quinta-feira, 30 de junho de 2022

O Brasil e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia - Paulo Roberto de Almeida (Mackenzie)

 Se algo mudou, desde que escrevi esse artigo, foi para pior...

O Brasil e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

Embora as relações internacionais sejam mais caracterizadas pelas continuidades do que pelas rupturas, estas também ocorrem, geralmente em função de disputas diretas entre grandes potências. 

Paulo Roberto de Almeida

Palestra no Mackenzie, 13/05/2022

https://www.mackenzie.br/liberdade-economica/artigos-e-videos/artigos/arquivo/n/a/i/o-brasil-e-a-guerra-de-agressao-da-russia-contra-a-ucrania

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

Texto de apoio a palestra no encerramento da XX Semana de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, 

sobre o tema da “Guerra na Ucrânia e suas implicações para o Brasil” (13/05/2022)

Introdução: o panorama mundial nas primeiras décadas do século XXI

Vamos partir da seguinte constatação: o mundo andava muito aborrecido, com tudo de ruim que andava acontecendo desde a Grande Recessão dos países desenvolvidos na primeira década deste século, a partir de 2008. O mundo tinha se emocionado um pouco com as crises financeiras dos países emergentes nos anos finais do século e do milênio anterior: crise no México, nos países asiáticos, no próprio Brasil, moratória russa, falência do modelo cambial argentino e, para coroar o século XX, e o milênio anterior, o bug do ano 2000, que foi mais um blimp do que um bang. Depois entramos numa modorra capaz de adormecer os economistas, que sempre foram capazes de prever dez das três crises que efetivamente ocorreram: a China começou a crescer vertiginosamente, em seguida à sua admissão na OMC, em 2001, e todo mundo ficou contente, inclusive o Big Brother americano: as empresas ocidentais estavam ganhando dinheiro como nunca com a produção barata no gigante econômico chinês, o historiador Niall Ferguson previa a consolidação da Chimerica, a estreita complementaridade recíproca entre China e Estados Unidos, e o Brasil de Lula era inundado com um oceano de dólares, com a soja a 600 dólares a tonelada e o minério de ferro a quase 200. Um mundo chato, que parecia crescer indefinidamente, tanto que economistas respeitados passaram a prever um ciclo inédito de crescimento em moto perpétuo.

Assim parecia transcorrer a dinâmica da economia mundial, até que estourou a “exuberância irracional” do Alan Greenspan, seguida pelo furo da bolha do mercado imobiliário, em 2007, repercutindo imediatamente no sistema bancário e de seguros nos Estados Unidos, em 2008, produzindo um efeito de arrastro em todo o mundo desenvolvido, em 2009; o choque repercutiu até na China, que ainda assim manteve uma boa taxa de crescimento, mas resultou numa brutal queda no PIB brasileiro nesse mesmo ano. Pela primeira vez em muitas décadas, a crise econômica atingiu o centro dos países avançados, depois dos choques do petróleo nos anos 1970, da crise da dívida externa dos países latino-americanos nos anos 1980 e da crise dos mercados financeiros nos países asiáticos nos últimos anos do milênio, a “primeira crise financeira do século XXI”, como a designou o então Diretor-Gerente do FMI, Michel Camdessus; essa última, assim como as demais crises não pouparam o Brasil, que teve de se ajustar duramente nas últimas décadas do século XX e que teve de concluir três acordos stand-by de créditos emergenciais com o FMI e países credores por vários anos, desde a decretação da moratória russa, em 1998.

Depois disso, a recuperação começou em diversos mercados avançados e emergentes, com poucas mudanças estruturais na economia mundial, a despeito das primeiras sinalizações feitas por economistas “catastrofistas” – como por exemplo Nouriel Roubini, que está sempre prevendo a próxima crise “avassaladora” – no tocante um tímido processo de desglobalização e retraimento do comércio internacional com respeito ao crescimento do PIB mundial. Esse quadro se agravou quando um decidido opositor da globalização e do livre comércio foi eleito presidente dos Estados Unidos, prometendo demagogicamente “fazer a América grande novamente”, ou seja, uma política de introversão produtiva e de nacionalismo míope. Nunca antes, desde Bretton Woods, o governo americano havia se empenhado em desmantelar a ordem econômica global que ele mesmo havia se esforçado em construir, com bases nos princípios do multilateralismo incondicional e nas práticas da liberalização comercial.

Enquanto isso, a China, admitida no Gatt-OMC em 2001, continuava sua longa marcha em direção à sua inserção econômica global, primeiramente nos campos da divisão mundial do trabalho e dos intercâmbios comerciais globais, depois nas áreas da cooperação ao desenvolvimento, mas sobretudo nos investimentos em infraestrutura em países pobres. O Brasil se beneficiou enormemente da imensa avidez chinesa por commodities de todos os tipos, em especial grãos, carnes e minérios, assim como pela oferta concorrente à da indústria nacional de ampla gama de manufaturados de qualidade a preços extremamente reduzidos: o gigante asiático se tornou o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009, destronando nesse setor os Estados Unidos, que sempre foram o primeiro parceiro bilateral em todos os quesitos da vida econômica desde mais de um século.

Depois de um fin-de-siècle marcado pela arrogância unipolar do império americano sobre a agenda mundial, a primeira década do século XXI foi, portanto, marcada por um sutil, silencioso, mas efetivo rearranjo das relações econômicas internacionais, com a ascensão fulgurante da China, uma presença também relativamente bem sucedida da Índia nos assuntos globais, e um lento, mas deformado, retorno da Rússia pós-soviética aos novos equilíbrios geopolíticos em conformação, contemporaneamente ao lamento do seu novo líder, Vladimir Putin, sobre a “maior catástrofe geopolítica do século XX”, que teria sido o desaparecimento da União Soviética. Aliás, o chanceler brasileiro do lulopetismo diplomático, Celso Amorim, dava início, em 2006, aos primeiros entendimentos com seu colega russo, Sergey Lavrov, para tornar o exercício puramente econômico de um funcionário de um grande banco de investimentos sobre as oportunidades de mercado existentes em quatro grandes países em desenvolvimento – justamente os BRICs, Brasil, Rússia, Índia e China – em um grupo diplomático formalmente estabelecido: a metamorfose ocorreu no final da década, para ser, logo em 2011, ampliada pelas mãos da China, visando incorporar a África do Sul a esse bloco pouco convergente de novos atores internacionais. 

Paralelamente, as novas ameaças surgidas depois dos ataques às torres gêmeas de Nova York e ao Pentágono em Washington, em setembro de 2001, quando os Estados Unidos adotaram uma postura absolutamente monotemática de “caça aos terroristas”, seguidas pelas incursões armadas da superpotência no Oriente Médio, resultando numa completa ruptura dos equilíbrios internos e geopolíticos em diversos países da região e do norte da África, o que provocou o intensificação dos fluxos migratórios irregulares em direção à Europa ocidental e outros países desenvolvidos. Atentados do terrorismo islâmico e emigração selvagem tiveram o poder de reavivar os sentimentos xenofóbicos de parte das populações desses países, dando novo alento a partidos de direita e movimentos nacionalistas em todos eles, sobretudo na Itália, na Áustria e Alemanha, em países da Europa central e oriental, inclusive nos Estados Unidos, onde o Partido Republicano foi praticamente sequestrado por um oportunista que já havia tentado a sorte com os Democratas, Donald Trump. Tal foi o início de uma grande mudança nas relações internacionais que vai se acentuar na terceira década deste século.

As grandes rupturas nos equilíbrios internacionais e os novos arranjos pós-Ucrânia

Embora as relações internacionais sejam mais caracterizadas pelas continuidades do que pelas rupturas – com base no fato de que um mesmo grupo restrito de grandes potências militares e economias avançadas continua a gerir a agenda mundial nos últimos séculos –, estas também ocorrem, geralmente em função de disputas diretas entre essas mesmas grandes potências. Num livro de duvidosa consistência teórica e baseado em fundamentação empírica bastante seletiva, o cientista político Graham Allison – conhecido autor de uma análise clássica sobre a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, The Essence of Decision: explaining the Cuban Missile Crisis (1971; 2ª ed.: 1999, com Philip Zelikow) – tentou prever a próxima grande catástrofe geopolítica, desta vez entre uma potência estabelecida, os Estados Unidos, e uma ascendente, a China.

Allison o faz sob a forma de um discutível dossiê organizado ao abrigo do ambíguo conceito de “armadilha de Tucídides”: A Caminho da Guerra: os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides? (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020; tradução de Cássio de Arantes Leite a partir da 2ª. edição americana, Destined to War, 2017, edição original: 2015). À página 283 da edição brasileira, e precedendo um longo apêndice explicativo, Allison consigna uma tabela alinhando 16 grandes conflitos entre potências rivais, uma supostamente dominante, a outra ascendente, em torno de objetivos de supremacia naval ou territorial, 12 dos quais resultaram em guerras e apenas quatro não teriam apresentado solução bélica. Muitas das inserções apresentam alto grau de subjetividade, tanto pela natureza da disputa, quanto pela designação dos contendores ou a definição de guerra ou não guerra. Por exemplo, a 15ª “armadilha de Tucídides” seria o período da Guerra Fria, dos anos 1940 aos 80, com os EUA como potência dominante e a União Soviética como “potência em ascensão”, numa disputa pela dominação global, e que, segundo Allison, se teria concluído “sem guerra” (o que é altamente duvidoso, tendo em vista as muitas “guerras por procuração”, ou proxy wars, que foram travadas entre elas, geralmente no Terceiro Mundo). O 16º. e último conflito se teria desenvolvido desde a década de 1990 até o presente, entre Reino Unido e França, como potências dominantes, e a Alemanha, como potência em ascensão”, supostamente em busca do domínio ou influência política sobre a Europa, e que também estaria inconclusivo até o presente momento. 

Em ocasiões anteriores, notadamente por ocasião das guerras napoleônicas, do início do século XIX, da primeira guerra da Crimeia em 1853-55, da guerra franco-prussiana que redundou na unificação da Alemanha em 1870-71, das disputas russo-japonesas do final do século XIX e início do XX e, sobretudo, da segunda “guerra de trinta anos, da primeira metade do século XX, tais conflitos entre potências produziram mudanças nos cenários hegemônicos em escala regional ou mundial, tendo sido “resolvidos” por conferências diplomáticas de amplo escopo, em Viena (1815), Paris (1919) e San Francisco (1945), delas resultando novos modus vivendi entre as grandes potências, a última delas criando a ordem política multilateral sob a qual ainda vivemos, sob a égide das Nações Unidas. Essa ordem manteve-se relativamente intacta, a despeito de importantes transformações no cenário global ao longo das últimas oito décadas: descolonização das antigas dependências coloniais europeias, fim do império soviético, justamente, e ascensão da China ao primeiro escalão da economia global, com profundas alterações nas relações econômicas internacionais.

Pois bem, nos últimos três meses temos sido apresentados a uma variedade de cidades ucranianas antes praticamente desconhecidas – Kherson, Mariupol, Kharkiv –, devido aos dotes de “turismo bélico” de um novo Baedeker russo, Vladimir Putin. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, uma “república federada” da antiga União Soviética entre 1921 e 1991, pode estar lançando as bases de novos equilíbrios internacionais, com importantes alinhamentos e desalinhamentos regionais, tocando basicamente na geografia política europeia – especificamente a da União Europeia – e na geopolítica do mais relevante esquema de segurança e defesa desde o final dos anos 1940, a Otan. Tais desenvolvimentos certamente exigirão uma nova edição da duvidosa obra de Graham Allison sobre o temido conflito entre a Esparta-China e a Atenas-EUA, trazendo a Rússia de Putin ao centro de uma 17ª “armadilha de Tucídides”, ainda que, stricto sensu, a Rússia não poderia ser exatamente considerada uma “potência em ascensão”, talvez um poderoso revisionista bélico, mas dotado de base econômica muito reduzida para a sua amplidão territorial e pretensões geopolíticas.

Qualquer especulação sobre o novo cenário geopolítico a ser criado por alguma definição quanto à guerra de agressão da Rússia de Putin contra a Ucrânia depende, no entanto, mais da postura que possa exibir a China de Xi Jinping – e sua “aliança sem limites” com a Rússia de Putin – do que do estrito resultado dessa guerra inesperada, que terminará provavelmente num impasse, com a preservação da independência da Ucrânia, sua adesão quase certa à União Europeia e um status ainda indefinido com relação à Otan. A Rússia emergirá diminuída em seu prestígio internacional, abalada em sua base econômica, assim como excluída de diversos foros multilaterais, cabendo ainda aguardar quanto a novos desenvolvimentos e definições mais precisos com respeito à “aliança” sino-russa e com relação ao futuro do Brics, um grupo informal que comporta ainda Índia, Brasil e África do Sul. Sem argumentos adicionais nessa esfera da alta geopolítica mundial, caberia agora traçar o impacto político, econômico e diplomático desse conflito com respeito ao Brasil.

O Brasil, o direito internacional e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

Desde o Barão do Rio Branco, seguido por Rui Barbosa, passando por Oswaldo Aranha, chegando a San Tiago Dantas, os grandes nomes da diplomacia brasileira no século XX souberam imprimir, pelos seus escritos e ações, uma espécie de corpus doutrinal informal que, com base no absoluto respeito ao Direito Internacional e numa ação político-diplomática que, paulatinamente, foi reforçando a sua vertente multilateralista, consolidou, na corporação profissional dos diplomatas, um padrão e um estilo de ação que muito distinguiram tanto a diplomacia nacional, quanto as grandes linhas da sua política externa em face do mundo. A Constituição de 1988, finalmente, consagrou, em seu Artigo IV, uma série de cláusulas fundamentais que consolidam os princípios pelos quais se guia a nação nas suas relações internacionais; cabe citá-las por inteiro: 

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: 
I - independência nacional; 
II - prevalência dos direitos humanos; 
III - autodeterminação dos povos; 
IV - não-intervenção; 
V - igualdade entre os Estados; 
VI - defesa da paz; 
VII - solução pacífica dos conflitos; 
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; 
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; 
X - concessão de asilo político. 
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
 (Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)

Estes são princípios gerais que inspiram a ação diplomática, mas não se detêm, especificamente no patrimônio jurídico-legal que foi sendo acumulado ao longo dos anos, sobretudo no período contemporâneo, e que deve servir de baliza quanto aos princípios e valores que devem guiar, na prática, a ação da diplomacia e balizar as referências doutrinais e “contratuais” da política externa concreta. Servimo-nos, para esse particular, do preâmbulo proposto pelo jurista Modesto Carvalhosa para o estabelecimento de uma nova Constituição para o Basil, por ele proposta com o objetivo de tornar o Brasil uma autêntica democracia. Transcrevo, da letra G do preâmbulo ao texto do anteprojeto de Constituição por ele proposto, as seguintes disposições normativas: 

G – A Nação brasileira proclama sua vinculação plena aos direitos humanos, individuais, coletivos e sociais expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e suas Resoluções; na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e suas Resoluções; na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados e suas Resoluções; na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho e suas Resoluções, sobre Povos Indígenas e Tribais [Nota PRA: aprovada por Decreto Legislativo de 2002, mas ainda não ratificada pelo Brasil junto à OIT]. Declara, ainda, seu irretratável compromisso com a preservação do meio ambiente e do clima tal como disposto no Acordo de Paris de 2016 e em suas Resoluções e demais tratados e convenções subscritas pela Nação Brasileira no interesse do país, do continente, da humanidade e da preservação da vida no planeta. (Modesto Carvalhosa, Uma nova constituição para o Brasil: de um país de privilégios para uma nação de oportunidades. São Paulo: LVM Editora, 2021, p. 38) 

O mesmo jurista, em seu exercício textual em prol de uma nova Carta Constitucional para o Brasil, teve o cuidado de desdobrar os princípios e os dispositivos constitucionais que entende devem aplicar-se à prática das relações internacionais pelo Brasil, num longo artigo propositivo que cabe transcrever por inteiro, pois oferece uma visão mais completa de como devem ser conduzidas as relações internacionais do Brasil: 

Dos tratados e convenções internacionais
Art. 102– Cabe ao Presidente da República negociar, celebrar, ratificar, promulgar e denunciar os tratados ou as convenções internacionais de natureza universal, regional e bilateral, que serão recepcionados com plena vigência, validade e eficácia pelo ordenamento jurídico nacional após sua promulgação e publicação em regime de paridade com a lei ordinária.
As normas previstas em tratados ou convenções internacionais ratificados pelo Brasil que versem sobre matéria tributária prevalecem sobre a lei ordinária.
Independentemente do rito de aprovação adotado pelo Congresso Nacional, as normas previstas em tratados ou convenções internacionais ratificados pelo Brasil que versem sobre direitos humanos e que sejam mais benéficas ao cidadão prevalecem sobre a constituição federal e sobre a lei ordinária brasileiras, que terão sua eficácia automaticamente protraída durante toda a vigência dos referidos textos internacionais.
Os tratados ou as convenções internacionais, uma vez celebrados pelo Presidente da República, serão submetidos ao Congresso Nacional. Se aprovados pelas duas Casa legislativas, serão remetidos para ratificação e promulgação pelo Presidente da República.
Na hipótese de não aprovação pelo Congresso de tratado ou convenção internacional que verse, total ou parcialmente, sobre direitos humanos, caberá ao povo aprovar ou rejeitar a respectiva norma de direitos humanos no referendo bienal que se seguir.
Será também submetida à aprovação do Congresso e ao referendo bienal, em se tratando de matéria de direitos humanos, a denúncia unilateral, pelo Presidente da República, de tratados ou convenções internacionais ratificados pelo Brasil. 
Incluem-se na categoria dos tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos os que versem sobre direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ao meio ambiente natural, ao clima, às águas e à dignidade da pessoa humana.
 (Carvalhosa, Uma nova Constituição para o Brasil, op. cit., p. 60-61)

Cabe concluir, pelas transcrições e exemplos acima, que o Brasil aparece, concretamente e potencialmente, como suficientemente munido de um corpo de princípios sólidos e democraticamente orientados à sua plena participação no sistema internacional, em especial no que se refere à cooperação internacional, regional e bilateral, na defesa da paz e da segurança internacional, visando à promoção integrada do desenvolvimento humano e social, assim como ao pleno fortalecimento de instituições democráticas no âmbito interno e no ambiente internacional. Tem sido assim, com poucas controvérsias, desde a consolidação de um corpo profissional de diplomatas orientados para a busca daqueles princípios e objetivos. Daí o grande prestígio de que sempre gozou a diplomacia brasileira. 

De fato, desde Rio Branco e Rui Barbosa, a diplomacia brasileira assume uma postura multilateralista exemplar, a despeito do desastre que foi a condução do assunto da Liga das Nações, e nossa saída desastrada, em 1926, inteiramente devido à inépcia e teimosia do presidente Artur Bernardes. Mas, mesmo tendo saído da Liga, o Brasil continuou a seguir os trabalhos do organismo, sobretudo do ponto de vista econômico, como ocorreu, por exemplo, com a conferência econômica e financeira de Londres, em 1933, sem qualquer resultado prático, mas que serviu para negociações com os principais parceiros econômicos do Brasil nos mercados de café e no fornecimento de recursos financeiros (já em estado de moratória técnica e de renegociação dos atrasados). Graças a Oswaldo Aranha, o Brasil manteve uma postura alinhada aos EUA durante toda a guerra, sendo beneficiário dos acordos de Lend-Lease e dispondo-se a participar das operações de guerra no teatro europeu.

Foi com base nessa aliança informal que participamos da construção da ordem econômica e política do pós-guerra, desde Bretton Woods, em junho de 1944, a reunião de Chapultepec, em janeiro de 1945, e finalmente a conferência de San Francisco, em meados daquele ano, quando assinamos a Carta, mas indicamos nossa objeção do direito de veto, solicitando uma outra conferência diplomática em poucos para revisar esse dispositivo claramente discriminatório. Pode-se dizer que o Brasil aderiu a todos os instrumentos diplomáticos do multilateralismo contemporâneo, em todas as esferas de atividade. No campo da segurança internacional, depois do Pacto Briand-Kellogg de 1928, que visava obter o compromisso de todos os Estados com a solução pacífica das controvérsias, a Carta das Nações Unidas de 1945 prescreve claramente a proibição do recurso à guerra para os mesmos casos, como se constata imediatamente no seu Artigo 2: 

Article 2
The Organization and its Members, in pursuit of the Purposes stated in Article 1, shall act in accordance with the following Principles.

1. The Organization is based on the principle of the sovereign equality of all its Members.
2. All Members, in order to ensure to all of them the rights and benefits resulting from membership, shall fulfill in good faith the obligations assumed by them in accordance with the present Charter.
3. All Members shall settle their international disputes by peaceful means in such a manner that international peace and security, and. justice, are not endangered.
4. All Members shall refrain in their international relations from the threat or use of force against the territorial integrity or political independence of any state, or in any other manner inconsistent with the Purposes of the United Nations.

(Texto integra da Carta da ONU disponível na base de dados do Projeto Avalon da Universidade de Yale: avalon.law.yale.edu/20th_century/unchart.asp)

Com base nesses dispositivos, a Rússia já deveria ter sido unanimemente condenada pelos demais membros do Conselho de Segurança, o que de fato ocorreu, mas com várias abstenções, sobretudo a da China e as de diversos outros países; não é preciso detalhar que a resolução recebeu o veto da própria Rússia. Da mesma forma, uma grande maioria de membros da Assembleia Geral também ratificou tal condenação, embora não com a maioria avassaladora que seria de se esperar, a partir de uma violação tão clara, tão flagrante, de um dos principais artigos da Carta da ONU. E qual foi a postura do Brasil em relação ao conjunto de deliberações e votações que ocorreram desde quando a guerra de agressão começou, em 24 de fevereiro de 2022, até a fase recente da questão? É o que veremos a partir de agora.

O Brasil e o processo multilateral em torno do conflito na Ucrânia

Antes de examinar quais foram, exatamente, as posturas adotadas em nome do Brasil pela representação junto às Nações Unidas em Nova York, caberia precisar algumas coisas: em primeiro lugar, o que o mundo leva em conta, como posição oficial do Brasil, são as declarações e os votos registrados no Conselho de Segurança da ONU e na sua Assembleia Geral, assim como em instâncias derivadas do órgão, como o Conselho de Direitos Humanos e outras agências especializadas; em segundo lugar, o que é dito em nome do Brasil nessas instâncias nem sempre é a posição do corpo profissional do Itamaraty, enquanto instituição de Estado encarregada das relações exteriores do país, mas pode expressar, concreta e claramente, a postura do governo, isto é, do chefe do Executivo, que tem a última palavra, aconselhado por assessores próximos, sobre qual será a política externa do Brasil; o que o presidente declara, ocasionalmente, em encontros improvisados com seus apoiadores, não tem qualquer valor como postura oficial do governo, pois, há muito tempo, o mundo, ou seja, os agentes diplomáticos aqui acreditados, mais os correspondentes e observadores estrangeiros deixaram de levar a sério o que é dito pelo presidente, preferindo se fiar mais nas notas oficiais do Itamaraty, e no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, nas declarações da delegação do Brasil junto à ONU; em terceiro lugar, portanto, podem ocorrer discrepâncias entre o que o Itamaraty pensa sobre quais deveriam ser as posições oficiais do Brasil a esse respeito, e o que transparece nessas declarações, artigos e entrevistas a respeito do mais importante problema de paz e segurança internacional da atualidade. 

Não é preciso lembrar, ab initio, que a postura adotada pelo Brasil desde praticamente a consolidação dos grandes princípios de sua política exterior, no Segundo Reinado, em meados do século XIX, foi a defesa intransigente do Direito Internacional. Ao início de seu envolvimento com questões internacionais, que se deu na segunda conferência internacional da paz, realizada na Haia em 1907, Rui Barbosa expressou em termos claros o princípio que se converteria no eixo central do multilateralismo contemporâneo e o defendeu de maneira enfática: a igualdade soberana dos Estados, não importa seu tamanho, ou seu poderio militar. Esse mesmo princípio foi repetido ipsis litteris pelo presidente da Finlândia quando ele discorreu, no início do ano, sobre a possibilidade de o país, oficialmente neutro desde a Segunda Guerra Mundial, vir a aderir, isoladamente ou em conjunto com a Suécia, à Otan.

A defesa do Direito Internacional e da paz, a busca de solução pacífica dos conflitos entre Estados, e a não interferência nos assuntos internos dos demais Estados constituem, portanto os elementos fundamentais da postura do Brasil e da própria comunidade mundial que assinou e prometeu respeitar a Carta das Nações Unidas. Na conferência internacional de San Francisco de 1945 que aprovou essa Carta a delegação do Brasil manifestou sua objeção ao direito de veto, como contrário ao princípio da igualdade soberana dos Estados, mas, com o espírito de facilitar o primeiro grande entendimento mundial depois do mais terrível conflito militar em qualquer época histórica precedente, resolveu aceitar essa exceção, pedindo, no entanto, que essa questão fosse revista em poucos anos mais à frente. Isso nunca se fez, como é sabido, tendo ocorrido apenas uma revisão da Carta para a ampliação do número de membros temporários do seu Conselho de Segurança. 

Pois bem, tendo em vista estes elementos fundamentais da posição diplomática do Brasil, o que teria sido possível de se esperar quando a Rússia, em 2014, desrespeitando a Carta da ONU e a soberania do vizinho país, invadiu e sequestrou violentamente a península da Crimeia e a declarou parte do seu território? Como diversos outros países o fizeram, o normal teria sido que o Brasil condenasse a atitude da Rússia com base na Carta da ONU e em seus próprios princípios de relações internacionais inscritos em sua Constituição. Ora, nada disso se fez, de onde se conclui que o Brasil do governo Dilma Rousseff violou, de forma clara e insofismável, sua fidelidade absoluta à Carta da ONU, ao Direito Internacional e à sua própria Constituição. Cabe relembrar que a presidente Dilma Rousseff fez pior do que isso: confirmou expressamente, em uma reunião do G20, que o Brasil não tinha, e não teria, em seu governo, qualquer posição sobre a Ucrânia, alegando que o Brasil “não se envolveria em assuntos de outros países” (sic; O Globo, 16/11/2014). Ironicamente, no almoço oferecido pelo país anfitrião, a Austrália, Putin sentou-se só, numa mesa, com apenas uma pessoa à sua frente, Dilma Rousseff; não ocorreu nenhuma conversa entre os dois e o presidente russo deixou mais cedo a reunião do G20, criticado pela grande maioria dos presentes.

Passando de 2014 a 2022, quais foram as posições adotadas e as declarações feitas pelo representante do Brasil na ONU, em nome do país, imediatamente após a violação da Carta da ONU pela invasão armada do território da Ucrânia por forças militares da Rússia no dia 24 de fevereiro de 2022? Na verdade, a postura ambígua do Brasil com respeito a um possível conflito na região antecedeu a própria invasão, e possivelmente tem relação com a inadequada visita do chefe de Estado brasileiro ao seu parceiro da Rússia, alguns dias antes de iniciada a invasão. Como se sabe, a invasão foi precedida pela inusitada declaração de Putin reconhecendo a “independência” das duas províncias rebeldes da Ucrânia oriental. Ao se pronunciar sobre a questão, em 21 de fevereiro, o Representante do Brasil na ONU deu início a uma posição de aparente “equilíbrio” entre as partes, reafirmando a “necessidade de buscar uma solução negociada, com base nos Acordos de Minsk, e que leve em consideração os legítimos interesses de segurança da Rússia e da Ucrânia”, como se este segundo país tivesse condições de ameaçar a segurança do primeiro. (As declarações do Brasil no âmbito da ONU sobre a Ucrânia, estão disponíveis neste link: www.gov.br/mre/pt-br/Brasil-CSNU/discursos-artigos-e-entrevistas; filtrar por “declarações de voto” e por “Ucrânia”).

Segundo declaração feita no mesmo dia da invasão pelo Representante do Brasil na ONU, depois de afirmar que o governo brasileiro acompanhava “com grave preocupação a deflagração de operações militares pela Federação da Rússia contra alvos no território da Ucrânia”, a posição apresentada aos membros do Conselho de Segurança foi a seguinte: 

O Brasil apela à suspensão imediata das hostilidades e ao início de negociações conducentes a uma solução diplomática para a questão, com base nos Acordos de Minsk e que leve em conta os legítimos interesses de segurança de todas as partes envolvidas e a proteção da população civil.

Vista de uma maneira leniente, esta foi a primeira das hipocrisias perpetradas, não pelo Itamaraty, mas pelo atual governo brasileiro, a respeito da mais grave violação do Direito Internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial. Como pedir “suspensão de hostilidades”, como se estas fossem recíprocas e equivalente, ou seja, dois países mantendo hostilidades um contra o outro? O que ocorreu, e a declaração se eximiu de dizer, foi uma violação flagrante do Artigo 2º da Carta da ONU, tão flagrante que todos os países amantes da paz e defensores do Direito Internacional se apressaram em condená-la da maneira mais veemente. Como proclamar, por outro lado, a necessidade de uma solução diplomática para a questão, levando em conta “os legítimos interesses de segurança de todas as partes”, como se a Ucrânia tivesse colocado em risco a segurança da Rússia? O desequilíbrio nos conceitos transparece de maneira clara, em especial a total falta de identificação da parte responsável pela violação de todos os princípios expressos no terceiro parágrafo dessa declaração: 

Como membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Brasil permanece engajado nas discussões multilaterais com vistas a uma solução pacífica, em linha com a tradição diplomática brasileira e na defesa de soluções orientadas pela Carta das Nações Unidas e pelo direito internacional, sobretudo os princípios da não intervenção, da soberania e integridade territorial dos Estados e da solução pacífica das controvérsias.

O governo brasileiro se esqueceu de dizer quem estava violando esses princípios basilares do Direito Internacional, da Carta da ONU e de sua própria Constituição. Como tinha sido feito em 2014, o Brasil não tinha nada de muito concreto a dizer sobre o caso. Essa primeira posição oficial sobre a agressão da Rússia à Ucrânia ocorreu pouco tempo depois que o presidente brasileiro efetuou uma visita oficial à Rússia, declarou que era solidário ao país e ao seu líder, com quem entreteve-se amistosamente, e depois que a embaixada em Kiev, contrariamente à maioria das demais representações diplomáticas no país, tranquilizou os brasileiros residentes. No próprio dia da invasão, o Itamaraty apenas recomendou em nota que “cidadãos brasileiros em território ucraniano, em particular aos que se encontrem no leste do país e outras regiões em condições de conflito, que mantenham contato diário com a Embaixada.” Foi patético, para dizer o mínimo. 

Na primeira reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas para tratar da situação da Ucrânia invadida selvagemente pelas tropas russas, a partir da própria Rússia e da Belarus, a declaração do representante brasileiro persistiu na linguagem ambígua, evitando de indicar claramente a natureza do conflito e o responsável pela agressão e pela violação da paz e da segurança internacional, ainda que revelando a preocupação do governo brasileiro – provavelmente bem mais do próprio Itamaraty –com as “operações militares russas contra alvos em território ucraniano.” Mas o que se seguiu persistiu na linguagem neutra, o que coincida com a expressão utilizada logo em seguida pelo chefe de Estado para se desvincular da postura de “solidariedade” ao agressor russo. Segundo a declaração e explicação de voto numa resolução (não aprovada) do CSNU condenando a invasão, em 25/02/2022: 

... nosso principal objetivo atual [isto é, de todos os membros do CSNU] é o de interromper imediatamente as hostilidades em curso. Como devemos fazer isso? Primeiramente, o Conselho de Segurança deve agir prontamente quanto ao uso da força contra a integridade territorial de um Estado membro. Um limite foi ultrapassado, e este Conselho não pode permanecer em silêncio.

A ironia totalmente despropositada estava, em primeiro lugar, na recomendação inicial de “interrupção das hostilidades em curso”, como se, mais uma vez, elas fossem recíprocas e estivessem sendo cometidas de maneira simétrica, cabendo então esse chamado à razão para a “cessação de hostilidades”, como já tinha sido a demanda no dia anterior. Compareceu, igualmente, em segundo lugar, uma renovada menção às “preocupações de segurança manifestadas nos últimos anos pela Federação da Rússia, particularmente no que diz respeito ao equilíbrio estratégico na Europa”, como se estas “preocupações” tivessem se concretizado numa “iminente ameaça de guerra”, ou de invasão do território russo, que seria a única hipótese suscetível do recurso à força autorizado pela Carta da ONU. Em terceiro lugar, compareceram novamente os grandes conceitos do Direito Internacional, que são também, tradicionalmente, os da diplomacia brasileira, mas que permaneceram no ar, sem uma indicação concreta quanto à sua violação por uma parte plenamente identificada: 

O sistema de segurança coletiva das Nações Unidas baseia-se, em última instância, no pilar do direito internacional. A igualdade soberana e a integridade territorial dos Estados membros da ONU não são palavras vazias. É nosso dever dar significado concreto às altas aspirações dos redatores da Carta da ONU.

Ironicamente, mais uma vez, numa nova explicação da posição do Brasil, depois que o veto da Rússia inviabilizou a adoção da resolução condenando-a pela violação da Carta da ONU, e da sua ameaça concreta à paz e à segurança internacional, a delegação, lamentando que em casos precedentes o Conselho também tinha se mostrado incapaz de demonstrar reação equivalente, declarou o seguinte: 

O Brasil lamenta que o Conselho de Segurança não tenha sido capaz de reagir ao rompimento da paz e segurança internacionais que está em curso, enquanto fazemos pronunciamentos nesta reunião.

Ou seja, houve um rompimento da paz e da segurança internacionais, mas o Brasil se esquivou de indicar claramente e diretamente a identidade do agressor, insistindo em conceitos vagos sobre o Direito Internacional e sobre a responsabilidade do Conselho. Em seguida, antecipando-se a uma nova discussão da questão ucraniana no âmbito da Assembleia Geral, no dia 27 de fevereiro, o delegado do Brasil expressou, numa linguagem aparentemente neutra, mas que expressava, objetivamente, uma postura favorável à Rússia, a posição contrária do Brasil no tocando às sanções e fornecimento de armas: 

Let us be exceedingly cautious in moving forward in the General Assembly. The supply of weapons, the recourse to cyberattacks, and the application of selective sanctions, which could affect sectors such as fertilizers and wheat, with a strong risk of famine, entail the risk of exacerbating and spreading the conflict and not of solving it. We cannot be oblivious to the fact that these measures enhance the risks of wider and direct confrontation between NATO and Russia. It is our duty, both in the Council and in the General Assembly, to stop and reverse this escalation. We need to engage in serious negotiations, in good faith, that could allow the restoration of Ukraine's territorial integrity, security guarantees for Ukraine and Russia, and strategic stability in Europe. (Declaração em sessão do CSNU, em 27/02/2022)

Numa longa declaração feita no âmbito da Assembleia Geral, no dia 28/02/2022, a delegação do Brasil não mudou sua postura quanto às consequências do ato de agressão – jamais identificado por esse conceito ou no tocante ao agressor, nominalmente designado –, mas lamentou que o projeto de declaração condenando a Rússia não tivesse sido adotado. A declaração reconhece, em todo caso, que o governo da Ucrânia tinha iniciado um caso na Corte Internacional de Justiça baseado na Convenção sobre o Genocídio. Poucos dias depois a CIJ adotava uma “Ordonnance” condenando a Rússia, ordenando a retirada das tropas, aprovada por todos os seus juízes, à exceção da juíza chinesa e, obviamente, do juiz russo. Mas o representante do Brasil volta novamente a adotar uma postura objetivamente pró-Rússia quando a sua declaração expressa o seguinte entendimento sobre a origem do conflito: 

Over the last years, we have seen the progressive deterioration of the security situation and balance of power in Eastern Europe. The undermining of the Minsk agreements by all parties and the discrediting of the security concerns voiced by Russia prepared the ground for the crisis we are all witnessing.

Em outros termos, a deterioração da “balança de poder” na Europa Oriental poderia ser explicada pelo não respeito dos acordos de Minsk “por todas as partes” – como se a Rússia, a invadir e sequestrar a província ucraniana da Crimeia, em 2014, já não tivesse minado a arquitetura da paz desenhada em Minsk, e como se a Ucrânia fosse responsável pelo “descrédito das preocupações de segurança expressas pela Rússia”, como se estes fossem os elementos responsáveis pelo início do conflito e pela invasão da Ucrânia. Da mesma forma, a delegação volta a expressar a preocupação do governo brasileiro com as decisões de certos “atores” – não designados, mas claramente os países “ocidentais” – com respeito ao suprimento de armas, o recurso a ataques cibernéticos e a aplicação de sanções seletivas, que poderiam afetar a economia global e ameaçar a segurança alimentar, como se estes problemas já não tivessem sido provocados pela Rússia, antes e durante a sua agressão. Novamente se apela à “cessação de hostilidades” – como se estas fossem recíprocas, como já observado aqui – e à criação de condições para um “maior sentido de segurança entre todos os envolvidos”, como se as duas partes fossem igualmente responsáveis pelo conflito.

Por ocasião de nova sessão de emergência da Assembleia Geral, realizada em 2 de março, a delegação volta a insistir nos conceitos e posturas já expressos anteriormente, quanto à “cessação de hostilidades” e um “trabalho abrangente a propósito das preocupações de segurança das partes”, como se houvesse simetria nesse jogo desequilibrado. Tal posição coincidia com novos conceitos expressos no Brasil, num malabarismo bizarro, pois que já superando a expressão de “solidariedade” e a manifestação de “neutralidade” para uma de “equilíbrio” e de “imparcialidade” no conflito. A esse respeito, pode-se relembrar as palavras de Rui Barbosa, em 1916, quando ele condenou, em tom veemente, a neutralidade de países, entre eles o Brasil, a respeito da invasão do Reino da Bélgica pelo Império Alemão, com as seguintes palavras: 

Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade possível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. (Rui Barbosa, Conceitos Modernos do Direito Internacional; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983)

Essa clara postura de Rui Barbosa, quanto aos “deveres dos neutros”, foi relembrada pelo chanceler Oswaldo Aranha, em 1942, no exato momento em que o Brasil se viu confrontado à extensão da guerra europeia ao continente americano, instando, então, o país a assumir suas responsabilidades no plano dos princípios do direito internacional e em consonância com os deveres da solidariedade hemisférica. A Alemanha tinha, mais uma vez, violado a neutralidade da Bélgica, para invadir a França. A postura de Aranha foi decisiva para que, ao contrário da vizinha Argentina, então controlada pelo Grupo de Oficiais Unidos, de orientação simpática ao Eixo, o Brasil adotasse uma postura compatível com a construção doutrinária iniciada por Rui e de acordo a seus interesses nacionais, nos contextos hemisférico e global, em face do desrespeito brutal ao direito internacional cometido pelas potências nazifascistas na Europa e fora dela. O governo do Brasil, ou sua diplomacia, parecem ter se esquecido das palavras de Rui Barbosa que, no entanto, compõem o eixo doutrinal da moderna diplomacia brasileira, junto com as lições de Rio Branco e San Tiago Dantas. Com efeito, vinte anos depois de Oswaldo Aranha, o chanceler San Tiago Dantas, um dos grandes tribunos do pensamento jurídico da diplomacia brasileira, defendeu o respeito ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, que estava então em causa nas conferências e reuniões panamericanas em torno do caso de Cuba.

Dois dias depois das declarações no âmbito da AGNU, em 4 de março, o representante do Brasil no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, se opunha à expulsão da Rússia daquele órgão, considerava o projeto de declaração falho e desequilibrado e lamentava as menções à possíveis ações no âmbito do Tribunal Penal Internacional, ainda que votando a favor da resolução sobre “a Situação dos Direitos Humanos na Ucrânia decorrente da agressão russa”. De forma geral, o teor das declarações feitas em nome do Brasil pelos representantes na ONU, em Nova York e Genebra, sempre expressou as restrições da chefia do Executivo contrárias a uma condenação direta da Rússia pelo seu ato de agressão e de clara violação da Carta da ONU. Nas etapas seguintes, com a extensão do conflito e a inesperada reação dos ucranianos em defesa do seu território, o Brasil continuou a manter uma oposição de princípio à imposição de sanções unilaterais contra o agressor – pelo simples motivo que medidas multilaterais estavam fora de cogitação dado o malfadado direito de veto concedido à Rússia –, assim como contra o fornecimento de armas. 

As justificativas alegadas eram as de que sanções agravariam a situação econômica de todas as partes, do mundo inteiro, e não apenas daquelas envolvidas diretamente no conflito, e que o fornecimento de armas causaria ainda mais mortes de civis inocentes. A decorrência lógica da postura brasileira seria a de que o agressor poderia ficar impune pela sua agressão – não considerando o fato de que todas as sanções implementadas seguiam rigorosamente o espírito e a letra dos artigos 41 e 42 da Carta da ONU – assim como se convidava o povo ucraniano a não se defender, deixando que a parte mais forte aplicasse toda a força militar à sua disposição, pois que seria inútil o mais fraco tentar se contrapor ao mais forte. Pronunciei-me sobre a posição adotada pelo Brasil desde o início do conflito num artigo publicado pelo blog científico International Law Agendas, do ramo brasileiro da International Law Association, que abordava igualmente outras questões de direito internacional e de posições adotadas pelo Brasil: “Renúncia infame: o abandono do Direito Internacional pelo Brasil” (7/03/2022; link: http://ila-brasil.org.br/blog/uma-renuncia-infame/). 

Em nova reflexão sobre o assunto, feita para atender a um convite do Instituto Direito e Inovação, examinei o histórico das sanções multilaterais desde a Liga das Nações até a Carta da ONU, como contribuição útil a respeito do uso de sanções no sistema internacional. Um texto de apoio à conferência, preparado naquela ocasião, “A guerra da Ucrânia e as sanções econômicas multilaterais”, foi divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/77013457/A_guerra_da_Ucrânia_e_as_sanções_econômicas_multilaterais_2022_) e anunciado no blog Diplomatizzando (20/04/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/04/a-guerra-da-ucrania-e-as-sancoes.html). A conferência ficou disponível no canal do Instituto no Instagram (21/04/2022; link: https://www.instagram.com/p/CcoEemiljnq/). 

Em síntese, considero a postura do governo brasileiro em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia não exatamente condizente com as tradições de sua diplomacia profissional com respeito aos grandes princípios do Direito Internacional e do inarredável compromisso com a Carta da ONU, mas como uma expressão política da chefia do Executivo numa tentativa pouco compatível com os valores históricos de nossa política externa, no sentido de manter uma inaceitável neutralidade num cruel conflito que coloca em questão, justamente, todos aqueles princípios que sempre integraram nosso compromisso com o núcleo essencial do respeito ao Direito Internacional. Uma posição que deveria ser revista tão pronto o Brasil possa renovar sua adesão àqueles valores e princípios que sempre integraram o patrimônio doutrinal do Itamaraty.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4152: 11 maio 2022, 16 p.; revisão 13/05/2022

Disponibilizado na versão original na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/78954459/O_Brasil_e_a_guerra_de_agressão_da_Rússia_contra_a_Ucrânia_2022_

e divulgado no blog Diplomatizzando (https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/05/o-brasil-e-guerra-de-agressao-da-russia.html)

Dr. Henry Kissinger Shares His Thoughts on China, Russia, & Ukraine - Krane Shares

 Government Policy

Dr. Henry Kissinger Shares His Thoughts on China, Russia, & Ukraine

KraneShares recently participated in a private discussion with former US Secretary of State Dr. Henry Kissinger at the Metropolitan Club in New York City. We hosted a private lunch briefing with the former Secretary of State in 2019. Given the significant developments over the past four years, we were eager to learn how Kissinger’s views have evolved in 2022. 

Dr. Kissinger was a key influence in shaping U.S. foreign policy with China under President Richard Nixon. He continues to share valuable insight on the relationship between the two countries against an increasingly complex political backdrop. The conference was centered on the recent Russian invasion of Ukraine and the potential political and economic consequences affecting China, Russia, and the U.S. going forward.

The main takeaways from Dr. Kissinger’s remarks include:

  • The dynamics between China, Russia, and the U.S. remain fragile and unpredictable going forward as Russia engages in conflict with Ukraine.
  • China likely did not foresee the invasion when entering into an alliance “without limits” with Russia. Despite refusing to condemn the war, China is expected to avoid entering a contentious position with Europe due to heavy trade with the continent. China will be inclined to depart from its partnership with Russia as a result.
  • China and the U.S. continue to lack the high-level diplomatic communication that is crucial to avoiding conflict and developing a strategic relationship for the future.

Dr. Kissinger stated that Ukraine should seek a return to the status quo, i.e., re-establishing the conditions that held before the war with Russia. He suggested that Ukraine will likely push further and demand to restore its border to include Crimea and the parts of the Donbas region that have been occupied by Russia. This scenario would be seen as a clear defeat for Vladimir Putin, shifting the dynamic of the war from a defense of Ukrainian territory to an encroachment on Russia. This may also risk escalation by Putin, but Dr. Kissinger believes it is unlikely that Russia would resort to the use of nuclear weapons.

Immediately prior to Russia’s invasion of Ukraine, China and Russia agreed to a “no limits” partnership with the stated purpose of countering U.S. influence. Dr. Kissinger believes that, at the time the agreement was announced China was unaware of Russia’s plans to invade. He predicts that China will begin to depart from this alliance due to the potential sanctions from the West. Furthermore, significant trade between China, Europe, and the US prevents the major economic power from siding with Russia. As a result, Russia and China presently do not share the same objectives.

The original concept of the “no limits” alliance was to join the two countries in opposition to what they both see as the U.S. interfering in their domestic affairs. Russia’s invasion of Ukraine has created uncertainty in its alliance with China, leaving room for new negotiations in the near future.

Considering the level of economic coupling between China and the U.S., it is crucial that the two countries resolve their differences and forge a partnership going forward. Communication between China and the U.S. drastically shifted under the Trump administration as Donald Trump established China as an adversary and ignited an economic war. This set the tone for Biden’s presidency which continues to see China in the light Trump cast.

Dr. Kissinger looked back to the origins of contact between China and the U.S. The two powers forged their relationship on the grounds of a common strategic interest: containing the then Soviet Union. This led to cooperation between the countries for many years following the Cold War. Since then, China has rapidly developed, creating a unique situation in which the U.S. faces a country with nearly equivalent strategic capability.

Dr. Kissinger believes it would benefit both countries now to take the basic approach observed during the Nixon administration in which communication with China focuses on common strategic interests without attempting to alter the domestic structure of either nation. Continuing to engage with China in the manner that has been may lead to a long and potentially dangerous conflict. Dr. Kissinger noted that this also brings forth an important decision for China as this conflict would be substantially damaging for the Chinese economy. He believes China is not prepared for this conflict with the U.S. because of its own internal objectives, which include containing COVID and jump-starting domestic consumption. The issue thus resides in the lack of high-level diplomatic communication between China and the U.S. The U.S. must be active in limiting and possibly reducing the confrontational aspect of its relationship with China.

Dr. Kissinger suggested a good principle to keep in mind: when dealing with two adversaries, it is best for them to be greater enemies with each other than they are with you. The U.S. should place itself closer to China than China is with Russia. However, he believes once the conflict in Ukraine is settled politically, the U.S. should not expect the alliance between China and Russia to be dissolved. The more China’s objectives diverge from Russia’s, the more they begin to align with the U.S. The U.S. should seize the opportunity presented by China’s frustration with Russia to encourage China to work more constructively with the U.S. going forward.

Kissinger believes that China has consistently honored the position of mutual respect for sovereignty that is in the written principles of its foreign policy. Russia’s invasion of Ukraine put a wedge in the partnership between Russia and China as it would be against China’s strategic interests and operating principles to support Russia’s invasion. This is evidenced by China’s refusal to condone Russia’s actions. In the wake of their “no limits” alliance, this conflict opens an opportunity for the U.S. to strengthen foreign relations with China going forward. If the two countries can use this opportunity to develop high-level diplomatic communication, we could see an improvement in U.S.-China relations in the future.


Câmara aprova acordo para instalação de escritório da OCDE no Brasil

Câmara aprova acordo para instalação de escritório da OCDE no Brasil

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é formada por 38 países, entre os quais EUA, Alemanha e Japão

Câmara dos Deputados, 29/06/2022

O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (29) o Projeto de Decreto Legislativo 253/21, que valida os termos de acordo para a instalação de um escritório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no Brasil. O texto seguirá para o Senado.

O acordo foi assinado em Paris (França), em 8 de junho de 2017 e, para começar a valer, precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional.

Relator da proposta, o deputado Eduardo Cury (PSDB-SP) afirmou que a OCDE é uma das instituições internacionais mais importantes do mundo e tem em seus quadros parceiros estratégicos do Brasil. O grupo é formado por 38 países, entre os quais Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Austrália, Japão, Turquia, Chile, Canadá e México.

“Embora o Brasil ainda não seja membro da OCDE, a sua relação com o Brasil é de longa data, sendo considerado parceiro-chave”, disse Cury. A estratégia de boa relação do Brasil com o órgão internacional, segundo ele, é uma política de Estado.

Ao justificar a proposta, o governo brasileiro avaliou que o escritório vai promover atividades conjuntas entre o Brasil e a OCDE, funcionando como ponto de contato efetivo entre autoridades brasileiras e o secretariado da organização.

"O estabelecimento do escritório no Brasil será especialmente oportuno, considerando a recente solicitação do País de iniciar o processo de adesão à organização, por carta datada de 29 de maio de 2017”, diz o texto assinado pelo ex-chanceler Ernesto Araújo e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Segundo o texto, o escritório servirá também para apoiar missões e eventos da OCDE no Brasil e para garantir privilégios e imunidades aos agentes da entidade no desempenho de suas funções.

Discussão
PT, Psol e PSB votaram contra a matéria. O deputado Afonso Florence (PT-BA) afirmou que não concorda com determinados pontos do acordo, como a concessão de incentivos fiscais. “São incentivos que existem como regra para países que fazem parte da OCDE, mas nós não somos”, disse.

Já o deputado General Peternelli (União-SP) defendeu a aprovação do acordo. “Esse escritório de representação do País é muito importante, todos sabemos que o escritório tem uma representatividade semelhante a uma embaixada e vai permitir uma inserção do Brasil no cenário internacional”, declarou.

Garantias
O texto do acordo estabelece, entre outros pontos, que a OCDE terá personalidade jurídica e seu escritório gozará de privilégios e imunidades idênticos àqueles garantidos às agências especializadas das Nações Unidas, os quais serão aplicáveis à propriedade da OCDE, seus bens, agentes e especialistas em missão no Brasil.

Deverão ser concedidos privilégios fiscais ao escritório da OCDE no Brasil, como isenção de imposto sobre a compra de veículos importados para o escritório da organização; de taxas de licença de rádio e televisão; e de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o consumo local de bens e serviços por parte do escritório da OCDE, cobrado sobre energia elétrica, telecomunicações e gás.

https://www.camara.leg.br/noticias/892233-camara-aprova-acordo-para-instalacao-de-escritorio-da-ocde-no-brasil

Bolsonaro cria crise com a Bolívia por oferecer asilo a ex-presidente golpista (RFI)

 Ex-presidente da Bolívia recusa proposta de asilo no Brasil feita por Bolsonaro


O governo boliviano afirmou que é ‘absolutamente impertinente’ o plano do presidente brasileiro

POR RFI | Carta Capital, 29.06.2022 07H51

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, enfureceu o governo boliviano ao oferecer asilo à Jeanine Áñez no último domingo 26.

A ex-chefe de Estado foi condenada a dez anos de prisão no início deste mês, por assumir a presidência da Bolívia irregularmente, após a renúncia de Evo Morales em 2019.

Áñez está detida em uma peninteciária feminina em La Paz desde março de 2021. Através das redes sociais, administradas por seus parentes, a ex-presidente boliviana agradeceu a Bolsonaro na terça-feira (28). No Twitter, ela ressaltou que “é inocente” e que “não saiu nem sairá do país”.

A ex-chefe de Estado também voltou a afirmar que “não conheceu Bolsonaro pessoalmente”, embora o presidente brasileiro garanta que se encontrou com ela. “Estive uma vez com ela apenas. Achei uma pessoa bastante simpática, uma mulher, acima de tudo”, declarou.

Esse contraponto tem sido usado pelo governo boliviano para concluir que a renúncia do então presidente Evo Morales, em novembro de 2019, foi um “golpe de Estado” arquitetado com a cumplicidade de agentes externos. Dessa suposta conspiração internacional teriam participado, segundo os aliados de Evo Morales, o Brasil, o Equador, a União Europeia e os Estados Unidos.

“Compartilhamos as preocupações da ONU quanto ao devido processo de Jeanine Áñez”, insistiu, nesta terça-feira (28), o secretário adjunto para o Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, Brian Nichols, em referência aos questionamentos das Nações Unidas sobre a independência da Justiça boliviana.

Bolívia acusa Bolsonaro de intromissão
O governo boliviano afirmou na terça-feira que é “absolutamente impertinente” o plano de Bolsonaro de conceder asilo à Áñez. Legisladores governistas acrescentam que a ideia não cumpre com os requisitos internacionais e reforçam a acusação de que o presidente brasileiro teria sido cúmplice do “golpe de Estado” que levou Áñez ao poder em novembro de 2019.

O ministro das Relações Exteriores da Bolívia, Rogelio Mayta, classificou como “inapropriada ingerência em assuntos internos” a proposta de Bolsonaro. “Lamentamos as desafortunadas declarações do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que são absolutamente impertinentes, constituem uma inapropriada ingerência em assuntos internos, não respeitam as formas de relacionamento entre Estados e não coincidem com as relações de boa vizinhança e de respeito mútuo entre o Brasil e a Bolívia”, definiu o chanceler durante uma coletiva, especialmente convocada para abordar a questão.

No domingo (26), durante uma entrevista ao programa “4 x 4” transmitido pela Internet, Bolsonaro revelou o plano de acolher a ex-presidente boliviana, condenada no último 10 de junho a dez anos de prisão por “não cumprir com deveres e por tomar decisões contrárias à Constituição e às leis”, num processo conhecido como “Golpe de Estado II”

“O Brasil está botando em prática a questão de relações internacionais, de direitos humanos, para ver se traz a Jeanine Áñez e oferece para ela o abrigo aqui no Brasil. É uma injustiça com uma mulher presa na Bolívia”, disse Bolsonaro.”Faremos tudo o que for possível. Está presa injustamente”, concluiu o presidente brasileiro.

“A senhora Áñez está sendo investigada e processada criminalmente no nosso país porque cometeu várias violações de direitos humanos e existem indícios suficientes de também ter cometido delitos de lesa humanidade”, recordou o chanceler boliviano em referência a outro processo, nesse caso o “Golpe de Estado I”, no qual Jeanine Áñez é acusada de sedição terrorismo, levantamento armado e genocídio.

Queixa diplomática
Rogelio Mayta afirmou ainda que o governo da Bolívia iniciará um processo contra o Brasil. “Já trabalhamos nessa queixa. Vamos cumprir com as regras do relacionamento internacional e, nesse caso, o correto é fazermos uma reclamação diplomática”, apontou o ministro.

Pelo lado dos legisladores governistas, o presidente da Câmara de Deputados, Freddy Mamani, interpretou que “a proposta de Bolsonaro confirma a sua cumplicidade no golpe de Estado de 2019”. “Estamos vendo, aos poucos, como todo o plano de um golpe de Estado fica visível.  Sabíamos que esse golpe não era só interno, mas também externo”, acusou Mamani.

O senador Luis Adolfo Flores também classificou a proposta de Bolsonaro como uma “aberta ingerência nas decisões de órgão independentes da Bolívia”. Segundo ele, o presidente brasileiro fere as regras internacionais para a concessão de asilo. “Um solicitante de asilo é aquele que ainda não foi processado”, destacou Flores.

Presidentes da região foram sondados
Para o seu plano de conceder asilo à ex-presidente Áñez, Bolsonaro esclareceu que depende “se o governo boliviano estiver de acordo” e que já conversou sobre o assunto, no começo do mês durante a Cúpula das Américas, com alguns líderes da América Latina, citando o presidente argentino, Alberto Fernández, um aliado do atual governo da Bolívia.

Bolsonaro também afirmou que Lula é “hipócrita” por não condenar a sentença contra Jeanine Áñez, indicando que a preocupação com os direitos humanos tem viés ideológico. “O ex-presidente [Evo Morales] e o atual [Luis Arce] são amigos do Lula e ele não diz absolutamente nada sobre esse caso”, frisou Bolsonaro.

A chegada de Jeanine Áñez ao poder
A então senadora Jeanine Áñez assumiu a presidência da Bolívia em 12 de novembro de 2019, depois da renúncia de Evo Morales, acusado de fraude durante as eleições daquele mês, em uma época em que o país vivia uma convulsão social.

Ao deixar o cargo, Evo Morales não denunciou um “golpe” e toda a linha sucessória – vice-presidente, presidente do Senado e presidente da Câmara de Deputados -, pertencente a seu partido, também renunciou. Jeanine Áñez era a seguinte dessa linha e a sua posse foi validada pelo Supremo Tribunal. O Brasil reconheceu sua legitimidade

Como presidente interina, Jeanine Áñez ficou um ano no poder até que Luis Arce, candidato de Evo Morales, ganhou as eleições. Em março de 2021, a ex-senadora foi presa preventivamente até ser condenada em 10 de junho passado.

Também foram condenados os ex-comandantes das Forças Armadas e da polícia que estão foragidos. “Se estiverem no Brasil, não vão sair daqui”, avisou Bolsonaro, estendendo a oferta de asilo.

https://www.cartacapital.com.br/mundo/ex-presidente-da-bolivia-recusa-proposta-de-asilo-no-brasil-feita-por-bolsonaro/

O futuro do grupo BRICS - ensaio por Paulo Roberto de Almeida

O futuro do grupo BRICS 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para subsidiar participação em evento sobre o BRICS; 30/06/2022; 17hs.

 

 

A primeira questão que vem à baila, quando se participa de um webinar que tem por título “O futuro do grupo BRICS”, depois do início da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, é justamente a de saber se o grupo, do qual a Rússia é um dos membros mais relevantes, tem algum futuro, a partir de uma guerra de agressão absolutamente cruel e desumana em seu portfólio internacional. Trata-se, obviamente, não só de uma violação flagrante da Carta da ONU e todos os princípios conhecidos do Direito Internacional, mas também da prática deslavada e aberta de crimes de guerra, talvez similares aos que levaram líderes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg, em 1946.

Apresso-me, contudo, em dizer que não existe, aparentemente, nenhum risco para a sobrevivência e a existência continuada desse grupo, mesmo com a continuidade dessa guerra inaceitável sob todos os critérios do direito e da diplomacia. Acredito que ele tem, sim, futuro, ainda que este seja patético e agora manchado por crimes que atingem diretamente seus pressupostos de atuação. Tenho duas razões para admitir a continuidade momentânea – não sei se futura – desse grupo que desafia as regras gerais de constituição de grupos: uma é de ordem burocrática, a outra de caráter político, embora desafiadora das concepções subjacentes a tal conceito de política. 

A história nos ensina que uma vez criada um novo órgão de consulta e coordenação entre Estados, dificilmente ele será extinto, mesmo sobrevivendo como dinossauro escapado de um grande desastre: interesses burocráticos, suposta credibilidade de seus membros, letargia dos programas iniciados na origem, novas iniciativas que justificam diárias e passagens dos funcionários engajados no exercício, desejo de continuar aparecendo na mídia, tudo se combina para manter respirando algum organismo que já se desviou de suas funções originais. Pela declaração emitida em junho de 2022, por ocasião da 14ª reunião de cúpula, organizada pela China, pode-se constatar que existem amplas evidências de que o grupo cresceu demasiado, já virou uma grande organização, e por isso mesmo ela precisa continuar se alimentando dela mesma. Pela burocracia já criada em torno dele, concluo, portanto, que o BRICS vai sim continuar.

Politicamente, o BRICS tampouco parece perto do seu esgotamento diplomático, a julgar pela declaração ministerial liberada pelos chanceleres do BRICS, em maio último, preparatória ao encontro de cúpula, no dia 28 de junho sob comando chinês. E o que, exatamente, disseram os chanceleres do BRICS nessa declaração, que parece situar-se num universo paralelo ao dos simples mortais, que somos todos nós? Leio isto, logo no terceiro parágrafo da declaração (ênfases agregadas, por necessárias): 

3. Os Ministros reiteraram seu compromisso com o multilateralismo por meio da defesa do direito internacional, inclusive os propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas como sua pedra angular indispensável, e com o papel central das Nações Unidas em um sistema internacional no qual Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança, promover o desenvolvimento sustentável, garantir a promoção e proteção da democracia, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos e promover a cooperação baseada no espírito de respeito mútuo, justiça e igualdade

 

Esse parágrafo 3º da declaração ministerial é praticamente idêntico ao parágrafo 5º. da declaração de cúpula, como se pode constatar logo a seguir (ênfases idem): 

5. We reiterate our commitment to multilateralism through upholding international law, including the purposes and principles enshrined in the Charter of the United Nations as its indispensable cornerstone, and to the central role of the United Nations in an international system in which sovereign states cooperate to maintain peace and security, advance sustainable development, ensure the promotion and protection of democracy, human rights and fundamental freedoms for all, and promoting cooperation based on the spirit of mutual respect, justice and equality.

 

Qualquer pessoa que acompanhe o noticiário internacional, desde o dia 24 de fevereiro, ou até mesmo antes, a partir da acumulação de tropas russas e reiteradas ameaças feitas pelo presidente russo ao governo da Ucrânia, pode ficar estupefata ao ler que os ministros do BRICS reiteram seu compromisso com a Carta das Nações Unidas, que eles apoiam um sistema no qual os Estados cooperação com a paz e a segurança e, para maior estupor, a promoção e a proteção da democracia, dos direitos humanos, etc., etc., etc. 

Pode-se perguntar onde estiveram os ministros desde o dia 24 de fevereiro, e como podem os líderes do grupo conseguir ignorar tudo o que ocorreu, na vida real, a partir dali, em TOTAL CONTRADIÇÃO com o que está descrito nesses dois parágrafos, não só fantasiosos, como também falsos e mentirosos. Esta é, para mim, uma prova cabal de que o grupo BRICS não só pode sobreviver, como poderá ter, com certeza, um futuro promissor diante de si, ainda que seja difícil imaginar que tipo de futuro seja esse, não só em função da continuidade de uma guerra devastadora, e criminosa, como também da credibilidade que possa ter o grupo ao continuar sustentando um de seus membros, cujo presidente poderá – e deveria – ser processado e incriminado pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra, certamente por crime contra a paz e possivelmente por crimes contra a humanidade. Que sinalização ao mundo pretendem dar os seus líderes com tal tipo de declaração?

Acredito que se trata de uma situação constrangedora, pelo menos para três dos países membros do Brics que são, supostamente, democracias consolidadas, com alternância de partidos no governo, por meio de eleições livres e transparentes, e não regimes autocráticos como são, de fato, dois dos seus mais poderosos membros. Como continuar defendendo a Carta da ONU, a não intervenção nos assuntos internos de outros países, o não recurso à guerra – sobretudo não provocada –, a solução de controvérsias por meios pacíficos, enfim, o respeito à vida e o patrimônio de nações soberanas? Os quatro outros membros, que não diretamente responsáveis por esses crimes e violações flagrantes do Direito Internacional, pretendem continuar apoiando, ou vão insistir em se eximir, de fugir à realidade, em face das provas irrefutáveis que estão todos os dias no noticiário internacional? Eles por acaso não se dão conta de que essa realidade, transparente na mídia mundial soa como um desmentido cruel, até patético, em face do que está escrito naquela declaração? Como podem ser cegos, surdos e mudos no confronto com fatos cristalinos que desmentem cada uma dessas palavras?

Existe uma terceira razão, de ordem prática, ou operacional, que promete manter o grupo BRICS ao nível da água no futuro imediato, embora ameaçando submergir, caso a situação da guerra se torne incontornável na agenda internacional. Ela se explica pela necessidade ressentida pela Rússia, talvez pela própria China, de encontrar nos demais membros do grupo BRICS um pequeno sustentáculo do teatro de absurdos grotescos que se desenvolve no território ucraniano desde o dia 24 de fevereiro de 2022, e talvez desde antes, não apenas nas semanas imediatamente antecedentes – com a farsa, diversas vezes, repetida, de que não se pretendia atacar a Ucrânia – ou mesmo desde antes, mas sobretudo em 2014, quando a Rússia atacou covardemente os territórios da Ucrânia oriental e invadiu, sequestrou, amputou a península da Crimeia da soberania do seu vizinho, a pretexto de proteger nacionais que estariam sendo objeto de nada menos do que genocídio. Nada disso figura nos textos das duas declarações, a ministerial e a da cúpula, mas até quando se poderá manter a fantasia?

A Rússia precisa, desesperadamente, de algum apoio desses membros de um grupo que ela mesma criou, com a imediata solicitude do Brasil, na primeira década deste século. Salvo estes seus “colegas” de grupo, e mais algumas patéticas ditaduras em alguns poucos pontos do planeta, a Rússia conta, se tanto, com a indiferença benigna, ou malévola (segundo os casos), de uma parte dos demais países da comunidade internacional. Talvez a China – que hipotecou solidariedade prática para com a Rússia, sob a forma de uma “aliança sem limites”, pouco antes da invasão e da terrível guerra de agressão, conduzida por um vizinho que já lhe amputou territórios no passado – também necessite dessa “solidariedade cúmplice” de outros membros do grupo BRICS, pois que imagina, eventualmente, que possa ter de empreender aventura similar em outras paragens.

Esta terceira razão talvez até sobrepuje as duas primeiras, a burocrática e a política-diplomática, pois se trata de um oportunismo dos mais vis, baseado num cálculo político dos mais sórdidos, o de que a assim chamada “operação especial” responde a uma necessidade legítima de segurança. A justificativa se deve à existência, no mundo, um hegemon com pretensões à supremacia estratégica absoluta, que atua de forma arrogantemente unilateral, e que pretende submeter todos os demais países a seus interesses nacionais, à sua visão do mundo, aos seus valores e princípios: democracia, direitos humanos, liberdades. Tais elementos, inerentes às economias de mercado, não devem combinar com outros princípios e valores que sustentam Estados, certamente soberanos, mas que pretendem preservar regimes políticos organizados em torno de outros princípios, uma organização econômica mais bem determinada pelo Estado do que pelos mercados e uma definição própria do que sejam as “formas de expressão” aceitáveis para seus dirigentes. Vários dos elementos constitutivos de seus regimes políticos podem, eventualmente, não estar de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquela peça de papel de adesão voluntária, aprovada em 1948, depois que o mundo conseguiu dar cabo de ditaduras hediondas, responsáveis por milhões de mortos inocentes, por um genocídio jamais visto na história da humanidade e por uma destruição material nunca antes enfrentada pelas sociedades contemporâneas.

Mas, vejam, não se trata exatamente de um conflito ideológico, entre totalitarismos e democracias, como visto durante a Segunda Guerra Mundial, pois não parece mais haver uma disputa por modelos alternativos, opostos, de desenvolvimento econômico e político. O que se trata neste caso é o de uma percepção de ameaça à segurança, em vista da existência de uma aliança militar que foi criada justamente quando havia essa tremenda diferença entre duas visões opostas do mundo, coisas que parecem ter ficado para trás, embora talvez não tão atrás como pensávamos. Essa percepção, em legítima, de uma ameaça potencial à segurança de um Estado membro da ONU deveria ter, segundo o que reza a própria Carta da ONU, levada à consideração dos membros da ONU, eventualmente ao conhecimento do seu Conselho de Segurança, para deliberação e possível ação. É assim que deveriam proceder, de boa fé, os membros da ONU, segundo o que está disposto nos principais artigos da Carta. Não foi isso, infelizmente, o que ocorreu. Registre-se que a ação da Rússia sequer obedeceu antigas leis e costumes da guerra, que a despeito de serem proibidas formalmente, logo nos primeiros artigos da Carta, podem ser autorizadas em razão de ameaça credível ou de ataque iminente, o que não desobriga o Estado de levar isso ao conhecimento do órgão que cuida da paz e da segurança internacionais, do qual, aliás, o Estado agressor é, pasmem, membro permanente, ainda dotado do poder de veto sobre quaisquer de suas resoluções.

 

Volto à pergunta: poderia existir algum futuro para o grupo BRICS, em face dessa terrível realidade?

Acredito que sim, e por isso prognostiquei um futuro para o grupo BRICS, ainda que, realmente, eu não consiga definir que tipo de futuro será esse, com a continuidade da guerra e a permanência das violações à Carta da ONU, já apontadas pela Corte Internacional de Justiça, em resolução que ordenou a cessação imediata da agressão. O problema aqui é que a CIJ não tem dentes, ou seja, não pode tornar realidade qualquer uma de suas decisões a menos de uma tomada de posição concordante do Conselho de Segurança, um órgão notoriamente paralisado pelo absurdo poder de veto concedido a cinco de seus membros permanentes, inclusive quando um deles é o violador incontestável das obrigações contidas na Carta da ONU (e não deveria, portanto, participar do processo decisório).

À vista da declaração dos chanceleres de 19 de maio e, a partir da nova declaração de cúpula dos líderes dos Brics adotada em seu 14º encontro, pode-se afirmar, sim, que o grupo BRICS tem a sua continuidade assegurada. Mas eu me pergunto como o mundo, ou pelo menos os países ocidentais defensores dos princípios consagrados naquela Carta, olharão o grupo BRICS a partir de agora. Não pretendo sequer desculpar o Brasil, que aparentemente ficou do lado do Direito, ao ratificar as resoluções da ONU condenando a Rússia pela invasão, mas que, ao cabo de uma leitura mais cuidadosa das suas declarações de votos, mostrou-se, como provavelmente queria o presidente, objetivamente leniente para com o agressor e subjetivamente solidário com o Estado perpetrador das violações à Carta da ONU e ao direito internacional, por razões até aqui muito mal explicadas. Aparentemente, o que motivou o chefe de Estado brasileiro a adotar essa atitude de leniência, e até de conivência, para com o agressor foram algumas toneladas de fertilizantes. Isso seria tudo?

Mas nem vou considerar aqui as muitas declarações confusas ou ambíguas do próprio presidente, pois o que ele mesmo diz não conta, absolutamente, para efeitos diplomáticos. O que ele disse ou diz, no cercadinho do Alvorada, ou até em encontros internacionais, não tem a mesma validade que declarações formais no âmbito da ONU e seus órgãos acessórios, que expressam, verdadeiramente, a posição do país no plano internacional. Deixemos, portanto, de lado esse personagem patético que nos representa e que nos envergonha aos olhos do mundo inteiro, para maior desgosto da nossa diplomacia profissional.

Retirando toda a roupagem textual, feito no diplomatês habitual, pelos delegados brasileiros nesses órgãos – CSNU, Assembleia Geral e Conselho de Direitos Humanos –, o que se extrai é o seguinte: o Brasil quer a “cessação de hostilidades”, como se elas fossem conduzidas reciprocamente, e não unilateralmente, por parte de uma grande nação bélica contra um vizinho menos poderoso; o Brasil quer a negociação para uma solução pacífica das controvérsias, levando em consideração “as preocupações de segurança das partes”, como se a Ucrânia representasse qualquer tipo de ameaça à segurança do agressor; o Brasil se opõe à imposição de sanções unilaterais, ou seja, não aprovadas pelo CSNU, como se este pudesse hipoteticamente aprovar o que quer que seja, sem que a Rússia exercesse o seu direito de veto e como se um agressor devesse sair impune dos crimes cometidos, ou como se ele pudesse ser contido apenas por palavras de boa vontade; finalmente, o Brasil também se opõe à entrega de armas à Ucrânia, como a dizer ao governo e ao povo ucraniano o seguinte: “desistam, não tentem resistir, pois vocês lutam contra um Estado mais poderoso, renunciem à resistência e entreguem-se à vontade do agressor”. 

 

Mas, voltando agora ao tema do futuro do grupo BRICS, é preciso, antes de qualquer prognóstico, voltar ao seu passado: como e por que ele apareceu no cenário dos muitos grupos já existentes no anárquico sistema de relações internacionais interestatais. Ele foi concebido, inicialmente, como todos sabem, por um economista de banco de investimentos pensando unicamente num portfólio capaz de trazer retornos generosos, em vista das perspectivas otimistas que então se desenhavam, naqueles idos, início do século, em termos de crescimento para os quatro primeiros – e mais legítimos – membros do acrônimo. Mas, o que era tão somente um exercício de projeção econômica, visando ganhos privados, encantou diplomatas relativamente descontentes com a ordem mundial prevalecente – a do G7, da OCDE, OMC, Bretton Woods e o que gira em volta – e motivou-os a transpor uma sigla dotada de irresistível apelo de mercado para o universo da diplomacia. O novo grupo deveria supostamente se ocupar daquela dimensão examinada no estudo original dedicado ao BRIC: crescimento econômico, participação no comércio internacional, inovação tecnológica e promoção do desenvolvimento econômico e social de seus respectivos povos. 

A agregação dos quatro países, quatro economias ditas emergentes e dinâmicas, pelo menos naquele momento, pode ter motivado o entusiasmo dos proponentes iniciais de um novo grupo, provavelmente já pensando, desde aquele primeiro momento, em rivalizar com o G7, ainda que a Rússia fizesse formalmente parte desse grupo exclusivo de grandes potências, que se converteu em G8, mas unicamente para assuntos políticos, uma vez que o velho G7 continuasse a se unir para tratar dos assuntos econômico-financeiros. Brasil e Rússia, desde 2006, tiveram a ideia do barco, no qual logo embarcariam dois gigantes demográficos, e como tal foi lançado ao “mar” em Ecaterimburgo, em 2009. A China logo tratou de complementar o grupo com um representante africano, uma vez que mantinha, desde vários anos, um portentoso programa de investimentos naquele continente. O que não ficou claro, até o presente momento, foi a elaboração de estudos técnicos e diplomáticos, feitos pelas respectivas chancelarias, sobre a rationale que presidiu à transformação de um simples acrônimo intangível – ou apenas materializado como carteira de investimentos para os portfólios de grandes fundos institucionais – em um bloco econômico-diplomático. Não se conhecem policy papers sustentando a ideia de um grupo estruturado a partir de três economias euroasiáticas e uma outra da América do Sul. Se existem, eles permanecem não disponíveis, desde que Sergei Lavrov e Celso Amorim se decidiram a esse respeito. 

Do ponto de vista dos interesses nacionais brasileiros, a rationale para a criação do então grupo BRIC, como grupo formal, deveria estar embasada numa definição clara de uma estratégia diplomática apontando sua funcionalidade sob a perspectiva desses interesses, que sempre deve ser o desenvolvimento econômico e social da nação, que é o único critério e o objetivo realmente meritório para tal iniciativa. Naquela conjuntura foram estabelecidos os objetivos nacionais brasileiros que deveriam ser alcançados por meio ou através do grupo? Foram alinhadas, finalmente, as diretrizes de políticas a serem seguidas, levando em conta nossa capacidade de articulação na própria região – que é, finalmente, onde o Brasil possui certo poder de atração e de iniciativa –, assim como no âmbito global, onde nossa influência é bem menos determinante? Mais importante do que isso, talvez seja a própria Grande Estratégia brasileira — se alguma vez isso existiu — para a projeção global do país e de sua diplomacia. Em outros termos: por aqueles três países como parceiros, e não outros? O que havia de estratégico, de exclusivo e de determinante nessa particular geografia política? Seria o fascínio criado em torno de um tal de Sul Global, mais referido, sobretudo no plano acadêmico, do que exatamente definido geograficamente, ou geopoliticamente? 

Pode-se duvidar da funcionalidade desse unicórnio do Sul Global para a consecução dos grandes objetivos diplomáticos do Brasil, mesmo incluindo no pacote das miopias atraentes a sempre mencionada cadeira permanente no Conselho de Segurança, na hipótese de uma reforma da Carta e de uma ampliação do seu órgão decisório por excelência. Qual o significado e a importância real, para o Brasil, de se unir especificamente a esses três parceiros, e não a outros, como também poderia ser o caso, talvez até com maior substância de propósitos e uniformidade de características sociopolíticas, por exemplo, do G4, constituído justamente para fins de reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança. O G4 constituído para tal finalidade, tinha a participação da Alemanha, do Japão e da Índia, ou seja, um grupo formado por quatro grandes democracias. O G4 “onusiano” não poderia, igualmente, ser a base de um grupo socioeconômico voltado para a causa da melhoria do sistema multilateral, com o objetivo básico do desenvolvimento econômico e social dos países mais pobres, em lugar de parecer uma alternativa ao G7, como parece ser o Brics? Tais países democráticos, assim como outros europeus e os próprios Estados Unidos, representariam algum obstáculo ao desenvolvimento econômico e social do Brasil, assim como a outras iniciativas de sua diplomacia tendentes aos mesmos objetivos em âmbito regional e para o conjunto dos países em desenvolvimento?

Todas essas questões colocadas acima poderiam ter animado um rico debate entre os diplomatas profissionais, constituiriam um grande tema para alguma área de policy planning de sua chancelaria, e deveriam, supostamente, estar no centro de um processo decisório seriamente estruturado em nível do governo como um todo, em lugar de resultar unicamente da decisão de dois chanceleres servindo a dois líderes desejosos de se contrapor ao G7.

 

Em última instância, o que está em causa, não apenas na questão do BRICS, não é, exatamente, a constituição de mais um grupo político-diplomático, mas a validade e a funcionalidade, para fins de desenvolvimento econômico e social, de concepções diferentes, até alternativas, sobre como deve ser organizado o sistema econômico mundial, atualmente realmente interdependente, até onde se pode ver, depois da implosão do socialismo de tipo soviético (aliás, precedido, no caso da China, por uma longa marcha em direção à economia de mercado, mas com “características chinesas”, ou seja, preservado o monopólio político do partido comunista). Para sintetizar a essência dessas concepções diferentes, eu chamaria uma delas de “ordem de Bretton Woods” e a outra de “ordem estatal-intervencionista”. 

A ordem de Bretton Woods trouxe prosperidade e bem-estar ao mundo, preservando democracia, liberdades e direitos humanos. A ordem alternativa, a do socialismo, ou seja, a das economias dirigidas centralmente, falhou miseravelmente, nunca criou prosperidade, ao contrário: apenas miséria, baseada na opressão e na violação dos direitos humanos. Isso é evidente e inquestionável, aferido em dados empíricos. Tanto é que os chineses, com “apenas” 30 anos de comunismo (até a emergência de Deng Xiaoping, após o falecimento de Mao) e que nunca tiveram a destruição de toda a base moral da sociedade, como conheceram os soviéticos, em seus 70 anos de comunismo, conseguiram retificar a sua trajetória econômico, justamente porque tinham líderes, como Deng, que conheceram o funcionamento capitalismo ocidental – ainda que desconhecendo os valores democráticos do Ocidente –, e enveredaram decisivamente pelo capitalismo com características chinesas, mas sempre preservando o monopólio do partido leninista, que nada mais é do que o mandarinato imperial tradicional, mas agora encarnado pelos quadros do PCC, também selecionados pelo mérito (como nos 800 anos de concursos imperiais).

No caso do Brasil, as principais diretrizes da ordem econômica sempre se guiaram mais pelo intervencionismo estatal do que pelo liberalismo de mercado, daí a razão de termos até experimentado uma espécie de “stalinismo industrial” durante os anos ascendentes do regime militar. Depois de alguns poucos anos de “neoliberalismo” – como reza a versão acadêmico-gramsciana dos partidários do social-estatismo –, voltamos decisivamente a uma alternativa ao capitalismo democrático de Bretton Woods, com mais estatismo, controle partidário das principais diretrizes no campo das políticas econômicas e, sobretudo, no âmbito da política externa. Foi o que tivemos nos anos gloriosos do lulopetismo econômico e diplomático. Resultou na maior crise recessiva de nossa história econômica e na exacerbação da corrupção política, como nunca vista em nossa trajetória republicana. De certa forma, a ordem alternativa do antiglobalismo bolsolavista – inspirada no nacionalismo tacanho de grupos da extrema direita americana – representa quase a mesma coisa com sinal inverso.

As evidências disponíveis nas últimas décadas confirmam amplamente que mercados globalizados, interdependência econômica, cooperação entre os países, liberdade de fluxos de investimentos e de capitais, movimentação de pessoas, de cérebros, tudo isso é muito melhor do que as alternativas do nacionalismo e do estatismo, como a própria experiência da China o demonstra, ainda que a globalização tenha seus custos temporários e setoriais. A ordem depreciativamente chamada de neoliberal, pelos opositores de direita e de esquerda, é nitidamente superior à sua contraparte mercantilista, do protecionismo nacionalista tacanho, como prometem certos “alternativos” ao mundo de Bretton Woods. O BRICS vem sendo levado, pela ação de duas grandes potências autocráticas, a uma alternativa anti-Bretton Woods, ou anti-OCDE, o que provavelmente não seria o mais adequado para o Brasil. Não sei se o grupo BRICS tem algum futuro se embarcar nessa canoa furada.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4189: 30 junho 2022, 10 p.


quarta-feira, 29 de junho de 2022

O Futuro do Grupo BRICS: webinar do IRICE, nesta quinta-feira, 30/06/2022, 17hs

O Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior-IRICE

e a Revista Interesse Nacional convidam para encontro sobre política externa, dia 30 de junho às 17 hs,  com foco no tema central:


 O Futuro do Grupo BRICS

 

Expositores

Embaixador Sarquis José Buainain Sarquis

Secretário de Comércio Exterior e Assuntos Econômicos , Itamaraty


Marcos Prado Troyjo, Presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB)


Paulo Roberto de Almeida,  Diplomata e professor; Diretor de Publicações do Instituto Histórico e Geográfico do DF


Moderador:  Rubens Barbosa,  Presidente do IRICE e Editor da Revista Interesse Nacional  

30 de junho às 17 hs

Transmssão pelo canal youtube:   https://www.youtube.com/watch?v=9Q9l8i4gyX4


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...