domingo, 11 de maio de 2014

Eleicoes 2014: percepcoes dos eleitores - Marcia C. Nunes; Alberto Carlos Almeida

Decifrando o eleitor

Márcia Cavallari Nunes
Valor Econômico, 02/05/2014-
Especial. Rumos da Economia. 

"A mudança desejada pela população não é necessariamente de governo, mas sim na maneira de governar"

Com o exercício da democracia e após várias eleições, o brasileiro foi aprendendo a votar. Com os seus erros e acertos, o eleitor hoje é bem mais pragmático, crítico e exigente. Ele passou a perceber que quando vota em um candidato que dá continuidade ao que o anterior estava fazendo, independentemente de ser do mesmo partido, quem ganha é ele mesmo e toda a população. 
Focando na esfera federal, ele vivenciou os avanços do país, desde a abertura da economia iniciada por Fernando Collor, passando pela implantação do Plano Real e pelo controle da inflação nos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, até a grande mobilidade econômica ocorrida na era Lula. Na percepção do eleitor, com cada presidente o país avançou um pouco. 
Nas eleições de 2010, Dilma se apresentou como legítima sucessora de Lula e era vista como a que mais daria sequência às políticas públicas implementadas por ele. Essa expectativa do eleitor se confirmou até recentemente. Entretanto, hoje há sensação crescente de que os avanços desaceleraram. Por isso, ao contrário da última eleição presidencial, quando havia um desejo grande de continuidade, hoje se observa um desejo grande de mudança. 
Pesquisa do Ibope Inteligência divulgada na última semana mostra que mais de dois terços dos brasileiros (68%) querem que o próximo presidente do Brasil mude totalmente ou muita coisa no governo do país. Outros 28% gostariam de continuidade total ou que muita coisa do governo atual permanecesse igual na próxima gestão. Resultados totalmente inversos aos observados em 2010. 
Dentre os que querem mudanças, 24% citam a presidente Dilma Rousseff como quem mais tem condições de implementar as mudanças que o país ainda necessita. Aécio Neves é citado por 19%, Marina Silva por 15% e Eduardo Campos por 7%. Outros 23% declaram que nenhum dos nomes é capaz de realizar as mudanças necessárias e 1% acha que todos são capazes. 

Entre aqueles que querem mudanças, quando questionados se desejam que elas sejam feitas com Dilma no governo ou com outro presidente, 64% citam que querem com outro presidente no lugar de Dilma. Os que mencionam a atual presidente somam 25%, ou seja, Dilma Rousseff possui um contingente de eleitores (um em cada quatro) que acreditam que ela é a melhor candidata para promover as mudanças desejadas. 
Esses números deixam claro que a mudança desejada pela população brasileira não é necessariamente de governo, mas sim na maneira de governar. Essas mudanças consistem em acelerar o ritmo do desenvolvimento econômico do país, melhorar a prestação dos serviços públicos, combater a corrupção, dar mais transparência para a gestão, entre outras ações. Enfim, almejam uma mudança no Estado brasileiro. 
O brasileiro não admite retrocesso. Para ele, é proibido perder o que já foi conquistado. É por isso que, apesar de querer mudança na maneira de se governar o país, ele valoriza a continuidade de programas, pois percebe que ganha quando isso acontece. A continuidade tornou-se um valor. Não me refiro à continuidade de governo, mas sim a de avanços no país. 
A percepção dos principais problemas do país foi mudando ao longo dos anos, a economia foi perdendo força frente aos demais. Em 20 anos, o principal problema do Brasil deixou de ser a geração de empregos e passou a ser a saúde. Pesquisas realizadas nesse período mostram que, em agosto de 1994, 53% dos brasileiros consideravam o emprego como a área em que o Brasil mais enfrentava problemas. No entanto, no estudo mais recente, de dezembro de 2013, 58% citam a saúde. Geração de empregos é citada apenas por 10% dos brasileiros como a área em que o Brasil enfrenta mais problemas. 
A mobilidade econômica pela qual o Brasil passou nos últimos anos não significa necessariamente uma mobilidade social. Para que isto ocorra, o eleitor precisa ter acesso a serviços públicos de educação, saúde e transporte coletivo de qualidade. Precisa ter acesso à cultura e ao lazer. Só assim o eleitor vivenciará uma verdadeira mobilidade social. 
Assim, hoje existe uma percepção de que há uma diminuição no ritmo de crescimento econômico do país, o que gera muitas inseguranças. Somam-se a isso o problema da segurança pública e a questão da corrupção que aparecem todos os dias no noticiário, além das demandas constantes por melhorias nos serviços públicos. Tudo isso junto, faz com que o eleitor não tenha uma expectativa positiva de futuro e reforça, cada vez mais, o desejo de mudança. 
O brasileiro entende também que há dinheiro público suficiente para se realizar tudo o que é necessário, desde que bem usado e sem corrupção pelo caminho. O nível de tolerância está no limite. Por isso, as manifestações de junho do ano passado exigiam serviços públicos no padrão Fifa. 
A população brasileira passou anos ouvindo que o Brasil é o país do futuro e ela quer que esse futuro chegue. Cansou de esperar. O futuro demora, mas precisa ser construído. O eleitor quer respostas para as perguntas "Como é que vamos avançar? Como vamos continuar crescendo? Como e quando vamos melhorar a educação, a saúde, a segurança e o transporte?". E, é claro, sem perder nenhuma das conquistas alcançadas. 
O eleitor exige respeito, transparência na gestão pública e serviços de qualidade tanto no setor público, quanto no setor privado. Ele quer sentir que o Brasil continua avançando e que isso se reflita de alguma forma na sua vida. E tem pressa: quer ganhos tangíveis no curto prazo. 

Márcia Cavallari Nunes é CEO do Ibope Inteligência. 

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Mudança veloz na cabeça
Alberto Carlos Almeida
Valor 02/05/2014
Especial. Rumos da Economia

Ser de esquerda é acreditar que a pobreza e a desigualdade são causadas por uma estrutura social injusta 

Houve uma mudança dramática da cabeça do eleitor nos últimos quatro anos: a política social perdeu importância e se tornaram bem mais relevantes medidas cujo objetivo é o aumento da eficiência da economia. Isto ocorreu porque a estrutura social do Brasil mudou muito, aumentou a escolaridade, aumentou a renda média e aumentou a capacidade de consumo. O resultado disto é simples, modificaram-se as demandas. 
Na última eleição presidencial, assim como ocorreu em 2006 quando Lula foi reeleito, o Bolsa Família foi um dos principais temas de campanha. Ele foi a vedete, o mascote da campanha. O PT se esforçou com sucesso em demonstrar que essa política de transferência de renda fazia justiça a um enorme eleitorado que havia sido abandonado há anos por uma elite insensível aos pobres, esse foi o discurso de Lula e Dilma. Os adversários insistiram em afirmar que o Bolsa Família resulta na acomodação de quem o recebe, que seus beneficiários deixam de buscar empregos e passam a nutrir uma grande dependência em relação aos benefícios governamentais. Falou-se muito na expressão "porta de saída": encontrar um meio para que quem recebe o Bolsa Família pudesse, no futuro, não mais precisar do benefício. 

São visões de mundo opostas, são apenas ideologias, não existe um lado certo ou errado. Há somente a ideologia com que você concorda e aquela de que você discorda, em geral dá-se o nome de "certo" àquilo com que se concorda e "errado" àquilo de que se discorda. O que existe no Brasil são dois eleitorados que têm valores diferentes, de um lado os que prezam o Bolsa Família e as políticas de transferência de renda, de outro os que acham que se trata de um gasto indevido do governo. A distância relativa entre esses dois eleitorados sempre existirá, é ela quem assegura os votos certos do PT e os votos certos do PSDB. O que mudou muito nos últimos quatro anos foi a importância das políticas sociais de transferência de renda para definir o voto. 
Ser de esquerda é acreditar que a pobreza e a desigualdade são causadas por uma estrutura social injusta. Quem pensa assim acha que é papel do governo e do Estado atuar para diminuir as desigualdades. Ser de direita é acreditar que a pobreza e a desigualdade são causadas pelos próprios indivíduos que são diferentes em seu apetite pelo bem-estar econômico e por sua capacidade individual de alcançá-lo. Quem pensa assim acha que o governo não deve atuar para diminuir as desigualdades, mas apenas dar as condições para que cada um busque o que for melhor para si em termos econômicos e financeiros. 
As pessoas mais pobres e com menor escolaridade tendem a ser de esquerda, ao passo que as pessoas menos pobres e mais escolarizadas tendem a ser de direita. Veja-se o mapa de votação do Brasil em 2006 e 2010 e ver-se-á que o PT é sistematicamente mais bem votado nas áreas mais pobres enquanto o PSDB é sistematicamente mais bem votado nas áreas menos pobres. Isto ocorre também nas eleições para governos estaduais e prefeituras. O mapa de votação, por exemplo, da cidade de São Paulo vem sendo assim e foi assim em 2012 quando no segundo turno se enfrentaram Haddad, do PT, e Serra, do PSDB. 
A classe média ainda não dará o tom principal da eleição presidencial, mas ela entrará no palco em grande estilo 
Na medida que uma sociedade aumenta seu nível escolar, e quanto mais rápido isto ocorre, foi o que aconteceu com o Brasil nos últimos anos, toda a população caminha para a direita. O pensamento de esquerda e seus eleitores não deixam de existir, muito menos deixa de existir a diferença relativa entre esquerda e direita, mas as políticas substantivas demandadas pelo eleitorado mudam, e muito. Nos Estados Unidos muito mais escolarizados do que o Brasil a esquerda é representada por Obama e pelos Democratas, a direita é liderada pelos Republicanos. Lá, porém, diferentemente de nós, o equivalente do Bolsa Família (existe nos EUA) não é um tema relevante de campanha. 
No Brasil de 2014 o Bolsa Família continuará sendo um divisor do voto petista e anti-petista, mas terá bem menos peso do que em 2010. Outros temas estão na cabeça do eleitor com mais força hoje do que há quatro anos, este é o caso da necessidade de mais estudo para se obter melhores empregos e da necessidade de se investir mais em infraestrutura. Ser de esquerda nos EUA é defender mais a geração de empregos do que o combate à inflação. No Brasil das últimas duas eleições presidenciais ser de esquerda era defender de maneira clara as políticas de transferência de renda. 
Em 2014 o eleitorado obrigará os candidatos a caminharem para a direita em um ritmo mais rápido do que no passado. O PT já vem há algum tempo atualizando o seu discurso. Desde a eleição passada o PT fala em "classe média", "oportunidades", "geração de empregos" e coisas congêneres. No fim de 2013 o governo Dilma ocupou fortemente a mídia com notícias de investimentos em infraestrutura, as chamadas concessões. Dilma respondia a este novo eleitorado, a esta nova cabeça do eleitor. Programas como o Pro-Uni, Fies, e Ciência sem Fronteiras respondem à demanda por condições para melhorar de vida, nestes programas não se dá o peixe, como se convencionou dizer do Bolsa Família, mas se ensina a pescar. 
Alguns podem considerar que este novo eleitorado é uma vantagem para a oposição. Pode até ser, desde que ela saiba entendê-lo. O fato é que nos últimos anos, talvez até mesmo na última década, o PT soube captar de maneira mais efetiva as demandas do eleitorado e suas mudanças. Não é bom para a democracia, não é bom para o PT e tampouco para o PSDB que o eleitorado não seja plenamente compreendido pela oposição. Todos ganham com uma competição eleitoral mais acirrada. Um eleitorado mais à direita não significa necessariamente que as demandas sociais não tenham que ser contempladas, longe disto. Na verdade, a classe média ainda não dará o tom principal da eleição presidencial, mas ela entrará no palco em grande estilo. Ironicamente, este novo ator é resultado do sucesso dos governos do PT e é ele quem pode ameaçar o predomínio de Dilma e de Lula na política nacional. 

Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". 

Henry Ford: o homem que inventou a era moderna (e depois a perdeu) - Richard Snow

O homem que inventou a era moderna
Autor de nova biografia de Henry Ford mostra como o empresário transformou a produção industrial e o regime capitalista
11 de maio de 2014 |
Lucia Guimarães - O Estado de S.Paulo

NOVA YORK - Num ano próximo a 1940, um adolescente conversava com Henry Ford sobre livros didáticos que considerava antiquados. Ford defendia os livros. O jovem John Dahlinger, de fato, filho ilegítimo de Henry Ford com sua amante, protestou: "Mas, senhor, vivemos novos tempos. Esta é a idade moderna e...". Ford cortou o interlocutor: "Rapaz, eu inventei a idade moderna".
A frase confirma a arrogância do pai da produção industrial do século 20, mas é um epíteto merecido, diz o autor da nova biografia de Henry Ford, o historiador Richard Snow. Em Henry Ford, O Homem que Inventou o Consumo (Ed. Saraiva, 416 páginas, R$ 44,90), nas livrarias brasileiras no dia 15, Snow não desenterra esqueletos ou revela fatos inéditos. Mas, numa narrativa com verve literária, que vai cativar leitores desinteressados nos meandros da combustão interna do histórico automóvel Modelo T, o automóvel que "todos podiam comprar" e que inaugurou a produção em massa responsável pela prosperidade americana no último século, Snow nos lembra da importância do homem que, segundo ele, teve a vida partida ao meio. Foi cativante, generoso e brilhante na primeira metade de seus 84 anos. Tirano, antissemita e megalomaníaco na metade seguinte.
O homem que dobrou o salário de todos os seus empregados, em 1913, acreditava que os judeus tinham inventado o jazz para dominar os Estados Unidos. O capitalista mais bem-sucedido do mundo há cem anos, detestava finanças e achava que acionistas não deviam receber dividendos. O empresário que inventou a produção industrial em massa, antes conhecida como "Fordismo", passou mais de uma década resistindo à inovação de sua galinha dos ovos de ouro: o Ford Modelo T, o automóvel que mudou a paisagem urbana e a economia mundial, apelidado no Brasil de Ford Bigode.
O menino da fazenda que detestava os animais gastou milhões pra montar um museu dedicado à vida rural. As contradições de Ford continuam a desafiar a compreensão do homem que em 1915 alugou um navio, encheu de escritores e jornalistas, e partiu para a Europa sob a manchete do New York Times: "Grande Guerra Vai Terminar no Natal. Ford vai Deter a Guerra". Ford não impediu o conflito. Mas continua inquietando os que se debruçam sobre sua biografia extraordinária. Em 1929, o popular ator e humorista Will Rogers disse a Henry Ford, sem o menor tom de brincadeira: "Vai demorar cem anos para sabermos se você nos ajudou ou nos prejudicou. Mas o certo é que você não nos deixou onde nos encontrou".
Estado conversou com o biógrafo Richard Snow em seu apartamento em Manhattan.
Qual a maior contribuição de Henry Ford?

Ford não era um inventor. Ele teve uma visão sobre o modo de produção que mudou o mundo. Em vez de ter um operário cumprindo 37 tarefas, decidiu que 37 operários deveriam cumprir 37 tarefas e a linha de montagem deveria passar por eles. Podemos atribuir a produção em massa a Henry Ford. Sabe que até o termo foi cunhado por ele num artigo para a Enciclopédia Britânica? Antes, os americanos se referiam a esse modo de produção como 'Fordismo'. Quando outras indústrias começaram a imitar o Fordismo, teve início a prosperidade americana que se estendeu por boa parte do século 20 e nos ajudou a sair vitoriosos na 2.ª Guerra.
O primeiro veículo experimental criado por Henry Ford, em 1896, foi o Quadriciclo, parente da bicicleta e não da carruagem.

Muitos pensam que o carro substituiu o veículo de tração animal. Mas o importante passo intermediário foi fruto da explosão da bicicleta no fim da década de 1880. A demanda por bicicletas era tal, no final do século 19, que exigia uma fabricação mais refinada. As peças de metal tinham de ser cortadas com mais precisão e os fabricantes acabaram aprendendo técnicas que não eram necessárias para as carruagens. A bicicleta permitiu a transição decisiva da tração animal para o automóvel.
O sucesso do Modelo T é atribuído a uma decisão incomum numa era em que empresários viam o automóvel como um artigo de luxo.

Quando Ford abriu sua primeira fábrica, em 1903, seus sócios imediatamente queriam aumentar o preço do Modelo T. Ele foi categórico: 'Vamos cortar preços' e virou uma noção do capitalismo ao avesso. Naquela época, o preço médio de um carro de qualidade era US$ 7 mil. Uma casa no subúrbio custava US$ 2 mil. Ford dizia que, cada vez que cortava US$ 0,50 do preço do Modelo T, atraía mais 50 mil compradores. Ele acreditava que sua máquina tinha de ser simples e barata. No final da produção, em 1927, um Modelo T custava US$ 295 e a Ford tinha vendido 15 milhões de unidades.
Quando o Modelo T começou a fazer sucesso, Ford tomou outra decisão que enfureceu os industriais.

Ford tinha 50 mil empregados. Eles ganhavam US$ 2,50 por dia, um bom salário então, numa linha de montagem. De repente, ele dobrou os salários para US$ 5,00. O Wall Street Journal o acusou de tentar destruir o capitalismo com filantropia. Ford sabia o que estava fazendo. Transformou seus empregados em compradores de automóveis. Outras indústrias se sentiram compelidas a aumentar salários e Ford inaugurou um ciclo de produção e consumo que trouxe enorme prosperidade ao país.
Como o passado de Ford, crescendo numa fazenda, pesou sobre o futuro inovador da América urbana?
Ford não suportava a rotina rural. Desde menino, ele pensava que o músculo animal era ineficiente e que a energia humana devia ser substituída pela energia mecânica. Aos 13 anos, ele já consertava relógios na área de rural de Michigan, onde morava. Ele não gostava dos animais da fazenda, tomou horror a vacas e declarava, sério: 'A vaca tem de acabar!'. Sua intimidade com máquinas era única. Colocavam 12 carburadores idênticos na sua frente e ele acertava o que funcionava mal. A ironia é que, no fim da vida, ele celebrou num museu a vida rural americana que tinha conseguido destruir mais do que qualquer outro. O museu Greenfield Village, em Michigan, é um primor. Começou com a fazenda de sua infância, mas é também um documento sobre a transição dos Estados Unidos para a modernidade. Ford comprou e instalou lá o laboratório de Thomas Edison e a oficina dos irmãos Wright, pioneiros da aviação.
O sr. acha que Henry Ford compreendeu o impacto que causava na vida dos americanos com o Modelo T?

Não acredito que ele pudesse entender inicialmente as consequências de sua inovação. Em poucos anos, foi rompido o isolamento da vida rural. O carro de produção em massa causou uma transformação profunda na forma como as pessoas se comunicavam. De repente, era possível visitar alguém a 60 quilômetros de distância e não apenas para conduzir negócios. Ford revolucionou o lazer. O carro mudou a noção de privacidade: John Steinbeck gostava de dizer que metade dos bebês americanos nos anos 20 tinham sido concebidos num Modelo T. Não era preciso mais manter várias gerações de uma família sob o mesmo teto. Criaram-se as condições para o estilo de vida suburbano. Tudo o que assumimos como natural na vida moderna do século 21 cresceu da viabilidade da produção do motor de combustão interna há 100 anos.
O sr. acredita que o Ford visionário esbarrou no Ford que não era um pensador profundo?

Sim. Ele teve uma visão e mudou o mundo com seu sistema de produção. Mas o sucesso estrondoso lhe deu a ilusão de que podia fazer tudo. O que levou a várias ideias desastrosas. Um exemplo clássico foi a Fordlândia.
Por que Ford errou tanto na aventura amazônica?

Quanto mais rico e mais bem-sucedido, menos tolerante ele ficava a limitações. Queria controlar todas as etapas de produção, ser dono das minas, das fábricas de vidro. E queria se livrar da dependência da borracha que os britânicos produziam na Ásia. Quando fechou o acordo para a Fordlândia com o governo brasileiro no final da década de 20, Ford já estava cercado de uma claque de assessores obedientes que diziam o que ele queria ouvir. Despachou engenheiros para plantar seringueiras! Com sua mania de pregar e pontificar, queria decidir como os empregados deviam trabalhar e viver. A Fordlândia acabou vendida em 1946 com prejuízo pelo neto dele, Henry Ford II, por US$ 20 milhões, mais ou menos US$ 200 milhões hoje.
Entre as decisões desastrosas, o sr. cita também a maneira como ele descartou colaboradores fundamentais.

Era um padrão estranho e profundamente destrutivo. James Couzens, o homem que ajudou Ford a montar seu império financeiro, foi uma grande perda inicial. Outra perda, com consequências trágicas para a companhia, foi a do imigrante dinamarquês William Knudsen, arquiteto da expansão da Ford na Europa. Quando diziam, é hora de inovar o Modelo T, o consumidor quer um carro mais confortável, um objeto de desejo, Knudsen ofereceu soluções para mudar a produção. Foi logo despachado, em 1921. No ano seguinte, Alfred Sloan, vice-presidente da General Motors, o contratou. O resultado foi o Chevrolet. Knudsen ajudou a GM a usurpar a liderança da Ford. Acho que Ford se livrava das pessoas como se quisesse eliminar testemunhas. Ele não se conformava com a ideia de que teria de mudar e manteve o Modelo T em produção até 1927, por muito mais tempo do que era sensato. Mesmo a introdução, do Ford Modelo A, com seu design elegante e inovações mecânicas, não podia repetir a façanha. O Modelo T já tinha mudado o mundo e o Chevrolet agora disputava a preferência dos consumidores.
Por que o sr. encerra a biografia em 1927, quando termina a produção do Modelo T?

Henry Ford era uma figura bastante incomum. Não consigo pensar num outro grande homem - penso que ele pode ser descrito como tal - cuja vida foi tão claramente partida ao meio. Na primeira metade, ele foi genuinamente produtivo, generoso e afável. Tinha um talento mágico para atrair gente talentosa. Mas, na segunda metade de vida, ele foi horrível. Ele parece ter mudado no curso de dois anos e não conheço ninguém de sua estatura que tenha mudado dessa forma. Mais do que qualquer outra decepção da vida pessoal, acho que a ideia de abandonar o Modelo T o deixou louco. O Modelo T era feio, confiável, simples e, para Ford, era perfeito, um objeto de virtude. Quanto mais ele ouviu dos próximos que era hora de mudar mais ressentido foi ficando.
Ele conseguiu se reabilitar do antissemitismo militante?

Acho que o antissemitismo o manchou para sempre. Ele comprou um jornal local de Michigan, o Dearborn Independent, que publicou uma série de 96 artigos sob o título "O Judeu Internacional". Ford era obcecado pela ideia de que os judeus queriam começar guerras para promover comércio e controlavam as finanças. Foi uma desgraça. O jornal acabou fechando em 1927, sob uma barragem de processos de difamação. Ford se desculpou alegando que não lia o que estava sendo publicado.
A quem o sr. compara Henry Ford entre empresários do século 21?

Em sua pomposa biografia de 1922, Minha Vida e Obra, Ford faz um comentário de passagem que é esclarecedor. Conta que quando estava construindo o quadriciclo experimental, não havia demanda alguma pelo automóvel. 'Claro que nunca há a demanda para um produto que não existe', dizia. Mais uma vez, virava noções ao avesso. Neste caso, a de que a necessidade é a mãe da invenção. Ele introduziu a invenção que criou a necessidade. E acho que nós não tínhamos necessidade alguma de um iPhone ou iPad, não? Ele pode ser assim comparado a Steve Jobs.
 

Argentina e Venezuela: dois desastres latino-americanos - Estadao

Os desastres econômicos da Argentina e da Venezuela
Países apresentam os mais graves exemplos de distorções econômicas da América Latina
O Estado de S. Paulo10 de maio de 2014

Como um pesadelo para seus cidadãos, Argentina e Venezuela empurram o crescimento da América Latina para baixo e registram os mais graves exemplos de distorções econômicas da região. Os indicadores negativos hoje prevalecem em ambos os países que, em momentos diferentes do passado, experimentaram a riqueza concentrada e o sonho de ingressar no mundo desenvolvido. A Argentina crescerá apenas 0,5% neste ano. A Venezuela, dona da maior reserva de petróleo do mundo, provará o recuo de 0,5% em sua atividade.
Em ambos os países, a inflação crescente corrói a renda das famílias, sobretudo das mais pobres. Na Argentina, deve fechar o ano em torno de 30%, conforme estimativas extraoficiais. O cálculo do governo, menos robusto, não é tido como confiável. Na Venezuela, a inflação chegará a 75%, de acordo com previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI).
No coração de Buenos Aires, a Avenida Alvear e a favela do Retiro tornaram-se símbolos da decadência econômica acelerada e da expansão da pobreza nas últimas quatro décadas. Em Caracas, as filas nas portas de supermercados e as prateleiras vazias das farmácias alimentam os protestos nas ruas por mudanças no governo, de estilo autoritário.

A insatisfação popular é expressa também na queda do apoio e da avaliação dos presidentes Cristina Kirchner, em seu último ano de governo, e Nicolás Maduro, no primeiro ano de mandato. Entre analistas econômicos, prevalece a condenação dos modelos adotados desde 2003, na Argentina, e desde 1999, na Venezuela.
No fim do ano passado, com reservas internacionais em apenas US$ 13 bilhões, a Argentina adotou medidas de correção de rumo enquanto se engajou no diálogo com o FMI sobre a construção de um novo indicador de preços ao consumidor - passo inicial para uma possível retomada da sua relação com o Fundo.
O governo venezuelano resiste em reconhecer o fracasso das políticas econômicas ao longo dos últimos 15 anos. A estatal PDVSA deu mostras de debilidade ao recorrer a empréstimo de US$ 40 bilhões do Banco Central em 2013, mas continua a municiar boa parte da máquina social chavista. Sua fragilidade está na raiz das quatro taxas de câmbio vigentes no país e na própria crise de desabastecimento que afeta ricos e pobres.

A forca ascensional da democracia, e o descenso dos Estados autoritarios - G. John Ikenberry (Foreign Affairs)

A ilusão da geopolítica
Putin ganhou pequenas batalhas, mas está perdendo a guerra; Rússia e China estão cercadas por democracias
G. John Ikenberry * 
Foreign Affairs - O Estado de S.Paulo, 11/05/2014

Walter Russell Mead pinta um retrato perturbador das mazelas geopolíticas dos EUA (em artigo republicado no domingo passado pelo Estado). Tal como ele as vê, uma coalizão cada vez mais formidável de potências não liberais - China, Irã e Rússia - está determinada a desmontar o acordo pós-Guerra Fria e a ordem global liderada pelos EUA que o sustenta.
Por toda a Eurásia, ele argumenta, esses Estados insatisfeitos estão propensos a construir esferas de influência para minar os fundamentos da liderança americana e a ordem global. Em vista disso, os EUA precisariam repensar seu otimismo, incluindo sua crença pós-Guerra Fria de que Estados não ocidentais em ascensão podem ser persuadidos a se unir ao Ocidente e jogar pelas suas regras. Para Mead, chegou o momento de enfrentar as ameaças desses inimigos geopolíticos cada vez mais perigosos.
O alarmismo de Mead tem base num equívoco colossal sobre a realidade das potências modernas. A ordem mundial existente é mais estável e expansiva do que Mead retrata. Ele se equivoca sobre China e Rússia, que não são potências revisionistas em plena escala, mas, na melhor das hipóteses, desmancha-prazeres em tempo parcial, tão desconfiadas uma da outra como são do mundo em geral.
É fato que elas buscam oportunidades para resistir à liderança global dos EUA e, recentemente, como no passado, elas a peitaram, particularmente quando confrontadas em suas próprias vizinhanças. No entanto, mesmo esses conflitos são alimentados mais por fraqueza - de seus líderes e seus regimes - do que por força. Elas não têm uma marca atraente. E, no que toca seus interesses dominantes, a Rússia e, em especial a China estão profundamente integradas na economia mundial e em suas instituições governantes.
Mead também caracteriza de maneira equivocada os fundamentos da política externa americana. Desde o fim da Guerra Fria, ele argumenta, os EUA ignoraram questões geopolíticas envolvendo territórios e esferas de influência. Adotaram uma ênfase excessivamente otimista na construção da ordem mundial. Mas essa é uma falsa dicotomia.
Os EUA não se concentram em questões de ordem global, como controle de armas e comércio, por supor que o conflito geopolítico acabou de uma vez por todas; eles empreendem tais esforços precisamente porque querem gerir a competição entre grandes potências. A construção da ordem não tem como premissa o fim da geopolítica, ela diz respeito a como responder às grandes questões da geopolítica.
Aliás, a construção de uma ordem global liderada pelos EUA não começou com o fim da Guerra Fria; ela venceu a Guerra Fria. Nos quase 70 anos desde a 2.ª Guerra, Washington empreendeu esforços contínuos para construir um abrangente sistema de instituições multilaterais, alianças, acordos comerciais e parcerias políticas.
Esse projeto ajudou a atrair países para a órbita dos EUA. Ele ajudou a fortalecer normas e regras globais que questionaram a legitimidade das esferas de influência, tentativas de dominação regional e roubos territoriais ao estilo do século 19. E deu aos EUA as capacidades, parcerias e princípios para enfrentar grandes potências estraga-prazeres e revisionistas de hoje, tal como são. Alianças, parcerias, multilateralismo, democracia - essas são as ferramentas da liderança americana e elas estão vencendo, não perdendo, as disputas do século 21 sobre geopolítica e ordem mundial.
Em 1904, o geógrafo inglês Halford Mackinder escreveu que a grande potência que controlasse o coração da Eurásia comandaria "a Ilha do Mundo" e, com isso, o próprio mundo. Para Mead, a Eurásia voltou a ser o grande prêmio da geopolítica. Nos extremos longínquos de seu supercontinente, ele argumenta, China, Irã e Rússia procuram estabelecer suas esferas de influência e desafiam interesses americanos, tentando lenta, mas inexoravelmente, dominar a Eurásia e, com isso, ameaçar os EUA e o restante do mundo. Essa visão desconsidera uma realidade mais profunda. Em questões de geopolítica (para não mencionar de demografia, de política e de ideias), os EUA têm uma vantagem decisiva sobre China, Irã e Rússia.
Embora os EUA algum dia certamente descerão do pico de hegemonia que ocuparam durante a era unipolar, seu poder continua sem rival. Sua riqueza e vantagens tecnológicas continuam muito fora do alcance de China e Rússia, que dizer do Irã. Sua economia em recuperação, agora fortalecida por novos e volumosos recursos em gás natural, lhes permite manter uma presença militar global e compromissos de segurança confiáveis. Aliás, Washington tem uma habilidade única para ganhar amigos e influenciar Estados.
Segundo um estudo chefiado pelo cientista político Brett Ashley Leeds, os EUA mantêm parcerias militares com mais de 60 países, enquanto a Rússia tem oito aliados formais e a China apenas um (Coreia do Norte). Como me contou um diplomata britânico, "a China não parece fazer alianças". Mas os EUA sim e elas pagam um dividendo duplo: não só fornecem uma plataforma global para a projeção do poder americano, como distribuem a carga de fornecer segurança. A capacidade militar agregada nesse sistema de alianças liderado pelos EUA sobrepuja qualquer coisa que China ou Rússia possam criar nas próximas décadas.
Era atômica. Depois, há as armas nucleares. Essas armas, que EUA, China e Rússia possuem (e o Irã está buscando), ajudam Washington de duas maneiras. Primeiro, graças à lógica da destruição mútua garantida, elas reduzem radicalmente a probabilidade de uma guerra entre grandes potência. Tais confrontos forneceram oportunidades para grandes potências do passado, incluindo os EUA na 2.ª Guerra, firmarem suas próprias ordens internacionais. A era atômica privou a China e a Rússia dessa oportunidade. Segundo, armas nucleares também tornarão China e Rússia mais seguras, dando-lhes uma garantia de que os EUA jamais as invadirão. Isso é uma coisa boa, porque reduz a probabilidade de que elas recorram a medidas desesperadas, nascidas da insegurança, que possam provocar uma guerra e solapar a ordem liberal.
A geografia reforça outras vantagens dos EUA. Como única grande potência não rodeada por outras grandes potências, o país pareceu menos ameaçador a outros Estados e conseguiu ascender dramaticamente ao longo do último século sem provocar uma guerra. Após a Guerra Fria, quando os EUA eram a única superpotência do mundo, outras potências globais, a oceanos de distância, nem sequer tentaram se equiparar a eles. Aliás, a posição geográfica levou outros países a se preocupar mais com abandono do que com domínio. Aliados na Europa, Ásia e Oriente Médio tentaram fazer os EUA jogar um papel maior em suas regiões. O resultado é o que o historiador Geir Lundestad chamou de "império por convite".
A vantagem geográfica dos EUA está plenamente evidente na Ásia. A maioria dos países da região vê a China como um perigo potencial maior - em razão de sua proximidade - do que os EUA. Tirando os EUA, toda grande potência do mundo vive numa vizinhança geopolítica apinhada onde mudanças no poder rotineiramente provocam contramedidas.
A China está descobrindo essa dinâmica com a reação de Estados circundantes que em resposta a sua ascensão estão modernizando suas forças militares e reforçando suas alianças. A Rússia a conheceu há décadas e a enfrentou mais recentemente na Ucrânia, que nos últimos anos vinha aumentando seus gastos militares e tentando estreitar laços com a União Europeia (UE).
O isolamento geográfico também deu aos EUA razão para capitanear a defesa de princípios universais que lhe permitem acesso a várias regiões do mundo. O país promove há muito uma política de porta aberta e o princípio da autodeterminação, e se opôs ao colonialismo - menos por um senso de idealismo do que pelas realidades práticas de manter Europa, Ásia e Oriente Médio abertos ao comércio e à diplomacia.
No fim dos anos 1930, a principal questão que se colocava para os EUA era qual espaço geopolítico, ou "grande área", eles precisariam para existir como grande potência num mundo de impérios, blocos regionais e esferas de influência. A 2.ª Guerra deixou clara a resposta: prosperidade e segurança do país dependiam do acesso a cada região. E nas décadas seguintes, com algumas exceções importantes e danosas, como o Vietnã, os EUA adotaram princípios pós-imperiais.
Foi durante esses anos do pós-guerra que geopolítica e construção da ordem convergiram. Um arcabouço internacional liberal foi a resposta que estadistas como Dean Acheson, George Kennan e George Marshall ofereceram ao desafio do expansionismo soviético. O sistema que eles construíram fortaleceu e enriqueceu os EUA e seus aliados, em detrimento de seus oponentes não liberais. Também estabilizou a economia mundial e estabeleceu mecanismos para enfrentar problemas globais. O fim da Guerra Fria não mudou a lógica por trás desse projeto.
Felizmente, os princípios liberais que Washington promoveu gozam de um apelo quase universal, porque eles tenderam a se ajustar bem às forças modernizadoras do crescimento econômico e do progresso social. Como colocou o historiador Charles Maier, os EUA surfaram a onda de modernização do século 20. Mas alguns disseram que essa congruência entre o projeto americano e as forças da modernidade enfraqueceu nos últimos anos. A crise financeira de 2008, dizem, marcou um ponto crítico da história mundial no qual os EUA perderam seu papel de vanguarda na promoção do progresso econômico.
Mesmo que isso fosse verdade, não seria por isso que a China e a Rússia substituiriam os EUA como paradigmas da economia global. Nem Mead defende que China, Irã ou Rússia oferecem ao mundo um novo modelo de modernidade. Para essas potência não liberais realmente ameaçarem Washington e o restante do mundo capitalista liberal, elas terão de encontrar e surfar a próxima grande onda de modernização. É improvável que o façam.
Democracia. A visão de Mead de uma disputa pela Eurásia entre EUA e China, Irã e Rússia não leva em consideração a transição de poder mais profunda em curso: a crescente ascendência da democracia capitalista liberal. De fato, neste momento, muitas democracias liberais estão às voltas com lento crescimento econômico, desigualdade social e instabilidade política.
Mas a disseminação da democracia liberal pelo mundo, a partir de fins da década de 1970, acelerando-se após a Guerra Fria, fortaleceu dramaticamente a posição dos EUA e endureceu o círculo geopolítico em torno de China e Rússia.
É fácil esquecer como era rara a democracia liberal no passado. Até o século 20, ela estava confinada ao Ocidente e partes da América Latina. Após a 2.ª Guerra, começou a ir além desses domínios à medida que Estados agora independentes estabeleciam sua autodeterminação. Durante os anos 50, 60 e começo dos 70, golpes militares e novos ditadores frearam transições democráticas. Mas no fim dos anos 70, o que o cientista político Samuel Huntington chamou de "a terceira onda" de democratização varreu o sul da Europa, a América Latina e o Leste Asiático. Aí a Guerra Fria terminou, e uma legião de ex-Estados comunistas na Europa Oriental foram trazidos para o redil democrático. Em fins dos anos 90, 60% de todos os países haviam se tornado democracias.
Apesar de alguns retrocessos, a tendência mais significativa tem sido o surgimento de um grupo de potências médias democráticas, entre as quais Austrália, Brasil, Índia, Indonésia, México, Coreia do Sul e Turquia. Essas democracias ascendentes estão agindo como partes interessadas no sistema internacional: promovendo a cooperação multilateral, buscando maiores direitos e responsabilidades, exercendo influências por meios pacíficos.
Tais países levaram a ordem mundial liberal a novas alturas geopolíticas. Como observou o cientista político Larry Diamond, se Argentina, Brasil, Índia, Indonésia, África do Sul e Turquia recuperarem seu equilíbrio econômico e fortalecerem seu regime democrático, o G-20, que também inclui os EUA e países europeus, "se tornará um forte 'clube de democracias', deixando de fora apenas Rússia, China e Arábia Saudita". A ascensão de uma classe média global de Estados democráticos transformou China e Rússia em pontos fora da curva - e não, como Mead teme, legítimos disputantes da liderança global.
Aliás, o crescimento democrático foi extremamente problemático para ambos os países. No Leste Europeu, ex-Estados soviéticos e satélites tornaram-se democráticos e se uniram ao Ocidente. Por preocupantes que possam ter sido as medidas do presidente russo, Vladimir Putin, na Crimeia, elas refletem a vulnerabilidade geopolítica da Rússia e não sua força. Nas duas últimas décadas, o Ocidente foi paulatinamente se aproximando das fronteiras da Rússia.
Em 1999, República Checa, Hungria e Polônia entraram na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Juntaram-se a elas em 2004 outros sete antigos membros do bloco soviético e, em 2009, Albânia e Croácia. Nesse intervalo, seis ex-repúblicas soviéticas tomaram o caminho da participação ao aderir ao programa Partnership for Peace da Otan.
Mead dá muita importância às façanhas de Putin na Geórgia, Armênia e Crimeia. Apesar de Putin estar ganhando algumas pequenas batalhas, ele está perdendo a guerra. A Rússia não está em ascensão; ao contrário, está experimentando uma das maiores contrações geopolíticas de qualquer grande potência na era moderna.
A democracia também está cercando a China. Em meados dos anos 80, Índia e Japão eram as únicas democracias asiáticas, mas de lá para cá, Indonésia, Mongólia, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan e Tailândia entraram no clube. Mianmar deu passos cautelosos rumo a um regime pluripartidário - passos que vieram acompanhados, como a China não deixou de notar, de um aquecimento das relações com os EUA. A China vive hoje, decididamente, numa vizinhança democrática.
Essas transformações políticas puseram a China e a Rússia na defensiva. Considerem-se os recentes desdobramentos na Ucrânia. As correntes econômicas e políticas na maior parte do país estão fluindo inexoravelmente para oeste, uma tendência que apavora Putin. Seu único recurso foi pressionar a Ucrânia para resistir à UE e permanecer na órbita russa. Embora ele possa ser capaz de manter a Crimeia sob controle russo, seu domínio sobre o restante do país está diminuindo.
Como observou o diplomata da UE Robert Cooper, Putin pode tentar retardar o momento em que a Ucrânia "se filiará à UE, nas não pode impedi-lo". Na verdade, Putin pode nem ser capaz de fazer isso, pois suas medidas provocadoras só aceleraram a aproximação da Ucrânia da Europa.
A China enfrenta um problema similar em Taiwan. Dirigentes chineses sinceramente acreditam que Taiwan faz parte da China, mas os taiwaneses não. A transição democrática na ilha tornou as pretensões de independência de seus habitantes mais profundamente sentidas e legítimas. Uma pesquisa de opinião em 2011 revelou que se os taiwaneses pudessem receber garantias de que a China não atacaria Taiwan, 80% deles apoiariam a declaração de independência. Como a Rússia, a China quer o controle geopolítico sobre sua vizinhança. Mas a disseminação da democracia para todos os cantos da Ásia tornou a dominação à moda antiga a única maneira de alcançar isso e essa opção é dispendiosa e autodestrutiva.
Enquanto a ascensão de Estados democráticos torna a vida mais difícil para China e Rússia, ela torna o mundo mais seguro para os EUA. Essas duas potências podem se considerar rivais dos EUA, mas a rivalidade ocorre num campo de jogo muito desigual: os EUA têm mais amigos e os mais capazes também. Washington e seus aliados respondem por 75% dos gastos militares globais. A democratização pôs China e Rússia numa caixa geopolítica.
O Irã não está cercado de democracias, mas é ameaçado por um movimento pró-democracia insubmisso em casa. Mais importante, o Irã é o membro mais fraco do eixo de Mead, com economia e capacidade militar muito menores do que os EUA e as outras grandes potências. Ele é alvo também do mais forte regime de sanções internacionais jamais montado, com ajuda da China e da Rússia.
A diplomacia do governo Obama para o Irã pode ter sido bem-sucedida ou não, mas não está claro o que Mead faria de diferente para impedir o país de conseguir armas nucleares. A abordagem de Obama tem a virtude de oferecer a Teerã um caminho pelo qual ele pode mudar de potência regional hostil para ser um membro não nuclear mais construtivo da comunidade internacional - um fator de mudança de jogo que Mead não analisa.
O revisionismo revisitado por Mead não só subestima a força dos EUA como a ordem que eles construíram. Ele também exagera no grau em que China e Rússia estão buscando resistir. Tirante suas ambições nucleares, o Irã parece um Estado empenhado mais em protestos fúteis do que numa verdadeira resistência, por isso não deve ser considerado próximo de uma potência revisionista.
Sem dúvida, China e Rússia desejam uma maior influência regional. A China exibiu pretensões agressivas a direitos marítimos e ilhas próximas contestadas. Embarcou num reforço de armamentos. Putin pretende reclamar o domínio da Rússia sobre seu "exterior próximo". As grandes potências se eriçam contra a liderança americana e resistem a ela quando podem.
Mas China e Rússia não são verdadeiras revisionistas. Como disse o ex-chanceler israelense Shlomo Ben-Ami, a política externa de Putin é "mais um reflexo de seu ressentimento com a marginalização geopolítica da Rússia do que um grito de guerra de um império em ascensão".
A China, é claro, é uma genuína potência em ascensão e isso convida a uma competição perigosa com aliados americanos na Ásia. Mas a China não está tentando romper essas alianças ou derrubar o sistema mais amplo de governança da segurança regional concretizado na Associação de Nações do Sudeste Asiático e na Cúpula do Leste Asiático. E mesmo que ela abrigasse ambições de eventualmente fazê-lo, as parcerias de segurança americanas na região são, no mínimo, mais fortes, não mais fracas.
China e Rússia são, na melhor hipótese, estraga-prazeres. Elas não têm interesses - para não mencionar ideias, capacidade ou aliados - para levá-las a subverter regras e instituições globais existentes.
Soberania e interesses. Aliás, embora se ressintam de que os EUA estão no topo do sistema geopolítico atual, elas adotam a lógica subjacente desse arcabouço, e por boa razão. A abertura lhes dá acesso a comércio, investimentos e tecnologia de outras sociedades. As regras lhes dão ferramentas para proteger sua soberania e seus interesses. Apesar das controvérsias sobre a nova ideia de "responsabilidade de proteger" (que só tem sido aplicada seletivamente), a ordem mundial atual só preserva normas antigas de soberania de Estado e não intervenção. Aqueles princípios westfalianos continuam sendo a base da política mundial - e a China e a Rússia amarraram neles seus interesses nacionais (apesar do irredentismo perturbador de Putin).
Não deve surpreender, portanto, que China e Rússia tenham se integrado profundamente na ordem internacional existente. Ambas são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, com direito de veto, e ambas participam ativamente na Organização Mundial de Comércio (OMC), no Fundo Monetário Internacional (FMI), no Banco Mundial e no G-20. Elas são atores geopolíticos, participando de todos os organismos de peso na governança global.
A China, a despeito de sua rápida ascensão, não tem uma agenda global ambiciosa. Ela continua concentrada em sua situação interna, em preservar o regime do Partido Comunista. Algumas figuras políticas e intelectuais chineses, como Yan Xuetong e Zhu Chenghu, têm uma lista de desejos de objetivos revisionistas. Elas veem o sistema ocidental como uma ameaça e estão à espera do dia em que a China poderá reorganizar a ordem internacional. Mas essas vozes não vão muito além da elite política. Aliás, a liderança chinesa se afastou de seus primeiros apelos a uma mudança radical.
Em 2007, numa reunião de seu Comitê Central, o Partido Comunista Chinês substituiu propostas anteriores de uma "nova ordem econômica internacional" por apelos a reformas mais modestas centradas em equidade e justiça. O pesquisador chinês Wang Jisi argumentou que esse movimento é "sutil, mas importante", mudando a orientação da China para as de uma reformadora global. A China agora deseja um papel maior no FMI e no Banco Mundial, mais influência em fóruns como o G-20 e maior uso global de sua moeda. Essa não é a agenda de um país tentando revisar a ordem econômica.
China e Rússia também são membros em boa posição no clube nuclear. O centro do acordo da Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética (e depois a Rússia) foi um esforço compartilhado para limitar armas nucleares. Apesar de as relações russo-americanas terem azedado depois disso, o componente nuclear de seu acordo se manteve. Em 2010, Moscou e Washington assinaram o tratado New Start, que dispõe sobre reduções mútuas em armas nucleares de longo alcance.
Antes dos anos 90, a China era uma estranha no clube nuclear. Apesar de ter um arsenal modesto, ela se via como uma voz do mundo em desenvolvimento não nuclear e criticava os acordos de controle de armas e proibição de testes. Numa mudança notável, a China passou a apoiar o conjunto dos acordos nucleares, incluindo o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares. Ela tem afirmado uma doutrina de "não ser a primeira a usar", tem mantido pequeno seu arsenal e tirou da condição de alerta toda sua força nuclear. A China também jogou um papel ativo na Cúpula de Segurança Nuclear, uma iniciativa proposta por Obama em 2009, e entrou no "processo P5", um esforço cooperativo para proteger essas armas.
Em todo um amplo leque de questões, China e Rússia estão agindo mais como grandes potências estabelecidas do que como revisionistas. Elas com frequência optam por evitar o multilateralismo, mas isso também ocorre com os EUA e outras democracias poderosas. Pequim ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; Washington não.
China e Rússia estão usando regras e instituições globais para defender seus próprios interesses. Suas disputas com os EUA referem-se a ganhar influência dentro da ordem existente e manipulá-la para servir a suas necessidades. Elas querem melhorar suas posições no sistema, mas não estão tentando substituí-lo. 
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

* É COLABORADOR DA FOREIGN AFFAIRS E PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE PRINCETON


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