaria os esforços nacionais, caso os governos decidam dar maior protagonismo a OTCA e ampliar a atuação da instituição junto aos organismos internacionais, inclusive financeiros.

            A OTCA ocupou, até aqui, um espaço reduzido na política externa brasileira. Muito pouco aproveitada, a Organização foi ignorada totalmente na última década, apesar de todas as críticas que a política ambiental brasileira vem enfrentando no exterior. Tivesse o Tratado sido melhor aproveitado, o foco das criticas teria sido dividido entre todos os países amazônicos que, em larga medida, deixaram de combater os ilícitos que ocorreram na região com o desmatamento, as queimadas e o garimpo. Mais recentemente, toda essa situação ficou agravada com a crescente presença do crime transnacional envolvendo drogas, armas e minérios. Sem falar no tratamento dispensado às comunidades indígenas.

No encontro presidencial, do ponto de vista diplomático, a cúpula representará oportunidade para retomar e reforçar o diálogo e a região amazônica. A cúpula é o início de um processo com a definição de uma nova agenda para o desenvolvimento integrado com inclusão social e responsabilidade climática, através de mecanismos concretos de cooperação e ampliação dos laços entre órgãos do governo, sociedade civil e acadêmica dos oito países. 

Na preparação do encontro, o presidente Lula encontrou-se com o presidente Petro da Colômbia, que havia convidado a OTAN e os EUA para apoiar atividades para reduzir o desmatamento da floresta do lado colombiano e havia manifestado preocupação com a exploração de petróleo na região.

O encontro de cúpula não tem uma agenda definida, devendo cada chefe de governo apresentar suas propostas e sugestões. O Brasil deverá reiterar seu compromisso de desmatamento zero até 2030 e, se possível, criar metas comuns de desmatamento; buscar maior integração nos esforços das ações para o combate aos ilícitos, representados pelas queimadas, pelo garimpo, a destruição da floresta e para a proteção das comunidades indígenas em toda a região. O combate ao crime transnacional que hoje se espalha pelos países amazônicos, assim como a maior e mais efetiva presença do Estado certamente estará na pauta do encontro. A proposta formulada por Lula da inclusão no âmbito do TCA do Parlamento Amazônico criado em 1989, com sede em Lima, hoje fora do Tratado, também deverá ser apreciada.

Será importante que nessa reunião de cúpula seja explicitada a vontade política de fortalecer a cooperação entre todos os Estados Amazônicos e a OTCA. O trabalho da sociedade civil e das comunidades originárias deveria ser estimulado e apreciado para que sua voz seja ouvida pelos governos nas questões de desenvolvimento sustentável, cujos desafios econômicos, sociais, tecnológicos são gigantescos. Até aqui, os Estados amazônicos atuaram ou deixaram de atuar de forma isolada e descoordenada. As políticas e ações nacionais deveriam ser complementados por ações coletivas, discutidas de forma regional no âmbito do TCA. Vigilância nas fronteiras para combater o crime organizado, cooperação transnacional das polícias, ações para reduzir os ilícitos, controle dos incêndios, da qualidade da água e do mercúrio utilizado no garimpo ilegal, entre outros desafios, muito se beneficiariam da coordenação entre os governos da região amazônica. Ações para atrair financiamento internacional e critica `as barreiras comerciais, sem mencionar a União Europeia, deverão ser examinadas. A questão da proibição exploração de petróleo na Amazônia e a meta comum de desmatamento zero, por falta de consenso, deverão constar, de forma indireta, no exageradamente longo documento final da Cúpula. Questão relevante para o sucesso de uma ação coordenada será a confiança mútua e um real compromisso de transparência na troca de informações sobre essas questões para facilitar a tomada de decisões rápidas e eficientes e a busca de recursos externos, sempre preservando a soberania de todos os países.

Espera-se que as posições conjuntas do encontro sejam levadas a outros fóruns relevantes como a Assembleia Geral das Nações Unidas, a Cúpula do G-20 a ser presidida pelo Brasil em 2024 e a COP a realizar-se em Dubai proximamente, onde a sustentabilidade ambiental será discutida junto com questões econômicas e sociais da região.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras.

 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

A verdadeira diplomacia ambiental que o Brasil deveria estar conduzindo (OESP)

 Grato a Walmyr Buzatto pela transcrição desta matéria.

Editorial do Estadão de hoje expõe a triste realidade do nosso País. 

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“O País tem enor­me po­ten­ci­al de geração de cré­di­tos de carbo­no, mas explora me­nos de 1% da ca­pa­ci­da­de. É ho­ra de re­co­nhe­cer o va­lor de nossas florestas e agir pa­ra mantê-las em pé”

O tesouro verde do Brasil

O Estado de S. Paulo.

24 de jul. de 2023


A união entre Estado e sociedade em prol da preservação das florestas brasileiras em pé se impõe como obrigação moral, no sentido de dar segurança às parcelas da população mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas e de legar para as gerações futuras um planeta sustentável. Além disso, diante da crescente demanda mundial por créditos de carbono, a conservação de áreas verdes intactas é também um investimento inteligente que pode gerar bilhões de dólares para o País. Não são poucos os investidores e empresas que olham para nossas florestas preservadas como um verdadeiro tesouro verde.

De acordo com a consultoria McKinsey, o Brasil detém, sozinho, 15% do potencial global de captura de carbono por meios naturais, ou seja, por suas florestas preservadas. Trata-se da forma mais simples e econômica de gerar créditos de carbono, que podem ser vendidos para empresas que poluem o meio ambiente como forma de compensação para atingimento de metas. Contudo, o País ainda claudica nesse mercado extremamente promissor. Segundo a McKinsey, o Brasil explora menos de 1% de sua capacidade anual de geração de créditos de carbono – e segue limitado a projetos de conservação e geração de energia a partir de resíduos, não de ações de reflorestamento.

Como se vê, há no território nacional esse gigantesco tesouro verde, literalmente, à espera de melhor aproveitamento. O bom manejo das florestas em pé pode levar o Brasil a contribuir decisivamente para o esforço global de combate às mudanças climáticas e prevenção de desastres naturais, cada vez mais intensos e frequentes, e ainda gerar recursos financeiros que poderão ser empregados para melhorar a qualidade de vida de milhões de cidadãos.

Ainda segundo a McKinsey, a demanda por créditos de carbono pode crescer 15 vezes ou mais até 2030. Para 2050, a consultoria projeta um crescimento ainda maior: 100 vezes. Está-se falando de um volume total negociado de cerca de US$ 50 bilhões em créditos de carbono só até 2030. Boa parte desses recursos pode vir para o Brasil, caso a manutenção das florestas em pé seja elevada à condição de prioridade nacional.

É consensual entre especialistas que a contenção do desmatamento, sobretudo do desmatamento ilegal, é a principal contribuição que países emergentes, que ainda mantêm grandes porções de florestas preservadas, podem dar para reduzir as emissões de carbono e, assim, frear o processo de mudança no clima do planeta. Em que pese a enorme parcela de responsabilidade dos países desenvolvidos nesse esforço global, afinal, foram os primeiros a desmatar suas áreas verdes em nome do progresso econômico, o fato é que, hoje, são países como o Brasil que desempenham papel crucial para limitar o aquecimento global a 1,5 grau Celsius até 2050.

O Estado, como detentor do monopólio da violência, tem o dever de reprimir de forma implacável o ecossistema criminoso que se instalou na Região Amazônica, mas não só lá, para explorar, privada e ilicitamente, riquezas naturais que são patrimônio público, sem falar na apropriação das florestas e rios da Região Norte como novas rotas do tráfico internacional de drogas. Reiteradamente, este jornal tem alertado para os múltiplos e crescentes danos que a leniência do Estado no combate ao crime organizado em áreas de preservação ambiental tem causado ao País.

A iniciativa privada, por sua vez, tem feito sua parte para recuperar áreas verdes degradadas. É notável, nesse sentido, o investimento do Grupo Votorantim para transformar uma área de Mata Atlântica de 31 mil hectares no Vale do Ribeira, em São Paulo, numa reserva florestal. Essa opção pela conservação de florestas intactas e por ações de reflorestamento de áreas desmatadas como investimentos promissores tem atraído cada vez mais empresas e grupos de investidores.

É mais que hora de reconhecer a conservação ambiental como um valor e de agir para que disso advenham um planeta mais sustentável, mais riquezas para o País e, principalmente, melhores condições de vida para o povo brasileiro.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

O falso salvador do mundo - Lourival Sant’Anna O Estado de S. Paulo

 Grato a Augusto de Franco pela transcrição em seu blog, de onde copiei este artigo de Lourival Sant'Anna. Meus comentários iniciais: 

Não são só posições ideológicas ou princípios moralmente indefensáveis que movem a péssima diplomacia de Lula 3 (como aliás já era em Lula 1 e 2). Ele também exibe distorções notáveis em termos de cálculo estratégico, ao apostar num rápido e incontornável declínio americano e numa indefenida e propriamente indesejável “nova ordem global” numa aliança estreita com duas grandes autocracias que estão a anos-luz de distância de nossa própria régua moral, em democracia e DH. Pretende levar o Brasil a embarcar na canoa furada do Brics, claramente dominado pelo peso dos interesses nacionais chineses? E agora russos? O Itamaraty se submete passivamente a todas essas loucuras? (PRA)


O falso salvador do mundo

Lourival Sant’Anna, O Estado de S. Paulo (23/07/2023)

Lula embarcou em uma fantasia calcada em premissas moralmente indefensáveis

O forte viés ideológico da política externa do governo Lula cria fraturas na América Latina e inviabiliza o exercício da liderança que naturalmente caberia ao Brasil. A complacência de Lula com as ditaduras russa, venezuelana e nicaraguense, assim como sua repulsa ao livre-comércio e ao Ocidente, anulam o peso da credencial do presidente no que realmente interessa ao mundo quando olha para o Brasil: a proteção ambiental.

O desmatamento da Amazônia foi reduzido em 34% no primeiro semestre deste ano. A conquista confirma as incomparáveis credenciais de Lula e da ministra Marina Silva, que conseguiram reduzir o desmatamento em 84% entre 2004 e 2012, enquanto o PIB do agronegócio crescia espetaculares 75%.

Lula poderia surfar nesse inestimável capital, para extrair concessões de Europa e EUA. Mas prefere atacar a ambos, responsabilizando-os pelo flagelo da Ucrânia, pela corrida armamentista e pela inflação de alimentos, como se não fossem consequências da guerra expansionista de Vladimir Putin.

A palavra “Rússia” não pôde sequer constar da declaração final da cúpula União Europeia-América Latina, por causa da preocupação do governo brasileiro em não melindrar o ditador russo. Para indignação do presidente do Chile, Gabriel Boric: “Hoje é a Ucrânia, amanhã pode ser qualquer um de nós”.

Outro presidente de esquerda, Gustavo Petro, da Colômbia, também criticou o imperialismo russo. Depois descambou para denunciar a invasão de Iraque, Líbia e Síria. Cobri as três guerras para o Estadão. A invasão do Iraque foi um crime, mas os EUA não colonizaram o país, como a Rússia tenta fazer com a Ucrânia. Líbia e Síria foram palcos de revoluções populares que receberam apoio ocidental.

FRATURAS. Boric e os presidentes do Paraguai, Mario Abdo Benítez, e do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, já haviam se insurgido contra o desagravo de Lula ao ditador Nicolás Maduro na véspera da cúpula sulamericana, em 30 de maio, em Brasília. Lula justificou com a pérola “democracia é um conceito relativo”. Os presidentes de Equador e Peru também rejeitam essas posições.

Por causa de seu apoio ao chavismo desde sempre, Lula não goza da confiança da oposição venezuelana para mediar uma negociação entre ela e o regime.

Por fim, com sua iniciativa de reabrir o acordo com a UE para proteger o mercado de compras governamentais, Lula também frustra Uruguai e Paraguai, e futuramente a Argentina, com a saída de cena de seu amigo Alberto Fernández, nas eleições de outubro.

Lula trocou oportunidades reais de liderança e benefícios para o Brasil por uma fantasia de salvador do mundo, calcada em premissas moralmente indefensáveis.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Ucrânia se queixa de silêncio do Brasil sobre explosão de barragem de hidrelétrica - Felipe Frazão (O Estado de S. Paulo)

 Ucrânia ainda aguarda uma nota do Itamaraty, alguma manifestação do governo brasileiro sobre a destruição da barragem e a inundação por ela provocada. (PRA)


Ucrânia se queixa de silêncio do Brasil sobre explosão de barragem de hidrelétrica

Por Felipe Frazão

O Estado de S. Paulo, 06/06/2023 | 22h27


BRASÍLIA - O governo da Ucrânia esperava mais “apoio” do Brasil e gostaria que o governo Luiz Inácio Lula da Silva levantasse a voz contra a explosão da barragem de Kakhovka, disse nesta terça-feira, dia 6, a embaixada do país em Brasília. A detonação da barragem da usina hidrelétrica é considerada por Kiev um ato de terrorismo provocado pela Rússia.

O encarregado de negócios ucraniano, Anatoliy Tkach, atualmente chefe da missão diplomática no País, disse ter informado o Itamaraty sobre o incidente na represa e a situação de emergência, mas afirmou que não recebeu nenhuma resposta.

“Evidentemente gostaríamos de contar com a condenação do governo brasileiro contra atos de terrorismo em massa”, afirmou Tkach. “A embaixada informou ao governo sobre a explosão na usina de Kakhovka. Até o momento não temos um comunicado do governo brasileiro. Gostaríamos de ter um maior apoio nas situações críticas, em particular como nessa da usina.”

Até a noite desta terça-feira, a diplomacia brasileira não havia publicado nenhuma nota sobre o caso, o que contrasta com reações de conflitos em outras partes do mundo, como na África e no Oriente Médio. O presidente Lula também não falou sobre o assunto.

Segundo Tkach, os russos tinham como objetivo atrapalhar a contraofensiva militar ucraniana, na tentativa de recuperar terreno na região e fazer as forças russas recuarem. Segundo ele, os danos causados pelos russos pretendiam ainda provocar mortes, seja de civis ou militares. O diplomata afirmou que Kiev ainda não contabilizou as vítimas.

“Isso é um crime de guerra, cometido intencionalmente, e foi planejado. As Forças Armadas russas discutiram essa possibilidade, assim como propagandistas russos na TV”, disse o encarregado de negócios a jornalistas. “A Rússia é totalmente responsável. A explosão da barragem é o maior desastre causado pelo homem na Europa nas últimas décadas. Não há dúvida de que a destruição proposital da barragem foi realizada pelos invasores russos para criar um desastre ecológico e complicar a desocupação dos territórios ucranianos. É mais um crime inédito que terá consequências ecológicas, econômicas e que ameaça a radiação e a segurança alimentar. Os efeitos serão sentidos não só pela população do Sul da Ucrânia, mas também dos outros países.”

O governo de Volodimir Zelenski considera que os russos planejaram um ato de sabotagem. Eles falam em “terrorismo” contra a infraestrutura crítica da Ucrânia. Segundo o diplomata, autoridades ucranianas já sabiam que os militares russos haviam instalado, há cerca de um ano, explosivos na barragem da usina hidrelétrica, que fica em uma região ocupada por Moscou. Ele diz que um míssil não causaria danos comparáveis em extensão.

A explosão vai alagar cerca de 80 assentamentos civis e pode afetar a produção agrícola na área. A barragem, localizada na cidade de Nova Kakhovka, sustentava um volume de 18 milhões de metros cúbicos de água. Ao menos 42 mil pessoas deveriam ser removidas, sendo 17.130 no território controlado por forças ucranianas, na marquem esquerda do rio Dnipro, e cerca de 25 mil em terreno sob comando russo, na margem direita. As estimativas são do governo ucraniano.

A expectativa de Kiev é que a água continue a subir nas cidades por ao menos cinco dias e que o nível caia ao longo do tempo. A altura máxima ainda não foi atingida. Haverá problemas para abastecimento de água potável nas regiões de Kherson, Dnipro, na península da Crimeia e Zaporizhzia.

A usina nuclear em Zaporizhzhia é abastecida com água da mesma represa, cujo nível caiu, mas segundo a embaixada da Ucrânia ainda não há risco maior apresentado ao funcionamento até o momento.

A cobrança da Ucrânia ocorre depois do desencontro entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Volodimir Zelenski, em Hiroshima, no Japão, por ocasião da cúpula do G-7. Questionado sobre o episódio, o chefe da missão ucraniana disse que continua em contatos com o governo brasileiro e que há intenção de um diálogo de alto nível. Ele repetiu a versão oficial de que houve uma incompatibilidade de agendas durante o G-7. Antes, Lula dissera que Zelenski não apareceu para a conversa, enquanto o presidente da Ucrânia afirmou que não foi o culpado pelo desencontro.

O diplomata apelou que os “parceiros internacionais” apoiem a “fórmula da paz” proposta por Zelenski. O plano com as condições de Kiev para o fim do conflito inclui dez pontos, como segurança nuclear, ambiental, energética, punição pelos crimes, devolução total das áreas tomadas e libertação de presos. A proposta difere dos termos que Lula considera factíveis - o presidente já disse que tanto Zelenski quando Vladimir Putin tenham que ceder um pouco.

https://www.estadao.com.br/internacional/ucrania-se-queixa-de-silencio-do-brasil-sobre-explosao-de-barragem-de-hidreletrica/


sexta-feira, 12 de maio de 2023

Vladimir Putin é o tolo mais perigoso do mundo - Thomas Friedman (O Estado de S. Paulo)

Vladimir Putin é o tolo mais perigoso do mundo

Por Thomas L. Friedman
O Estado de S. Paulo, 12/05/2023 | 03h00

Não tenho escrito muito a respeito da guerra na Ucrânia ultimamente porque pouco mudou estrategicamente desde os primeiros meses deste conflito, quando três fatos gerais orientavam praticamente tudo — e ainda orientam.

Fato n.º 1: conforme escrevi no primeiro momento, quando uma guerra desta magnitude começa, a pergunta-chave que você se faz enquanto colunista de assuntos internacionais é muito simples: onde eu deveria estar? Em Kiev? No Donbas, na Crimeia, em Moscou, Varsóvia, Berlim, Bruxelas ou Washington?

E desde o início desta guerra há um único lugar onde é possível compreender seu timing e sua direção — dentro da cabeça de Vladimir Putin. Infelizmente, Putin não concede vistos de entrada ao seu cérebro.

O que é um baita problema, porque esta guerra emergiu completamente de lá — sem, agora nós sabemos, nenhum aporte de seu gabinete nem de seus comandantes militares — e certamente sem nenhum anseio massivo do povo russo. Portanto, a Rússia será impedida na Ucrânia, vencendo ou perdendo, somente quando Putin decidir parar.

O que leva ao fato n.º 2: Putin nunca teve um Plano B. Agora é óbvio que ele pensou que iria entrar em Kiev como quem baila uma valsa, capturá-la em uma semana, instaurar um lacaio como presidente, meter a Ucrânia no bolso e pôr fim a qualquer outra expansão da União Europeia, da Otan ou da cultura Ocidental na direção da Rússia. E depois faria sua sombra pairar sobre toda a Europa.

O que leva ao fato n.º 3: Putin se colocou em uma situação em que não consegue vencer, não pode perder e não pode parar. Ele não conseguirá mais tomar controle de toda a Ucrânia de nenhuma maneira. Mas, ao mesmo tempo, não pode permitir ser derrotado depois de todas as vidas russas perdidas e todo o dinheiro que gastou. Portanto, ele não pode parar.

Plano A x Plano B
Para colocar de outra maneira, já que Putin nunca teve um Plano B, ele adotou por padrão uma guerra de atrito punitiva, bombardeando com frequência e indiscriminadamente cidades e infraestruturas civis ucranianas na esperança de ser capaz de drenar, de qualquer maneira, sangue suficiente dos ucranianos e exaurir o suficiente os aliados ocidentais de Kiev até que lhe deem uma fatia grande o suficiente do russófono leste ucraniano que ele seja capaz de vender para o povo russo como uma grande vitória.

O Plano B de Putin é disfarçar o fracasso de seu Plano A. Se esta operação militar tivesse um nome honesto, poderia ser chamada de Operação Salvem Minha Reputação.

O que torna esta guerra um dos conflitos mais doentios e sem sentido dos tempos modernos — um líder destruindo a infraestrutura civil de um outro país até obter um subterfúgio para esconder o fato que foi um completo imbecil.

Pôde-se perceber no discurso de Putin no Dia da Vitória, pronunciado na terça-feira, em Moscou, que agora ele busca se agarrar a qualquer lógica para justificar uma guerra que ele iniciou com base na própria fantasia de que a Ucrânia não é um país verdadeiro, e sim parte da Rússia. Ele alegou que sua invasão foi provocada por “globalistas e elites” ocidentais que “falam a respeito de sua exclusividade, antagonizam as pessoas e dividem a sociedade, provocam conflitos sangrentos e insurreições, semeiam ódio, russofobia, nacionalismo agressivo e destroem valores familiares tradicionais que tornam as pessoas seres humanos”.

Uau. Putin invadiu a Ucrânia para preservar os valores da família russa. Quem poderia imaginar? Eis um líder com dificuldades para explicar para seu povo por que ele começou uma guerra com um vizinho fraco que, afirma ele, não é um país de verdade.

O disfarce do ditador
Nós poderíamos perguntar por que um ditador como Putin precisa de disfarce. Ele não é capaz de fazer seu povo acreditar no que quiser?

Acho que não. Se analisarmos o comportamento de Putin, parece que ele está bastante assustado hoje com dois temas: aritmética e história russa.

Para entender por que esses temas o assustam, precisamos primeiro considerar o ambiente que o envolve — algo captado habilmente, à medida que transcorre, na letra da canção “Everybody Talks” (Todo mundo fala), de uma das minhas bandas de rock favoritas, Neon Trees. O refrão principal é:

Ei, amigo, você não vai olhar pra mim?

Eu posso ser seu próximo vício.

Ei, amigo, o que você tem para dizer?

Tudo o que você me traz é ficção.

Eu sou um tolo desprezível, e isso acontece o tempo todo.

Eu descubro que todo mundo fala.

Todo mundo fala, todo mundo fala.

Começa com um sussurro.

Uma das maiores lições que aprendi como repórter de assuntos internacionais trabalhando em países autocráticos é que não importa quão estritamente controlado seja o lugar nem quão brutal e autoritário seja seu ditador, TODO MUNDO FALA.

Todos sabem quem está roubando, quem está fraudando, quem está mentindo, quem está tendo algum caso extraconjugal e com quem. Começa com um sussurro e com frequência permanecem assim, mas todo mundo fala.

Putin claramente também sabe disso. Ele sabe que mesmo se tomar alguns quilômetros quadrados a mais no leste da Ucrânia e mantiver a Crimeia, assim que ele parar sua guerra todas as pessoas farão as contas cruéis sobre seu Plano B — começando por uma subtração.

Prejuízos da guerra
A Casa Branca declarou na semana passada que estimados 100 mil combatentes russos morreram ou se feriram na Ucrânia somente nos cinco meses recentes e que aproximadamente 200 mil morreram ou se feriram desde que Putin começou esta guerra, em fevereiro de 2022.

Trata-se de um número grande de baixas — mesmo em um país grande — e podemos perceber que Putin está preocupado com a possibilidade de seu povo falar disso porque, além de criminalizar qualquer forma de dissenso, em abril ele se apressou em aplicar uma nova lei que reprime recrutas fujões. Agora qualquer um que não se apresente ao serviço militar sofrerá restrições sobre operações bancárias, vendas de propriedades e até para obter carteira de motorista.

Putin não agiria dessa maneira se não temesse que, apesar de seus melhores esforços, todos estivessem sussurrando a respeito de como a guerra está indo mal e como evitar combater por lá.

Leia o ensaio recente no Washington Post de Leon Aron, historiador dedicado a estudar a Rússia de Putin e pesquisador do American Enterprise Institute, a respeito da visita de Putin, em março, à cidade ucraniana de Mariupol, atualmente ocupada pela Rússia.

“Dois dias depois do Tribunal Penal Internacional acusar Putin de crimes de guerra e emitir um mandado para sua prisão”, escreveu Aron, “o presidente russo passou algumas horas em Mariupol. Ele foi filmado parando no ‘microdistrito Nevski’, inspecionando um novo apartamento e ouvindo por alguns minutos moradores efusivamente agradecidos. Conforme ele deixava o local, uma voz quase inaudível surge no vídeo, um grito à distância: ‘Eto vsio nepravda!’ — ‘É tudo mentira!’”.

Aron disse-me que os meios de comunicação russos apagaram posteriormente ‘É tudo mentira’ do áudio, mas o fato de ter sido deixada no vídeo pode ter sido um ato subversivo, de alguém posicionado na hierarquia da mídia russa. Todo mundo fala.

Mudança de regime?
O que leva a outra coisa que Putin sabe: “os deuses da história russa são extremamente impiedosos em relação a derrotas militares”, afirmou Aron. Na era moderna, “quando um líder russo termina uma guerra em derrota clara — ou sem nenhuma vitória — normalmente ocorre mudança de regime. Nós vimos isso após a Guerra da Crimeia, após a Guerra Russo-Japonesa, após os reveses da Rússia na 1.ª Guerra, após Krushchev recuar em Cuba, em 1962, e após o Brejnev e companhia se encrencarem no Afeganistão, o que apressou a revolução da Perestroika e Glasnost de Gorbachev. O povo russo, apesar de toda sua afamada paciência, perdoa muita coisa — mas não a derrota militar”.

É por essas razões que Aron, que acaba de finalizar um livro a respeito da Rússia de Putin, argumenta que este conflito na Ucrânia está longe de acabar e ainda pode piorar muito antes disso.

“Há agora duas maneiras para Putin acabar com esta guerra que ele não consegue nem vencer nem abandonar”, afirmou Aron. “Uma é continuar a sangrar a Ucrânia até o fim e/ou até a fadiga acometer o Ocidente.”

E a outra, argumentou ele, “é, de alguma maneira, forçar um confronto direto com os Estados Unidos — trazer-nos à beira de um bombardeio nuclear estratégico mútuo total — e depois dar um passo atrás e propor para um Ocidente amedrontado algum acordo-geral, que incluiria uma Ucrânia neutra e desarmada e a continuidade da Crimeia e do Donbas com os russos”.

É impossível entrar na cabeça de Putin e prever seu próximo movimento, mas mesmo assim eu me preocupo. Porque nós sabemos, sim, a partir das ações de Putin, que ele sabe bem que seu Plano A fracassou. E agora ele fará de tudo para produzir um Plano B que justifique as baixas terríveis que ele ocasionou em nome de um país em que todos falam e no qual líderes derrotados não se aposentam tranquilamente. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Papo de boteco: Lula define postura na guerra da Ucrânia apoiado em sabedoria de botequim - William Waack (O Estado de S. Paulo)

Papo de boteco: Lula define postura na guerra da Ucrânia apoiado em sabedoria de botequim

William Waack

O Estado de S. Paulo, 27/04/2023

 

A política externa atual do Brasil em relação ao conflito na Ucrânia é a política externa do Lula. Ela consiste na promoção da imagem pessoal do presidente como um estadista de grande projeção internacional.

O principal problema dessa política é o notável distanciamento entre a visão que Lula tem do cenário internacional e a realidade dos fatos. Nesse sentido, as bobagens que ele tem reiterado sobre causas, evolução (no sentido cronológico) e possíveis resultados do conflito não são apenas deslizes retóricos.

São distorções trazidas pela ignorância de como funciona a ordem internacional em transformação e o motivo das ações das potências envolvidas. Junto da incapacidade de entender e formular o que seja o interesse nacional brasileiro, que Lula confunde (como fazem populistas em qualquer lugar) com interesses políticos pessoais.

Uma das imprecisões históricas mais reveladoras da falta de visão internacional de Lula foi a afirmação de que a China merece um crédito especial como possível negociadora no conflito da Ucrânia pois “não faz guerra há muito tempo”. A história da moderna China, como a de todas as grandes potências, é a história de suas grandes guerras (de conquista, civil ou ambas). E a China está se preparando para a maior delas, contra os EUA.

A afirmação, feita por Lula, de que não adianta “discutir quem está certo ou quem está errado” no caso da Ucrânia implica desprezo do presidente brasileiro a princípios de Direito Internacional. A preservação desses princípios foi durante décadas o norte da política externa brasileira.

Outra bobagem retórica – “Você só vai discutir acerto de contas quando pararem de dar tiros” – expõe incapacidade de entendimento das relações internacionais. Não se esperava que Lula se dedicasse a interpretar a frase célebre de Clausewitz (A guerra é a continuação da política por outros meios), mas qualquer político realista e realmente pragmático sabe bem o que significa.

A guerra imposta pela Rússia à Ucrânia é uma guerra imperialista clássica de conquista inflamada por nacionalismo e chauvinismo de séculos, dos czares aos bolchevistas, além do típico anseio por segurança (diante de ameaças reais ou percebidas, como a existência da Otan) de grandes potências. Ela se tornou fator definidor da ordem internacional que, simplificando, é a formação de dois formidáveis blocos geopolíticos. Guerra da Ucrânia e nova ordem são eventos com características próprias, mas que se tornaram inseparáveis e se condicionam mutuamente.

É bom observar que o chefe de governo espanhol, um político socialista ao lado de quem Lula proferiu as últimas declarações sobre a guerra, compartilha com outros dirigentes europeus de esquerda ou de direita o mesmo entendimento sobre a natureza do que está acontecendo. Eles não definem a postura externa de seus países apoiados em sabedoria de botequim.

 

https://www.estadao.com.br/politica/william-waack/lula-define-postura-na-guerra-da-ucrania-apoiado-em-sabedoria-de-botequim/

 

O xadrez do acordo entre Mercosul e UE - O Estado de S. Paulo

O xadrez do acordo entre Mercosul e UE

O Estado de S. Paulo, 27/04/2023


Por ocasião da visita do presidente Lula da Silva à Europa, autoridades afirmaram a ambição de ratificar o acordo entre Mercosul e União Europeia (UE) neste ano. Com boa-fé e pragmatismo, é possível. Mas nessa novela de quase 30 anos esses expedientes nem sempre estiveram presentes. É preciso evitar que os erros se repitam.

Mais do que o livre-comércio, o acordo inclui vertentes políticas e culturais. Ele “cria o quadro institucional necessário para facilitar a cooperação numa vasta gama de áreas de interesse mútuo, desde a proteção dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável até a regulação da economia digital e a luta contra o crime organizado”, apontou o vice-presidente da Comissão Europeia, Josep Borrell. “Esse acordo reforçará as nossas relações não só entre governos e instituições, mas também entre parlamentares, sociedade civil, empresários, estudantes, universidades, cientistas e criadores.”

É o primeiro acordo birregional abrangente do Mercosul e o maior da UE. As aproximações começaram em 1995, mas emperraram nos anos 2000 por relutâncias protecionistas: dos europeus, em relação à sua agropecuária; dos latino-americanos, à sua indústria. A conjunção das presidências de Michel Temer e de Mauricio Macri, na Argentina, deu tração às negociações e o acordo foi fechado em 2019. As rupturas geopolíticas recentes o tornam estratégico para reduzir dependências excessivas, diversificar cadeias de valor e estabelecer a cooperação com parceiros políticos e econômicos confiáveis.

Por isso, é preciso dissolver velhas resistências que voltam sob novas formas. A hostilidade dos fazendeiros europeus foi revigorada pelos humores antiglobalistas da nova direita e, sobretudo, pela preocupação ambiental – abastecida pelo antiambientalismo do ex-presidente Jair Bolsonaro. A UE insiste em vincular a ratificação a compromissos ambientais.

Seria cínico desmoralizar angústias legítimas com a preservação ambiental. Mas seria ingênuo ignorar o oportunismo de políticos europeus em apertar restrições para agradar tanto ao eleitorado jovem de esquerda (os “verdes”) quanto aos velhos agricultores.

Sem dar as costas nem bater de frente, a solução passa por elaborar, a partir do arcabouço aprovado, mecanismos de interesse mútuo. O Brasil já tem uma legislação ambiental de ponta e pode reforçar medidas de combate ao desmatamento, comprometendo-se, por exemplo, a recompor órgãos de fiscalização e aumentar gradualmente a participação orçamentária do Ministério do Meio Ambiente. A Europa, por sua vez, pode apoiar esses esforços com recursos técnicos e financeiros, especialmente em programas de inclusão social na Amazônia. Além disso, precisa renunciar à pretensão de vincular sanções comerciais ao descumprimento de metas ambientais, coisa estranha ao direito internacional ambiental.

O Mercosul faz bem em insistir que, além da proteção ambiental, o desenvolvimento sustentável deve se equilibrar em outros dois pilares: o social e o econômico. A própria Europa, para evitar o colapso desses pilares após a guerra na Ucrânia, se viu obrigada a exumar fontes de energia “suja”.

Nem por isso os governos petista e peronista devem ceder à tentação de reabrir negociações para erguer barreiras protecionistas. Lula fala em manter o direito de preferir produtos nacionais nas compras governamentais. Já existem exceções desse tipo e podem ser flexibilizadas, mas não se deve forçar a mão. Até porque o acordo prevê aberturas gradativas, dando tempo aos setores produtivos de ambos os lados para se modernizarem. Se o governo quer uma “neoindustrialização”, o melhor a fazer não é proteger a indústria, mas criar condições para que ela se torne competitiva, por exemplo, aprovando uma boa reforma tributária e investindo em desburocratização, infraestrutura e inovação para reduzir o “custo Brasil”.

Após quase três décadas, diversos estudos mostram que o acordo é comercialmente lucrativo para ambas as partes. Com boa-fé e pragmatismo, não será preciso gastar tanto tempo para que ele se torne também sustentável.

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/o-xadrez-do-acordo-entre-mercosul-e-ue/

 

terça-feira, 11 de abril de 2023

O Acordo Mercosul-União Europeia - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

O Acordo Mercosul-União Europeia

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/04/2023 

Como uma das consequências das tensões geradas pelos interesses e políticas ocidentais em relação à Rússia e à China, a Europa voltou a buscar a ampliação de seus laços econômicos e comerciais com a América do Sul, em especial com o Mercosul. Desde janeiro, as visitas de alto nível ao Brasil de governos de países europeus (Alemanha, Espanha, Noruega, França) e as viagens do presidente Lula a Portugal e Espanha ainda este mês, parecem indicar uma renovada prioridade para a assinatura e a ratificação do Acordo do Mercosul com a União Europeia (UE).

No início de março, em Buenos Aires, representantes dos países do Mercosul e os da UE retomaram os entendimentos com vistas à assinatura e a ratificação do acordo de livre comércio entre os dois grupos, em negociação há 20 anos. Poucos dias antes da referida reunião, a direção da UE encaminhou “side letter” (protocolo adicional) contendo novas condicionantes para a assinatura do acordo. A proposta, que levou três anos para ser finalizada pelos países europeus e foi concebida pela desconfiança nutrida em relação aos compromissos do governo Bolsonaro, chegou em hora errada, em vista da mudança da política ambiental e da decisão do governo Lula de tomar medidas contra os ilícitos cometidos na Amazônia. A "side letter" era para ser mantida reservada, mas vazou para a imprensa por ONGs ambientalistas insatisfeitas com as tratativas. Sabe-se que o documento determina que os países teriam de assumir uma série de compromissos ambientais, de biodiversidade e sobre direitos humanos. Uma das novidades foi a proposta de uma nova meta de desmatamento provisória para ser cumprida até 2025. Segundo o texto, os dois lados se comprometem a "deter e reverter a perda de florestas e a degradação da terra até 2030, ao mesmo tempo em que proporciona desenvolvimento sustentável e promove uma transformação rural inclusiva". "Para este fim, a UE e o Mercosul estabelecerão uma meta provisória de redução do desmatamento de pelo menos 50% em relação aos níveis atuais até 2025. Os termos da “side letter”, se não atenuados, poderão estimular setores do atual governo, que, por pressão da indústria, querem reabrir as negociações e rever algumas das cláusulas incluídas no acordo, em especial no tocante a compras governamentais. A proposta, como apresentada, certamente deverá ser rechaçada pelo atual governo por incluir demandas que extrapolam os compromissos ambientais do acordo com a EU, os de preservação da Floresta Amazônica e os previstos no acordo de Paris de 2015. Com isso, ficaria inviabilizada a assinatura do acordo no segundo semestre deste ano, na presidência brasileira do Mercosul.

No capítulo sobre Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente, foi incluído, pela primeira vez, o princípio da precaução, pelo qual os governos têm o direito legal de agir para proteger a saúde humana, animal ou vegetal ou meio ambiente, mesmo quando a evidência cientifica não é conclusiva. O Mercosul, por outro lado, registrou no acordo que a precaução só pode ser invocada com evidência científica e que o ônus da prova será do país que apresentar a reclamação contra o produto importado.

Com ou sem o acordo de livre comércio, os países do Mercosul terão de lidar ainda com dois conjuntos de novas medidas restritivas dentro da política de meio ambiente e mudança de clima (“green deal”) europeu.

Essas medidas impedem o acesso ao mercado europeu de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas, o que afetaria produtos do agro brasileiro (carne, soja, café, cacau, azeite de palma, borracha, madeira) e obrigaria os produtores nacionais a ampliarem, com custos adicionais, programas de rastreabilidade e selo verde para demonstrar que a produção saiu de outras áreas, sem desmatamento recente. Por outro lado, produtos industriais, como siderúrgicos, cimento, fertilizantes serão taxados na fronteira pela emissão de gás carbono (carbon tax) para espelhar os custos das empresas europeias com medidas para a redução das emissões.  O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, sinalizou que irá recorrer a Organização Mundial de Comércio contra essas medidas unilaterais da Europa.     

Na reunião de Buenos Aires, os negociadores da UE acenaram com a possibilidade de criação de um fundo de compensação no qual a UE iria discutir com os países do Mercosul a possibilidade de oferecer recursos financeiros para ajudá-los a se adaptarem às rígidas e unilaterais regulações ambientais que Bruxelas implementará progressivamente.

Nesse contexto, cabe lembrar que a União Europeia está criando um mecanismo de defesa comercial para permitir que o bloco possa retaliar medidas punitivas tomadas por outros países, como ocorreu no caso da Lituânia, que sofreu restrições da China, por manter relacionamento com Taiwan. Talvez seja o caso de Brasil e outros países, alvos de restrições protecionistas, também examinarem medidas de defesa comercial contra ações unilaterais de coerção de qualquer procedência.

No novo cenário geopolítico, deve interessar ao Mercosul e `a União Europeia concluir positivamente esse importante acordo. Por isso, é importante e urgente o pronunciamento do Mercosul em resposta `a essa “side letter”.

 

 

Rubens Barbosa, embaixador, primeiro coordenador nacional do Mercosul (1991-1994) e presidente do IRICe.


quinta-feira, 2 de março de 2023

‘O Brasil está em cima da muro, mas com um pezinho do lado da Rússia’, diz Roberto Abdenur - Carolina Marins (OESP)

 ‘O Brasil está em cima da muro, mas com um pezinho do lado da Rússia’, diz Roberto Abdenur


Ex-embaixador do Brasil nos EUA e na China critica neutralidade do Itamaraty na guerra da Ucrânia e vê com ceticismo proposta de paz sugerida por Lula

ENTREVISTA COM
Roberto Abdenur
Diplomata e ex-embaixador do Brasil nos EUA e na China

Por Carolina Marins
O Estado de S. Paulo, 01/03/2023 | 05h00

A pressão para que o Brasil tome posição na guerra da Ucrânia cresceu nos últimos dias, conforme o conflito entra em seu segundo ano e o Ocidente se prepara para enviar mais ajuda militar a Kiev. Desde o princípio, o País optou por uma estratégia de neutralidade que, segundo Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na China, faz parecer que o Brasil é conivente com a Rússia.

Na última quinta-feira, 23, o País votou pela aprovação de uma resolução na Assembleia Geral da ONU que pede pela paz na Ucrânia. O “sim” brasileiro chamou atenção porque foram raros os momentos neste um ano em que o País não se absteve - como tem feito outros grande parceiros da Rússia, como China e Índia. Pelo contrário, em artigo ao Estadão, o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, celebrou que o Itamaraty teve participação na elaboração da proposta.

Também no dia do aniversário da guerra, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, criticou países que não tomam posição e alertou que vai buscar o posicionamento de nações da América Latina e da África - ambas com grande proximidade da Rússia e da China. O Brasil, no entanto, optou por participar propondo a criação de um grupo mediador para a paz, uma proposta vista com ceticismo pelo Ocidente e elogiada pelos russos.

Porém, no dia seguinte, durante reunião do Conselho de Segurança - onde as decisões não tem poderes meramente simbólicos como na assembleia e a Rússia tem o poder de vetar condenações - a delegação brasileira não se levantou quando o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, pediu homenagens às vítimas da agressão russa. Na prática, atitudes como essa apontam ambiguidade do Brasil, aponta Abdenur. Abaixo, trechos da entrevista do Estadão com o ex-embaixador:

O Brasil votou recentemente na Assembleia Geral da ONU pela resolução que pede o fim da guerra na Ucrânia, em um texto que o chanceler brasileiro até cita ter havido participação do Itamaraty na construção. O fato chama atenção porque o Brasil tem optado por se abster nas resoluções mais condenatórias à Rússia, como o senhor interpreta esse voto?

O Brasil sim apoiou essa resolução, mas eu tenho a impressão de que apoiou meio a contra gosto e sob forte pressão dos Estados Unidos e dos países europeus. Nós estamos comprometidos com a resolução ‘pero no mucho’. Tanto é assim que nosso embaixador na ONU declarou há poucos dias que a consecução da paz deve deve ser feita sem condições prévias. Em outras palavras, isso dá a entender que o Brasil não considera indispensável uma retirada completa das tropas russas da Ucrânia.

Eu analisei a resolução da assembleia e é interessante notar que não são usadas palavras duras como ‘invasão’ ou ‘condenação’. Vejo que são usadas expressões duras apenas na parte referente à situação humanitária, em que há o termo ‘agressão da Federação russa’.

O Brasil justifica a sua neutralidade no conflito dizendo que pretende participar das mediações de paz junto com outros países não envolvidos. O quanto é realístico o Brasil mediar as negociações de paz na Ucrânia?

A movimentação lançada pelo Lula para a criação de um grupo de países não envolvidos no conflito é uma intenção nobre, mas eu acho que é pouco realista. Em primeiro lugar, ele fala em China e Índia. A China assinou recentemente uma declaração sem precedentes na diplomacia enfatizando uma parceria “sem limites” com a Rússia, e o chanceler chinês esteve recentemente em Moscou reafirmando esse compromisso depois de passar por dois ou três países da Europa Ocidental.

A China tenta se mostrar em cima do muro, mas ela está em cima do muro com duas pernas do lado da Rússia. E o Brasil está em cima do muro com um pezinho do lado da Rússia, porque ao desenfatizar a importância da retirada das tropas, de certo modo adota uma posição de congelamento da situação no terreno que é favorável à Rússia. Tanto que porta-vozes da chancelaria russa tem enaltecido a postura do Brasil.

E também há a Índia que tem uma relação muito antiga, dos tempos da União Soviética, com a Rússia. Ela foi e ainda é uma freguesa importante dos armamentos russos, embora agora ela esteja diversificando a sua posição. A China e a Índia têm uma postura de certo modo simpática, de passar a mão na cabeça da Rússia. Diferentemente do compromisso assumido por escrito pelo Brasil ao endossar a resolução da Assembleia Geral. A postura brasileira diante desse vai e vem é ambígua, e aliás observo a minha indignação com o fato de que na reunião do Conselho de Segurança, quando o representante da Ucrânia solicitou um minuto de silêncio em memória das vítimas do conflito, a delegação brasileira não se levantou.

O chanceler brasileiro escreveu recentemente ao Estadão um artigo em que diz que ‘é hora de ouvir quem quer a paz’, mas o senhor acredita que há clima para uma proposta de paz neste momento?

Eu sou meio cético quanto a possibilidade de que o movimento do Lula venha a ter êxito, porque o Putin não vai querer em hipótese alguma abrir mão dos territórios que conquistou e, ao contrário, vai continuar a guerra com o objetivo de aumentar a ocupação de territórios ou até, em última análise, extinguir a Ucrânia como um país independente.

A Ucrânia por sua parte não pode deixar de lutar porque ela não pode aceitar a amputação de seu território, e a resolução da ONU deixa claro o apoio de parte significativa da comunidade internacional à preservação da integridade territorial da Ucrânia de acordo com os com os seus limites reconhecidos internacionalmente, ou seja, com a situação anterior a 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e a comunidade internacional teve uma reação pífia.

Nós temos uma postura histórica de favorecer a paz. Mas, diante de uma situação tão grave quanto a da Ucrânia, você falar genericamente em paz é uma platitude, é o óbvio, e não significa efetivamente que isso vai acontecer.

Eu só vejo uma solução de paz a curto prazo se houver um desfecho trágico da situação no terreno, seja uma derrota total da Ucrânia com a conquista de Kiev pela Rússia, seja o sucesso de uma contra-ofensiva da Ucrânia que lhe permita reconquistar todos ou pelo menos partes substanciais dos territórios ocupados pela Rússia. Eu não vejo isso acontecendo. Acho que o cenário militar, de acordo com analistas, é um cenário de impasse, de guerra prolongada. Eu não creio numa perspectiva de paz a curto e médio prazo, eu creio que essa guerra vai continuar a ter efeitos deletérios sobre a paz, a segurança, a economia internacional, a segurança energética, alimentar, tudo isso.

Quanto aos esforços pela paz, lembro que o Secretário-geral da ONU, António Guterres, já aventou a hipótese de um acerto pelo qual a Ucrânia se declararia “neutra”, ou seja, não entraria na Otan, embora pudesse continuar a ter suas forças armadas. A região do Donbas, onde maioria é ou era de língua russa, teria ampla autonomia. E haveria algo como um grande entendimento entre o Ocidente e a Rússia, para apaziguar os temores que Putin explora para justificar a guerra. Essa seria uma boa solução, mas infelizmente não prosperou. Pode, contudo, ser um caminho, talvez usado pelo Brasil, se houver um desfecho da guerra com uma situação de esgotamento, exaustão dos esforços bélicos em caso de um impasse militar prolongado.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

É impossível compreender a guerra na Ucrânia sem conhecer a História - Timothy Snider (O Estado de S. Paulo)

É impossível compreender a guerra na Ucrânia sem conhecer a História

Timothy Snider

O Estado de S. Paulo, 28/02/2023

Enquanto dava uma aula de história ucraniana no semestre passado, senti um gosto do surreal. A guerra na Ucrânia já estava em andamento há meio ano quando comecei. Uma potência nuclear tinha atacado um país que abriu mão de suas armas nucleares. Um império tentava deter a integração europeia. Uma tirania tentava esmagar uma democracia vizinha. Nos territórios ocupados, a Rússia cometeu atrocidades genocidas com claras expressões de intenção genocida.

E ainda assim, a Ucrânia estava reagindo. Os ucranianos resistiram à chantagem nuclear, desprezaram o império fanfarrão e assumiram riscos em nome da sua democracia. Em Kiev, Kharkiv e, mais tarde, Kherson, eles derrotaram os russos, detendo a tortura, o assassinato e a deportação.

Estávamos em um ponto de inflexão histórica. Mas onde estava a história? As telas de TV mostravam continuamente a Ucrânia, e a única coisa que um espectador poderia dizer com alguma certeza é que os comentaristas jamais estudaram a Ucrânia. Ouvi de antigos alunos meus, atualmente empregados no governo ou no jornalismo, o quanto estavam felizes por terem feito o curso de história do Leste Europeu. Disseram estar um pouco menos surpresos que os outros com a guerra; disseram ter mais pontos de referência.

O contraste entre a importância histórica dessa guerra e a falta de lição de casa em história revela um problema maior. Conhecemos muito pouco da história. Projetamos o ensino para envolver questões técnicas: como fazer. E solucionar os problemas do cotidiano é muito importante.

Mas, se nos privamos da história, tudo é uma surpresa: o 11/9, a crise financeira, a invasão do Capitólio, a invasão da Ucrânia. Quando somos chocados todos os dias mas não temos história, tateamos em busca de pontos de referência, e nos tornamos vulneráveis a pessoas que nos dão respostas fáceis. Então o passado se torna a dimensão do mito, na qual aqueles que ocupam o poder geram as narrativas que julgam mais convenientes.

O presidente russo Vladimir Putin contou uma história a respeito do passado que nada tem a ver com a História. De acordo com ele, Rússia e Ucrânia foram criadas juntas, no batismo de um governante mil anos atrás. Partilham a mesma cultura, e portanto devem ser governadas pela mesma pessoa. Se parecer que algo diferente aconteceu, não seria de fato um capítulo dessa história. Se os ucranianos acreditarem que não são russos, isso seria resultado da obra nefasta de forasteiros. Putin não se limitou a dizer essas coisas: ele aprovou leis da memória para evitar que os russos sejam questionados pela história, e chegou a riscar dos manuais a palavra “Ucrânia”.

Em termos de lógica, é algo circular; e enquanto política, é algo tirânico. Se eu pudesse afirmar que os canadenses são americanos porque falam a mesma língua, ou porque partilhamos uma história em comum, isso nos pareceria um motivo idiota para dar início a uma invasão. Quando um ditador reivindica o poder de definir a identidade de outro povo, a questão da liberdade desse povo jamais vem à tona. Se a identidade for congelada para sempre pelos desígnios de um governante, os cidadãos logo se veem sem escolha.

Enquanto observamos onde essa lógica levou os russos, começamos a questionar a validade dessas histórias. Mas não deveria ser necessário uma atrocidade tão óbvia para nos fazer duvidar. Até recentemente, era grande demais o número de comentaristas que se contentavam em seguir a versão de Putin: Rússia e Ucrânia eram eternamente semelhantes de alguma forma, pessoas que falam russo são russas de alguma forma, e a cultura de acordo com as definições de um ditador seria o seu destino.

Foi surreal, de maneira bem diferente, quando milhões de pessoas vieram participar da minha aula online. Os americanos tinham percebido que havia algo de errado no mito russo, mas não sabiam como preencher a lacuna. Foi animador ouvir, nos milhares de e-mails que recebi, que essa lacuna poderia ser preenchida pela história. Foi um semestre muito animado; a história estava fazendo os estudantes pensarem. Quando pensamos historicamente, reconhecemos que as comunidades políticas têm ascensão e queda, e que as escolhas humanas — incluindo as escolhas perversas de tiranos militaristas — são sempre parte da história. Aprendemos a absorver melhor os eventos. Despertamos para as vivências dos outros. Para mim, pessoalmente, foi tocante ouvir relatos dos próprios ucranianos, incluindo soldados da linha de frente, que acompanharam a aula online.

A história ucraniana dá mais sentido ao mundo de hoje. Toda a trajetória da nossa civilização ocidental, dos gregos em diante, fica mais clara se entendermos que Atenas era alimentada pelo que é atualmente o sul da Ucrânia. A fantástica história dos vikings torna-se ainda mais surpreendente quando entendemos que eles fundaram um estado em Kiev. A era da exploração toma novas dimensões quando reconhecemos que potências polonesas e russas construíram seus impérios penetrando a leste na massa terrestre eurasiana, onde finalmente encontrariam a Ucrânia. A era dos impérios é concluída com os projetos neo-imperiais nazista e soviético, que tinham ambos o seu foco na Ucrânia. Esse conflito horrivelmente sangrento fez da Ucrânia o lugar mais perigoso do mundo durante a era totalitária de 1933 a 1945. Esse capítulo e a russificação que se seguiu tornaram a história da Ucrânia difícil de contar, até mesmo para os ucranianos.

Mas isso está mudando agora. Praticamente tudo que eu disse nas minhas aulas veio da obra de historiadores ucranianos. Iaroslav Hritsak, um dos melhores dentre eles, diz há décadas que a Ucrânia vai sobreviver quando uma nova geração amadurecer. Agora, isso ocorreu, não somente na minha área, mas no jornalismo, na sociedade civil, nos negócios e na política. A Ucrânia é diferente da Rússia por causa de sua história distinta, incluindo a história dos 30 anos mais recentes, desde o fim da União Soviética. Enquanto Putin empurrava seu país para a areia movediça dos mitos, os ucranianos — com seus votos, seus protestos e sua resistência — abriram caminho para chegar a uma noção mais confiante de si mesmos e de quem são.

Ao fazerem história, eles nos lembram que precisamos da história para compreendê-los melhor, para compreender melhor a guerra — e também para entender melhor a nós mesmos. Como os ucranianos, vivemos um ponto de inflexão histórica. Como eles, teremos que aprender história e desafiar os mitos para alcançar um futuro democrático.


TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


* Timothy Snyder é professor de história na Universidade Yale e autor de “The Road to Unfreedom” e “Bloodlands” Sua edição atualizada em áudio de “On Tyranny” inclui novas aulas abordando a Ucrânia.

https://www.estadao.com.br/internacional/e-impossivel-compreender-a-guerra-na-ucrania-sem-conhecer-a-historia/