Sempre pensamos que os caminhos que foram tomados pelos nossos "estadistas" (vá lá o título) foram os únicos, ou os mais racionais possíveis, em circunstâncias difíceis de decisão, quando as escolhas alternativas apresentariam, se supõe, custos maiores, para os decisores ou para a sociedade. Nem sempre é assim, no entanto, pois muitas decisões são tomadas de maneira totalmente improvisada, sob pressão dos acontecimentos, quando não de maneira deliberadamente distorcida, para produzir resultados outros do que aqueles anunciados publicamente (como estou certo que ocorreu sob os companheiros, que tomaram determinadas decisões para roubar, para extorquir, para fraudar a sociedade, como revelado pelas investigações policiais e judiciais).
Em todo caso, aqui vai um antigo exercício de "história virtual", aplicada ao Brasil.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de agosto de 2017
História virtual do Brasil: um exercício
intelectual (2007)
Paulo
Roberto de Almeida
Primeira Parte
Questões metodológicas relativas à história virtual
Parece trivial, e sem maiores conseqüências práticas,
fazer conjecturas em direção do
passado, já que a linha contínua do tempo não nos permite operar qualquer
mudança no curso efetivo da história,
com a ajuda de alguma máquina do tempo imaginária. Especular é contudo possível
em direção do passado, sendo em todo caso menos perigoso do que fazê-lo no
presente e ainda menos arriscado do que “contra” o futuro. Um famoso
historiador europeu, Johan Huizinga, chegou mesmo a afirmar que o historiador
deveria se colocar de um ponto de vista que o permitisse considerar fatos
conhecidos como podendo conduzir a resultados diferentes: e se os persas
tivessem vencido em Salamina?; e se Napoleão tivesse fracassado em seu 18
Brumário?
Assim, é possível selecionar alguns dos turning points da história para realizar
exercícios controlados de imaginação, que não são todavia completamente
arbitrários ou puramente aleatórios. Uma das boas regras da história virtual,
já explorada por historiadores fecundos como Niall Ferguson, é a de que o novo
curso estabelecido deve ser “plausível” ou “possível”, isto é, seus
desenvolvimentos poderiam estar inscritos na lógica histórica do momento
imediatamente antecedente. De fato, o próprio Ferguson responde à questão de saber
quem se importa com desenvolvimentos que nunca
ocorreram. Diz ele que, nós mesmos, na vida cotidiana, estamos sempre nos
colocando questões “contrafactuais”: por que eu não obedeci aos limites de
velocidade?; por que ter aceito aquele último copo?; quanto eu teria ganho se
tivesse apostado naquele número? [1]
Nos imaginamos, assim, acertando no milhar, escolhendo
uma outra profissão ou simplesmente evitando alguns erros cometidos no passado.
Um outro famoso historiador, Thomas Carlyle, via a história como um eterno caos, que o historiador deveria
avaliar cientificamente. As conseqüências alternativas poderiam, para ele,
levar a resultados totalmente aleatórios, ou divergentes do curso real da
história, um pouco como na atual alegoria do bater de asas da borboleta
sugerido pela teoria do caos. Seria mesmo assim?
O argumento a
favor da história virtual consiste em seu poder de despertar uma certa
curiosidade pela própria trama da história
real, ao sugerir desenvolvimentos diversos do que aqueles que efetivamente
ocorreram e que, segundo o curso sugerido, poderiam ter provocado outras
conseqüências, algumas até decisivas do ponto de vista do curso ulterior. Mas a história virtual não é o reino do arbítrio, e
sim uma construção cuidadosa sobre as vias alternativas da vida humana,
explorando fatores contingentes do processo histórico, onde os homens podem,
sim, fazer uma grande diferença, ao contrário da aparente rigidez do
determinismo histórico. Desse ponto de vista, a história virtual possui
virtudes eminentemente didáticas, pois que ela permite isolar o que é único, especial ou peculiar num
determinado evento ou processo histórico, ao imaginar que esse fator ou essa
ação particular poderiam ter deslanchado um curso totalmente inesperado (do
ponto de vista do que efetivamente se passou), mas que estaria inteiramente
inserido na lógica e na trama do curso precedente.
Aos que recusam a utilidade
da história virtual pode-se observar que ela está de certa forma contemplada
numa vertente mais séria, e quantitativamente embasada, da disciplina,
identificada, por exemplo, com a chamada “cliometria”, na qual argumentos
contrafactuais são mobilizados para determinar o peso de determinados fatores
ou processos históricos. Um dos mais conhecidos utilizadores desse tipo de exercício
é, obviamente, o prêmio Nobel americano Robert William Fogel que, numa obra
famosa (Railroads and American Economic
Growth: Essays in Econometric History, 1964), tenta isolar o papel das
ferrovias no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. [2]
Assim, o que teria acontecido com o Brasil – que talvez
não fosse nem “Brasil” – se a linha divisória de Tordesilhas, por desatenção
dos portugueses ou resistência dos negociadores espanhóis, tivesse ficado lá
mesmo onde a tinha colocado a bula do papa Alexandre VI, no meio do oceano?
Teriam as Américas permanecido uniformemente espanholas, contentando-se os
portugueses com seus domínios apenas africanos? O mais provável é que incursões
de conquistadores concorrentes – franceses, holandeses, ingleses, entre outros
– tivessem “esquartejado” bem mais cedo o hemisfério ocidental entre reinos e
impérios mercantis europeus.
Muitos outros eventos ou processos podem ser sugeridos
nessa linha da “história alternativa”. Cursos diferentes para episódios
conhecidos devem, contudo, guardar conexão com o desenvolvimento possível ou
com o curso efetivo de cada um deles. É o que se poderia chamar de plausibilidade histórica, o que
significa que o curso sugerido não pode ser nem “anacrônico”, nem totalmente
arbitrário, no sentido em que a alternativa selecionada poderia ter sido
efetivamente “oferecida” aos, ou considerada pelos homens que tomaram tal ou
tal decisão em momentos por vezes dramáticos para seus países ou para si
mesmos.
A idéia da contingência na história, uma das bases da
história factual, milita, assim, contra o determinismo histórico, muitas vezes
exemplificado pela famosa frase de Marx na abertura do seu 18 Brumário de Luís Napoleão, segundo a qual os homens fazem sua
própria história, mas o fazem em condições determinadas por forças que estão
fora do controle desses mesmos homens.
Resumindo, idéias virtuais
também podem constituir uma “boa” matéria prima para a história real, desde que ela se faça em condições
aceitáveis de causalidade e de encadeamento das ações humanas. Afinal, o
Rubicão, Waterloo, a batalha da Inglaterra, Stalingrado, poderiam, sim, ter
conhecido outros desfechos e ter apresentado outras conseqüências. A relação
(sempre ambígua) entre a liberdade e
a necessidade nunca está determinada
previamente e é isso, justamente, que constitui um dos fascínios da história.
Segunda Parte
Momentos decisivos da
história do Brasil
Os eventos selecionados abaixo, construídos sem outro
cuidado de pesquisa histórica que não o desfilar de datas ao fio da memória,
constituem exemplos relevantes dos principais “tijolos construtores” de uma
história virtual do Brasil. São eles, em todo caso, que oferecem oportunidades
significativa de “distorção” do processo histórico, tal como ele efetivamente
ocorreu, em direção de outras possibilidades e alternativas de desenvolvimento
do itinerário conhecido, que poderiam ser considerados como possíveis ou
plausíveis. Vários outros elementos – e não apenas eventos singulares –
poderiam ser considerados como passíveis de “inflexão criativa” no registro dos
fatos, tais como processos de mais longa duração, que de toda forma se prestam
aos critérios de “opções factíveis” ou de fatores contingentes, em função dos
quais o desenrolar do processo, no caso do Brasil, poderia ter assumido
contornos absolutamente inéditos em relação aos dados registrados nos anais e
crônicas da história oficial.
1494: Tordesilhas
(do contrário o Brasil não teria sido português)
1500: Descoberta
(mas o Brasil não era ainda Brasil)
1640-1654:
Expulsão dos holandeses do Nordeste
1750: Tratado de
Madri (e seus sucedâneos, El Pardo e Santo Ildefonso)
1759: Expulsão do
jesuitas do Brasil por decreto de Pombal
1763:
Transferência da sede do Vice-Reino para o Rio de Janeiro
1792-98: Derrota
da inconfidência e decreto de proibição de teares
1808: Abertura dos
portos: fim do exclusivo colonial
1810: Tratado de
1810 de Portugal com a Inglaterra: rigidez tarifária
1817: Revolução
Pernambucana: primeiro desafio à unidade nacional
1822:
Independência (sem abolição da escravatura)
1828: Perda da
Cisplatina e nova composição no Prata
1831: Abdicação de
D. Pedro I e experiência “republicana” das Regências
1935-45:
Farroupilha no Sul: segundo desafio à unidade nacional
1842: Esmagamento
da revolução liberal: consolidação conservadora
1844: Nova tarifa
e início do experimento protecionista comercial
1850: Lei de
Terras inviabiliza a divisão da grande propriedade rural
1854: Início das
ferrovias no Brasil: começo da modernização
1865: O Império se
descobre frágil com o ataque de Solano Lopez (Tríplice Aliança)
1888: Abolição da
escravidão (sem incorporação dos escravos à economia e à sociedade)
1889: Adoção do
regime republicano (federalismo na prática, até exagerado)
1891: Constituição
republicana (consolida autonomia dos estados, revertida em 1937)
1898: Funding loan e primeira experiência de
ajuste fiscal: limites da dívida externa
1902-1912:
Configuração das fronteiras nacionais: obra de Rio Branco
1910: Derrota de
Rui Barbosa: sistema político de oligarquias-positivistas-militaristas
1922: Início do
ciclo tenentista de reforma política brasileira
1930: Revolução
“liberal”: fim do regime puramente oligárquico
1931: Suspensão da
conversibilidade e início dos controles de capitais (até hoje)
1934: Constituinte
corporativa e atração do fascismo
1937: Golpe
autoritário: nova centralização e construção do Estado moderno
1938: Derrota do
integralismo-fascismo na conquista do Estado
1941: Escolha
certa no momento da ofensiva militar nazi-fascista: com os EUA
1944: Brasil vai à
guerra e participa de Bretton Woods
1947: TIAR e
doutrina da Guerra Fria: adesão à esfera de influência americana
1947-48:
Conferência de Havana: sistema multilateral de comércio
1952: Acordo
militar com os EUA: só seria terminado em 1977
1955: Primeiras
experiências de liberalização cambial
1957:
Industrialização e construção de Brasília: interiorização do desenvolvimento
1961: Golpe e
parlamentarismo: ciclo de crises político-militares encerra a era Vargas
1964: República
“sindical” é derrotada pelo Exército a serviço da burguesia
1968: Brasil
recusa o TNP: autonomia nuclear e projeto próprio termina em 1996
1969: Golpe dentro
do golpe: o mergulho na ditadura
1973 e 1979: Duas
crises do petróleo: grande impacto econômico e na dívida externa
1975: Acordo Nuclear
Brasil-RFA: oposição dos EUA
1979: Começo da
transição para a democracia, sob crise econômica constante
1982: crise da
dívida externa culmina em 1987, com moratória
1985: Fim do
regime militar: início da “quinta” república (Constituição de 1988)
1988: Tratado de
Integração com a Argentina (em 1991, Mercosul quadripartite)
1992: Brasil
aceita Tlatelolco plenamente e faz “impeachment” do presidente
1994: Plano Real
de Estabilização Econômica: vencido o ciclo de ajustes fracassados
1999:
Desvalorização e regime de flutuação cambial: conseqüências para o Mercosul
2002: Vitória do
Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais: grande mudança?
Terceira Parte
Um exercício de história
virtual do Brasil
Tendo já estabelecido uma lista de “momentos decisivos”
da história do Brasil (ver acima), permito-me agora selecionar alguns desses
“turning points” para realizar alguns exercícios de imaginação, que não são
todavia completamente arbitrários ou puramente aleatórios. Uma das boas regras
da história virtual, já explorada por historiadores fecundos como Niall
Ferguson, é a de que o novo curso estabelecido deve ser “plausível” ou
“possível”, isto é, seus desenvolvimentos poderiam estar inscritos na lógica
histórica do momento imediatamente antecedente. Suas conseqüências, entretanto,
podem levar a resultados totalmente aleatórios, ou divergentes do curso real da
história, um pouco como na alegoria do bater de asas da borboleta sugerido pela
teoria do caos.
O que teria acontecido com o Brasil – que talvez não fosse
nem “Brasil” – se alguns dos eventos ou processos aqui sugeridos tivessem
ocorrido? Vou traçar apenas as linhas gerais do que poderia ser uma “história
alternativa”, sem pretender agora entrar em longos desenvolvimentos em torno do
curso sugerido para cada um deles.
O “copyright” pelas idéias virtuais é meu, mas cada um
deve se sentir livre para imaginar seus outros eventos e estabelecer cursos
diferentes para os episódios selecionados.
1. Tordesilhas mais a
leste, em 1494: uma América do Sul apenas espanhola?
O que teria
acontecido se em Tordesilhas (1494) o negociador português não tivesse
conseguido afastar para oeste a linha divisória das terras descobertas em
processo de incorporação aos impérios espanhol e português? O Brasil não teria
sido brasileiro, obviamente, ou pelo menos poderia não ter “nascido” português,
alguns anos mais à frente. Mas, a América do Sul teria permanecido
uniformemente espanhola?; provavelmente não, pois esses imensos domínios teriam
sido imediatamente contestados pelas demais monarquias européias (França e
Inglaterra, sobretudo), como o foram em determinadas partes. Portugal, em todo
caso, talvez tivesse ficado restrito a seus domínios africanos e asiáticos
apenas, o que poderia ter mudado a face do mundo.
Tordesilhas foi uma
espécie de Ialta no nascimento dos tempos modernos, dividindo o mundo entre
Portugal e Espanha, mas à diferença do acordo de Ialta do século 20, que
consolidou uma divisão do mundo relativamente estável durante quase meio
século, foi um acordo feito entre duas potências relativamente marginais no
concerto europeu do Renascimento, não tão poderosas, em todo caso, quanto a
França, a Inglaterra elizabetana (que cem anos depois colocaria a Espanha
imperial em cheque) ou mesmo alguns reinos mediterrâneos. Assim, a pretensão ao
monopólio do mundo não teria sido aceita pelos demais reinos cristãos,
sobretudo se a Espanha (por alguma distração do negociador português em
Tordesilhas) tivesse abocanhado todo o hemisfério americano.
Do nosso ponto de
vista, cabe apenas registrar que em 1494, a Espanha poderia, sim, ter ficado
com todas as terras a 170 léguas de Cabo Verde (e não 370 como depois se
fixou), e Portugal estaria assim restrito aos seus domínios africanos e
asiáticos. Ainda neste caso, o Brasil poderia ter emergido como “Brasil”
(supostamente pela madeira vermelha de suas costas), mas ele teria sido
espanhol 80 anos antes da incorporação de Portugal pela Espanha, e talvez nem
tivesse permanecido sob dominação da coroa espanhola, nessa época excessivamente
preocupada em saquear o ouro e a prata do México e dos Andes e pouco propensa a
defender costas indevassadas, povoadas apenas por índios do neolítico, sem
qualquer riqueza aparente. Os holandeses talvez tivessem se apossado antes de
parte do território brasileiro, ou outros povos: franceses, ingleses. O Brasil
em todo caso não seria português e Portugal teria um império africano e
indiano.
2. O Brasil holandês do
século 17: uma feliz tropicologia da ética protestante?
E se os holandeses não tivessem sido expulsos do Nordeste em 1654: a
ética do protestantismo teria conseguido transformar a lógica da plantação
escravocrata?; um Brasil menos brasileiro teria sido bem sucedido?:
provavelmente não, e o Brasil estaria mais perto de uma Indonésia do que de uma
pujante democracia mercantil.
Imaginemos, por um instante, que Calabar tivesse sido bem sucedido,
que Guararapes tivesse representado uma derrota para os luso-brasileiros ou
que, por artes da diplomacia (e da pressão militar), Portugal simplesmente tivesse
concedido “vender” sua franja nordestina do Brasil à Companhia das Índias ou
diretamente à república dos holandeses. Poderíamos ter tido um Nordeste menos
“subdesenvolvido” do que atualmente, uma vibrante economia mercantil, marcada
pelo “iluminismo” protestante e pela ética do trabalho desse capitalismo
nascente do norte do Escalda?
Duvidoso que esse cenário bem sucedido ocorresse no sentido do
progresso europeu protagonizado pelo primeiro país moderno da Europa, o
protótipo do capitalismo “à face humana” e apenas incomodado pelo “desconforto
da riqueza”. Provavelmente estaríamos mais perto da Indonésia (sem a
diversidade multicultural) do que da metrópole holandesa. Não é certo que esse
cenário puramente colonial se reproduzisse, uma vez que, à diferença da
Indonésia, os holandeses teriam de toda forma de ocupar e preencher
demograficamente o território brasileiro, escassamente povoado por índios pouco
afeitos a uma economia mercantil.
Assim, a forte presença judia (e de “cristão-novos” de modo geral)
talvez tivesse operado algum “milagre” de desenvolvimento econômico com forte
inserção nos fluxos mundiais de transações de bens e serviços, inclusive
capitais. Entretanto, a colônia holandesa do Brasil ainda assim teria conhecido
a escravidão, o regime de plantações e alguns problemas de infra-estrutura que
dificultariam sua inserção exitosa na economia mundial, de maneira autônoma,
quero dizer. Os imponderáveis de um Brasil holandês não se limitam ao próprio
território americano, uma vez que a Holanda talvez tivesse no Brasil uma grande
base de abastecimento para enfrentar não apenas a Espanha dos Habsburgos, mas a
própria Inglaterra do mercantilismo triunfante.
Ou seja, o Brasil continuaria como colônia por um certo tempo mais,
mas o jogo de alianças seria outro, e o futuro estaria mais aberto do que sob o
exclusivismo colonial português. Quanto ao seu desenvolvimento sócio-econômico,
ele dependeria não apenas dos próprios holandeses, mas de uma eventual classe
dominante local que poderia ou não estimular traços inovadores na estrutura
básica (inclusive humana) desse Brasil nordestino. A ética protestante não
seria em todo caso garantia de êxito absoluto…
3. Um tratado de Madri bem
sucedido: uma América do Sul mais brasileira?
Se o acordo conseguido por Alexandre de Gusmão em 1750
não tivesse sido invalidado pela realidade das disputas luso-castelhanas e por
seus sucedâneos de El Pardo e Santo Ildefonso, como seria o mapa do Brasil
atualmente? O Império do Brasil teria sido uma Rússia tropical?
O tratado de Madri representou, efetivamente, uma grande
negociação para Portugal (e o Brasil), mas ele infelizmente não vigorou, ou
pelo menos não foi totalmente incorporado na realidade do terreno e depois na
configuração das fronteiras sulinas. Se os demarcadores tivessem continuado a
sua obra de implementação do tratado e se conflitos na própria península
ibérica não tivessem interferido com seu traçado ulterior, o território
brasileiro teria sido um pouco diferente do que foi nos séculos 18 em diante.
Nesse caso, muitas das disputas ainda pendentes no final do século 19 e início
do 20 não teriam razão de ser, diminuindo a glória futura de um Rio Branco, que
permaneceria como um obscuro cônsul em Liverpool.
Como teria sido isso? Um pouco de cartografia – pouco prática,
neste momento – nos faria ver como. O território das “missões” talvez tivesse
resultado num Paraguai muito maior (se ele não tivesse dado início ao mais
sangrento conflito da América do Sul). A Amazônia brasileira seria um pouco
menor do que é hoje, certamente.
4. Vitória da
Inconfidência: o Brasil brasileiro não teria sido prematuro?
A indústria teria
sido desenvolvida (sem decreto de proibição de teares)?; Os escravos teriam
sido libertados?; Os jesuítas continuariam a prover ensino? O Brasil seria uma
repetição dos EUA, ou seguiria a experiência dos caudilhos hispânicos?
Não pretendo
desenvolver todas as minhas hipóteses aqui, mas ouso apenas sugerir que um
processo de independência naquele momento, com estruturas sociais e políticas
tão pouco desenvolvidas no Brasil, com ausência quase completa de uma população
educada – já não digo alfabetizada, mas “ilustrada” tecnicamente em artes da
manufatura e de ofícios simples – e de bases sociais para a democracia local,
poderia ter resultado num Estado inoperante, claudicante e candidato ao
fracasso administrativo e financeiro.
Classes dominantes
decididas também podem ser um requisito indispensável à emergência de uma nação
autônoma, e talvez o Brasil não estivesse preparado, naquele momento, para a
independência. Recorde-se apenas que a “inconfidência” se deu mais por exação
fiscal do Estado português do que por vibrante movimento autonomista guiado por
uma ideologia iluminista como pode ter ocorrido na América do Norte (que já
tinha mandado seus “representantes” a Londres, na pessoa de Benjamin Franklin,
por exemplo). Em lugar de uma nação autônoma trinta anos mais cedo, poderíamos
ter tido um arquipélago de mini-estados separados pela geografia e pela
economia. Ou seja, um mosaico de repúblicas mais ou menos caudilhescas, como
ocorreu depois com a América espanhola.
5. Conseqüências da não abertura dos portos em 1808: um Brasil
industrial?
Se, em 1808, não tivesse havido o decreto de abertura
dos portos (que significou o fim do exclusivo colonial) e se, em 1810, não
tivesse sido assinado o tratado de comércio de Portugal com a Inglaterra (que
acarretou rigidez tarifária e abertura comercial), como poderia ter sido o
desenvolvimento econômico e industrial do Brasil? Teríamos reproduzido o modelo
americano como pretendem alguns historiadores?
Minha hipótese é a de que o atraso português – sem o
desafio da presença hegemônica inglesa, entenda-se – teria sido simplesmente
transplantado para o Brasil, que seria, sim, um bem sucedido exportador de café
e de outros produtos tropicais, como ele o foi de fato, mas não necessariamente
teria acompanhado o curso da primeira e da segunda revolução industrial (o que
ele fez com enorme atraso). Ou seja, nada de muito diferente de alguns países
mediterrâneos, que mantiveram o atraso social e econômico já bem entrado o
século 20. Um capitalismo hamiltoniano teria muito poucas chances de se
desenvolver no Brasil, em vista dos enormes diferenciais técnicos e de educação
entre a Nova Inglaterra e o Brasil das plantações. Observe-se que nada
impediria, nesse caso, o desenvolvimento de indústrias têxteis no Brasil, como
sugerem alguns historiadores (se não tivesse havido tratado de 1810, por
exemplo), mas elas seriam mais suscetíveis de serem operadas por escravos negros
do que por trabalhadores brancos europeus.
Em outros termos, um capitalismo servil e escravocrata,
sem qualquer democracia (ou apenas uma democracia restrita aos patrícios, como
no sul dos EUA) e sem qualquer estímulo inovador para a geração de um processo
endógeno de desenvolvimento econômico e social. Como diria Braudel, as
estruturas sociais são lentas a serem transformadas, resistindo a muitos
movimentos políticos superficiais, como aquele resultante de um Brasil
português não dominado pelo mercantilismo britânico.
6. Um arquipélago de
repúblicas lusófonas: a independência fragmentada?
Episódios como o da Revolução
Pernambucana de 1817, que representou o primeiro desafio à unidade nacional, o
da própria Independência (em 1822, sem abolição da escravatura) com algumas
lutas de retaguarda na Bahia e no norte, o excessivo centralismo da
administração de Pedro I, que redundou no ato de abdicação (em 1831) e na
experiência “republicana” das Regências, sem falar nas muitas revoltas
regionais desse período, a começar pela Farroupilha no Sul (1835-45), o segundo
grande desafio à unidade nacional, todos eles poderiam, combinados ou segundo
um encadeamento que deixaria algum espaço ao acaso histórico, redundar no
esfacelamento da unidade brasileira, surgindo em seu lugar uma miríade de
estados portugueses mais ou menos caracterizados pela completa independência
econômica.
Uma economia
política da regionalização brasileira na passagem da vaga napoleônica na Europa
(que deixou em crise quase terminal as duas monarquias ibéricas) seria
suscetível de demonstrar essa fragmentação do Brasil em três ou quatro estados
autônomos na conjuntura dos anos 1820 a 1840.
7. O fracasso da República
e a decadência do Império: a monarquia no século 20?
O Império certamente
era frágil (o ataque de Solano Lopez o demonstrou em 1865), mas os republicanos
eram ainda mais fracos e desorganizados. Imaginemos, por um momento, que a
abolição da escravidão não tivesse sido feita em 1888 (e que ela ocorresse
apenas dez anos depois, sem incorporação dos escravos à economia e à sociedade,
como de fato ocorreu em qualquer circunstância), e que as crises militares
desse período tivessem redundado num golpe falho, que produzisse rejeição do
militarismo e do republicanismo e uma aversão completa à anarquia política
prometida pelo federalismo exacerbado dos republicanos ideológicos.
A monarquia teria
então sobrevivido alguns anos mais, até a morte de D. Pedro (nessas
circunstâncias em torno de 1896 ou 97), e que a sucessão tivesse sido realizada
na pessoa da inepta e insegura Isabel, com seu marido francês e financiamento
inglês. Os faustos da era vitoriana, em 1900, talvez pudessem ter sustentado o
regime monárquico alguns anos mais, provavelmente ultrapassando o próprio
monarquismo português (que veio a perecer quando o Brasil conheceu um novo
surto de militarismo, com a eleição de Hermes da Fonseca) e dando-lhe uma aura
de diferente, de estável (numa América Latina cada vez mais agitada por golpes
e revoluções) e mesmo progressista (teríamos “conseguido” libertar os escravos
em 1898, pouco antes de Cuba) e inaugurado o século 20 com grandes promessas de
constitucionalismo britânico. Rui Barbosa teria sido várias vezes presidente do
Conselho de Ministros, Pinheiro Machado um bom tribuno monarquista e o Barão do
Rio Branco faria um grande chanceler monarquista.
Os exageros do federalismo republicano teriam sido
evitados e o Brasil talvez tivesse tido uma trajetória de responsabilidade
fiscal e de solvabilidade externa que teria evitado vários constrangimentos com
os credores externos. O desenvolvimento industrial talvez tivesse sido menor,
mas o Estado talvez pudesse até mesmo ter encontrado o seu reformista
bismarckiano. Algum sucessor de Isabel poderia ter conduzido o Brasil
monárquico até bem passada a Primeira Guerra Mundial, mas os apelos anarquistas
e bolcheviques talvez tivessem provocado alguma tragédia à la russa.
8. Os tenentes no poder
desde 1922: uma república socialista-positivista?
O início do ciclo
tenentista de revoltas políticas no Brasil, em 1922, poderia ter resultado numa
coalizão de forças progressistas suficientemente homogênea para derrubar do
poder Artur Bernardes (ou o último monarca dos Braganças). Ela teria dado a
partida a um processo de reformas que tornariam desnecessária a revolução
“liberal” de 1930, tendo dado um fim antecipado ao regime puramente oligárquico
prevalecente na República de 1891 (ou mesmo na monarquia anterior). Os apelos
“totalitários” desse período teriam feito o Brasil atravessar mais cedo um novo
processo de centralização política e de modernização econômica, misturando
apelos fascistas-integralistas com um vago apelo positivista-progressista.
Nesse mesmo
processo, uma constituição corporativa poderia ter precedido o “Estado novo”
salazarista em Portugal, mas provavelmente não adquiriria os contornos
racialistas e abertamente fascistas de um Estado totalitário como o nazista. A
crise de 1929 e a depressão subseqüente já encontrariam o Brasil preparado para
os novos tempos: ele teria operado bem antes de 1931 a suspensão da
conversibilidade da moeda e o início dos controles de capitais (aliás mantidos
até hoje), assim como a construção do Estado moderno. Integralistas e
comunistas não precisariam se lançar à conquista do Estado em 1935 ou em 1938,
uma vez que eles já teriam sido incorporados aos grupos modernizantes radicais
dos anos 1920 (Prestes seria um governador eficiente em alguma província
amazônica e Getúlio Vargas seria um dos chefes da ala civil do movimento).
A indústria teria
sido estimulada, mas a ideologia fascizante dos líderes civis poderia ter
levado o Brasil a algumas escolhas erradas nas grandes convulsões do final dos
anos 1930, como agora veremos.
9. O Brasil aposta errado
em 1941: fica do lado dos derrotados e ocupados
A viabilidade de um regime
integralista-fascista moderado no Brasil, desde o início dos anos 1920 conduziu
o Brasil a uma grande aliança com as potências nazi-fascistas da Europa e da
Ásia na década seguinte. Ainda que situado fora do teatro de conflagrações
militares européias e asiáticas, e mantendo boas relações com seus vizinhos
sul-americanos (inclusive os fascistas mais radicais da Argentina, com a qual
tinha sido criado uma união aduaneira com propensão a abarcar todo o cone sul,
desde o final dos anos 1930), o Brasil faz as escolhas erradas no momento das
ofensivas militares nazi-fascistas contra os EUA, a Rússia soviética e diversos
outros alvos europeus. Mesmo declarando sua neutralidade no conflito europeu (e
asiático), ele se habilita como um dos principais fornecedores de matérias
primas estratégicas para as potências do Eixo, provocando a ira dos EUA.
Uma recusa
adicional de ceder bases no Nordeste para utilização das forças
aerotransportadas americanas a caminho do norte da África, conduz à ocupação
forçada de amplos trechos da costa nordestina por forças dos EUA. O governo de
Washington oferece um armistício, sob ameaça de bombardeio aéreo e naval contra
o Rio de Janeiro, o que o primeiro ministro Góes Monteiro (atuando num governo
de coalizão entre partidos fascistas e republicanos brasileiros) se vê obrigado
a aceitar. Tem início um longo processo de ocupação de bases
“extra-territoriais” no Nordeste que só terminaria em 1952, com a assinatura de
um acordo de “assistência” militar, ao mesmo tempo em que os EUA devolviam a
soberania “formal” ao Japão e à Alemanha (mas ainda mantinham forças militares
nesses países). O regime civil-militar do Brasil se converte paulatinamente em
aderente de uma vertente menos autoritária do capitalismo de estado.
10. Exageros da “República
sindical” levam o Brasil à democracia burguesa em 1964
Sem ter participado
da guerra e ausente de Bretton Woods e da conferência de San Francisco, em 1944
e 1945, o Brasil adere tardiamente às mais importantes organizações onusianas,
permanecendo num casulo corporativo e estatista, no plano interno, e sendo
estreitamente vigiado pelos EUA no plano externo. Esse relativo isolamento das
correntes mais dinâmicas do crescimento econômico mundial no pós-guerra, conduz
a uma certa estagnação social e ao descontentamento da classe média, que se
deixa seduzir pela idéias democráticas e liberais de Seleções do Reader’s Digest
e pelas belas fotografias de Life,
com a versão edulcorada do american way
of life.
Em todo caso, a revolta
surda contra o “estado novo” tropical que vigorava desde meados dos anos 20,
explode quando um líder republicano sindicalista, João Goulart, promete “mudar
tudo” nas eleições de 1960, radicalizando ainda mais as promessas
distributivistas feitas pelos líderes tenentistas dos anos 1920 mas nunca
realmente cumpridas. Isso era demais para a classe média ameaçada em seu estilo
de vida e seduzida pelo efeito demonstração produzido nos EUA, onde um jovem
líder progressista, John Kennedy, também queria mudar tudo, mas no sentido de
maior bem estar econômico e promessa de direitos civis para toda a população.
Aliada a militares sensatos, líderes social-democratas afastam o presidente
populista com um golpe de estado pacífico e instauram, pela primeira vez na
história, uma democracia burguesa no Brasil. Imediatamente reconhecido pelos
EUA, o novo governo, dirigido pelo jovem líder trabalhista (democrata) Franco
Montoro, assina um acordo com o FMI para colocar a economia do Brasil em novas
bases, abrindo o país ao capital estrangeiro, privatizando as estatais criadas
nos anos 1930 e 40, e inserindo o Brasil na economia mundial, via redução
tarifária e liberalização comercial.
É o começo da voga de regimes civis em toda a América
Latina, que sai definitivamente do isolamento das ditaduras autárquicas e
ingressa numa era de rápido crescimento econômico, igual ou superior ao do
Japão e da Alemanha. Tendo feito reforma agrária e operado uma verdadeira
revolução educacional, o Brasil galga postos altos na corrida tecnológica
mundial, ganhando vários prêmios Nobel em pesquisa científica, sobretudo nas
áreas biológica (e agrícola) e física (aplicada à eletrônica).
11. Crise econômica
mundial dá ao Brasil status de grande
potência nos anos 1970
As duas crises do
petróleo (em 1973 e 1979), encontram o Brasil mais forte do que nunca, com sua
democracia burguesa ainda na infância (pouco mais de uma década) e ainda
vibrante de entusiasmo reformista. O grande impacto econômico provocado em
outros países dependentes da importação de petróleo não se reproduz no Brasil,
que tinha desenvolvido sua indústria petrolífera com base em investimentos
privados nacionais e estrangeiros desde o início dos anos 1960 (descobrindo
novos campos e passando a exportador moderado de petróleo). O relativo conforto
nas reservas e na dívida externa, inclusive permite ao País emprestar recursos
aos EUA, que atravessavam a pior fase da crise econômica iniciada com os
grandes investimentos estatais da era Kennedy (seu governo tinha sido uma
decepção total: quando o Brasil começou a imitar o exemplo americano, os EUA
passaram a imitar as receitas fracassadas do Brasil e de outros “capitalismos
estatizados”).
Tendo contribuído
para solucionar por meios pacíficos a crise do petróleo e os enfrentamentos
bélicos do Oriente Médio (apoiando a criação de um Estado palestino laico e
neutralizado militarmente, uma espécie de Uruguai da região), o Brasil se
qualificou para ocupar o status de
membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o primeiro país
não nuclear a assim fazer. Exemplo de estabilidade econômica e de influência
democrática e humanitária nos vizinhos e mesmo em direção do continente
africano, o Brasil consegue suplantar a França e a Grã-Bretanha como provedor
de assistência oficial ao desenvolvimento para muitos países africanos, a maior
parte antigos “fornecedores” de escravos durante seu período colonial.
Exemplo único de
país alçado da condição de periférico ao status
de grande potência mundial em pouco mais de duas décadas, o Brasil igualou seu
potencial econômico ao da França e do Japão, superou a Itália e a Grã-Bretanha,
e passou a discutir de igual para igual com os EUA, mesmo não sendo detentor de
armas atômicas. No início dos anos 1980, quando já eram visíveis os sinais de
derrocada do antigo sistema socialista, o Brasil tinha emergido como grande
modelo bem sucedido de transição econômica do capitalismo estatal para a
democracia burguesa e o capitalismo liberal.
No final dessa década, um líder operário saído da região
mais atrasada do Brasil, consegue se eleger à presidência e dá continuidade aos
esforços de modernização social e tecnológica do País. Pelos seus esforços em
favor da integração do continente africano à economia mundial e como resultado
dos grandes investimentos realizados na educação e saúde de vários povos
africanos, ele ganha o Prêmio Nobel da paz.
Conclusão: a história virtual não se faz apenas com batalhas e tragédias…
Paulo Roberto de Almeida
Brasília,
29 de novembro de 2007
[1] Ver Niall Ferguson, “Introduction, Virtual
History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past” in Niall Ferguson (ed.), Virtual History: Alternatives and
Counterfactuals (New York: Basic Books, 1997), pp. 1-90, cf. p. 2.
[2] Cf. R. W. Fogel,
“The New Economic History: its findings and methods” in Fritz Stern (ed.), The Varieties of History: From Voltaire to
the Present (New York: Vintage Books, 1973), pp. 456-473.
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