Carmen Lícia Palazzo
Resumo da História da China para o entendimento de comportamentos na longa duração. Escrevi este texto para dar início a diversos debates em uma palestra sobre a China.
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Para analisar a China contemporânea é importante observar o que nós, historiadores, denominamos de mentalidades na longa duração. A modernidade na China não deve ser vista como uma ruptura porque ela traz consigo uma tradição de muitos milênios que é preciso ter em conta para o entendimento da sociedade chinesa e de como os chineses se veem.
A primeira consideração importante é a de que a China é a única civilização cuja escrita atual tem suas raízes em caracteres que datam de pelo menos 3.500 anos. O início para o qual existe testemunho material da escrita chinesa é aproximadamente o do ano 1.500 a.C. Os caracteres que receberam esta datação foram escritos em ossos de animais, em carapaças de tartarugas e no interior de objetos de bronze usados em diversos rituais e descobertos em escavações arqueológicas relativamente recentes, várias delas datando do século XIX.
Diferente dos hieróglifos do Egito, os caracteres chineses atravessaram milênios, transformaram-se, mas vários deles mantiveram sua estrutura ou alguma referência com os de um distante passado. Os testemunhos das origens milenares da escrita estão atualmente presentes em diversos museus e são motivo de orgulho também para as novas gerações. As crianças chinesas sabem que estão aprendendo uma caligrafia que tem origem nos seus mais remotos ancestrais e, apesar de toda a modernidade presente nas escolas, escrever é uma arte que continua tendo considerável prestígio no país.
Outro motivo de orgulho para os chineses diz respeito ao fato de que, embora o longevo império tenha enfrentado muitas invasões e, em duas oportunidades, tenha sido governado por etnias estrangeiras – os mongóis da dinastia Yuan e os manchus, da dinastia Qing – sempre prevaleceu a cultura e a escrita chinesas bem como a estrutura da administração largamente influenciada pelo Confucionismo.
Dada a grande extensão territorial do império, a formação da burocracia, para o funcionamento do núcleo central da Corte e até as mais remotas províncias era uma preocupação constante. Desde muito cedo foram organizados concursos que selecionavam os candidatos mais capacitados para exercer diversas atividades como funcionários imperiais. Os primeiros concursos dos quais se têm registro datam do ano de 650. No entanto, sua implementação de maneira regular passou a ser realizada pela dinastia Song (960-1279), mais precisamente a partir do século X, mantendo-se de forma ininterrupta até sua extinção em 1905, no período final do império Qing, tendo durado portanto por quase dez séculos.
Com pequenas variações pontuais, o conteúdo dos concursos imperiais exigia o conhecimento aprofundado e a capacidade de interpretação de dois conjuntos de obras essenciais da cultura chinesa: os Quatro Livros e os Cinco Clássicos. Resumidamente pode-se dizer que os textos considerados como os mais importantes destas obras eram os Diálogos de Confúcio com seus estudantes (os Analectos), os escritos de Mêncio, um discípulo de Confúcio mas que desenvolvera algumas ideias próprias, os Anais com descrições históricas e o I Ching, ou Livro da Sabedoria.
Considerando-se que os concursos só foram abolidos no início do século XX, pode-se constatar a importância do Confucionismo e da cultura clássica e sua permanência no universo mental da sociedade chinesa na longa duração. E como a aprovação nos diversos níveis dos concursos imperiais eram um significativo instrumento de ascensão social, o estudo, os ensinamentos de Confúcio e os professores eram também muito valorizados, valorização esta que se tornou uma das características mais fortes da cultura da China.
Outro aspecto importante da civilização chinesa é a defesa da sua integridade territorial. Em épocas nas quais a Europa estava fragmentada em feudos a China já era uma monarquia absolutista preocupada com a defesa de suas fronteiras e com a manutenção de uma corte centralizada e imperial. Em alguns períodos houve reinos que combateram entre si, dentro do território de cultura chinesa, no entanto sempre emergiu dos períodos de lutas uma dinastia aglutinadora e forte.
A construção da Grande Muralha, que foi realizada no decorrer de séculos, é emblemática da preocupação com a defesa territorial e, embora ela não tenha sido efetiva para deter todas as invasões, era afirmativa de um poder imperial que reinava sobre uma civilização unificada por diversas características culturais e entre elas por uma mesma escrita, ainda que existissem e ainda existam inúmeros dialetos.
Nem sempre a dinastia governante era de origem chinesa, portanto “han”. A mais conhecida dinastia estrangeira que conquistou a China, ainda que adotando largamente a cultura chinesa, foi a dos mongóis. Kublai Khan, neto de Gengis Khan, chefe mongol que unificara diversas tribos do norte, fundou a dinastia Yuan, após conquistar a China. É a corte de Kublai Khan que está relatada no famoso livro de Marco Polo.
Crises no abastecimento agrícola e um grande descontentamento entre o mandarinato chinês, que era preterido em altos cargos pelos mongóis e até mesmo por outras nacionalidades, foram responsáveis, entre outros fatores, pela queda dos Yuan após quase um século no poder. A ascensão de uma dinastia novamente de etnia chinesa que se autodenominou Ming, ocorreu em 1368 e foi um dos mais brilhantes períodos da arte da porcelana e da pintura na China.
Mas, em 1644, as constantes invasões de novas tribos do norte, que sempre cobiçavam o rico Império do Meio, levaram à desestabilização dos Ming, enfraquecidos, por sua vez, por novas crises econômicas e altos impostos. Os invasores manchus destronaram o imperador Ming em 1644 e assumiram o que viria a ser a derradeira dinastia, a dos Qing, antes da República. Foi um período de muitas realizações principalmente no reino de dois brilhantes imperadores, Kangxi e Qianlong.
Em seus relacionamentos com o exterior, a China teve fases muito distintas e isto influenciou bastante o seu desenvolvimento. Na Antiguidade e no início do que no Ocidente nós chamamos de Idade Média, o comércio de produtos chineses foi de longo alcance através de uma intensa movimentação de mercadores que, posteriormente, ficou conhecida como Rota da Seda. Através de estradas, caminhos e até mesmo oásis nos desertos, principalmente o de Taklamakan e o de Gobi, circularam caravanas nas quais estavam presentes também alguns peregrinos e aventureiros, mas formadas sobretudo por comerciantes que levavam até os portos do Mediterrâneo oriental e ocidental as manufaturas chinesas muito prezadas nas cortes europeias, entre elas as sedas e as lacas. Às mercadorias chinesas, somava-se também ao longo da Rota todo um comércio oriundo de outras partes da Ásia, como tapetes, perfumes e temperos.
Na movimentação da Rota da Seda, chegaram à China os primeiros muçulmanos. Recentemente têm ocupado o noticiário internacional os problemas que ocorrem entre o governo chinês e os muçulmanos uigures do Xinjiang. Não se trata, porém, do único grupo de praticantes do Islã na China, já que os denominados Hui têm como ancestrais os mercadores persas e árabes que, desde provavelmente o século VIII não apenas circularam em território chinês nos caminhos da Rota da Seda, mas muitos ali se estabeleceram, casaram-se com mulheres chinesas e, com o passar dos séculos, adquiriram feições, hábitos e o idioma chinês.
Os Hui são considerados um grupo à parte dos chamados chineses Han pelo fato de serem muçulmanos, no entanto em suas feições e na maior parte de seus hábitos (excetuando-se o consumo de porco) pouco diferem dos chineses e são, algumas vezes, denominados “chineses Hui”. Este grupo raramente se envolve nas questões que tornam tão complicada a convivência dos muçulmanos uigures com os chineses.
Os muçulmanos uigures, porém, são de etnia túrquica ou turcomena. Eles não tem feições chinesas, seu idioma é de origem turcomena. Os uigures não têm nenhuma relação étnico-linguística com os muçulmanos Hui e vivem na chamada Região Autônoma do Xinjiang Uigur, que já foi chamado não oficialmente de Turquestão Chinês. Trata-se de uma região que beira muitos conflitos, pois faz fronteira com a Mongólia, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Afeganistão e a Cachemira, disputada entre a Índia e o Paquistão. E, em uma pequena parte, a região faz fronteira também com a Rússia.
A Região Autônoma do Xinjiang Uigur abriga todo um leque de etnias: uigures, chineses, casaques, tajiques, russos e outros. No passado, esteve ligada a uma Confederação de Povos Nômades, porém durante muito tempo foi parte do império chinês até que, no século XIX, no rastro das reivindicações nacionalistas que eclodiam pelo mundo, viu surgir, no seu interior, as primeiras manifestações separatistas. Mais adiante, já no século XX, ocorreram atentados terroristas graves, matando chineses. Por outro lado, em 1980, os chineses apoiaram a luta dos talibãs contra os russos, permitindo, inclusive, que muçulmanos uigures fossem participar da guerra. Mais adiante, os talibãs retribuíram o apoio mas, na Região Autônoma do Xinjiang, apoiando os uigures em suas ações terroristas contra o governo chinês.
Trata-se, portanto, de uma complicada questão de ordem política, mais do que religiosa, mas que ocasiona graves problemas regionais. Governos do Oriente Médio, mesmo muçulmanos, também não interferem na repressão chinesa aos uigures, pois não consideram que se trate de perseguição de caráter religioso, mas de uma questão política interna da China. O desinteresse dos sauditas pelos muçulmanos uigures levou a críticas bastante contundentes, no entanto não alterou em nada as relações da Arábia Saudita com a China.
Durante grande parte do período imperial, os chineses sempre acolheram a diversidade religiosa, ainda que às vezes privilegiando mais os budistas ou mais os taoístas, mas tendo sempre Confúcio como o seu fundamento, já que era o confucionismo a literatura clássica vinculada ao funcionamento da burocracia. No entanto, desde os tempos da Rota da Seda, foi frequente a presença não apenas de muçulmanos mas também de cristãos, principalmente nestorianos e de judeus, na China, com maior frequência nos grandes centros comerciais, como Suzhou, Hangzhou, Kaifeng, Xi’an, entre outros.
Continuando a falar sobre as relações da China com o exterior, a presença dos jesuítas no Império é um capítulo muito interessante de encontros culturais importantes entre os europeus e o Oriente. Os missionários jesuítas, muito estimulados pela história de Francisco Xavier no Japão, dedicaram-se também às atividades de catequese no Império do Meio, porém ali tiveram uma experiência bastante distinta da japonesa, desenvolvendo um rico relacionamento com os letrados da Corte e algumas vezes diretamente com os próprios imperadores, entre os séculos XVI e XVIII.
A entrada de ocidentais no interior da China era difícil, pois dependia de autorização do imperador. Entre os primeiros missionários jesuítas, destacaram-se os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci. Ambos teceram excelentes relações com altos funcionários da Corte e, com habilidade, conseguiram permissão para deixar Macau, que era o enclave comercial português e porta de entrada no império para penetrar no interior do continente, onde estabeleceram missões em mais de uma cidade.
No entanto, o mais importante foram os relacionamentos que Riccci desenvolveu com o mandarinato, aprendendo o idioma, ensinando muito do que tinha aprendido no Colégio Romano (atual universidade Gregoriana) para os chineses e, afinal, sendo reconhecido como um legítimo mandarim. Mais adiante, já no período da dinastia Qing, outros jesuítas cientistas chegaram a ocupar altos postos na Corte, dois deles, Ferdinand Verbiest e Adam Schall von Bell, como diretores do Observatório Astronômico Imperial. Os jesuítas encantaram-se com o confucionismo, com a estrutura dos exames imperiais e escreveram relatos nos quais reconheciam a China como uma civilização com a qual era gratificante dialogar.
A China, que havia estado na vanguarda de grandes avanços, como a invenção da bússola, do papel, dos juncos que navegavam com muita agilidade, no século XVIII começava a se fechar aos contatos com o exterior, restando apenas os jesuítas para fazer uma ponte entre a ciência ocidental, que já tinha progredido muito, e os letrados chineses, em geral muito conservadores e literários. Crescia entre o mandarinato a ideia de que o Império do Meio poderia ser autossuficiente e pouco dependeria do exterior. Os progressos na catequese não foram grandes e os padres jesuítas foram bastante criticados por outras ordens porque acabaram atuando mais como cientistas do que como missionários.
Os jesuítas europeus permaneceram na China até a extinção da Ordem, em 1773, muitas vezes contando com o apadrinhamento de grandes imperadores, como Kangxi e Qianlong, e seus relatos e as cartas que enviavam para a Europa foram responsáveis pela construção de uma imagem positiva do Império chinês no Ocidente e pela difusão da chamada moda das “chinoiseries”. O século XVIII foi importante também na introdução do chá chinês na Inglaterra (antes do chá que depois passou a ser cultivado na Índia) e na larga demanda pela porcelana e pelas lacas chinesas, principais produtos importados pelos europeus.
No entanto, a sensação de grande poder e de invulnerabilidade que, durante muitos séculos, foi uma característica do Império do Meio, independente de qual a dinastia que estivesse reinando, e mesmo de qual a etnia, foi se esvaindo no decorrer de todo o século XIX, ainda que a corte Qing não abrisse mão de grande luxo e de uma mão de ferro para governar as províncias. As mudanças que ocorriam no rastro da Revolução Industrial envolviam principalmente os processos de modernização da Europa, dos EUA e do Japão.
Os europeus entraram em uma fase de modernização acelerada, pois justamente a Revolução Industrial havia permitido importantes avanços na construção de navios, tanto da marinha de guerra quanto da mercante. A Companhia das Índias Orientais, uma companhia charter britânica, fazia a rota comercial da Índia e da China. Por outro lado, os chineses, que no século XVIII tinham se interessado pelo conhecimento científico dos jesuítas, foram deixando de lado os avanços navais por considerar que o império dificilmente seria atacado ou entraria em alguma guerra importante. Abrir mão da modernização da frota chinesa foi um descuido que posteriormente custou muito caro para a dinastia Qing, então reinante.
No século XIX, havia um descompasso entre a modernização acelerada da Europa, que alavancava o imperialismo, e a China, cujo império enfrentava inúmeras dificuldades além da pressão das potencias ocidentais para ceder na abertura de seus portos aos navios estrangeiros. Os problemas internos enfrentados pela dinastia manchu eram inúmeros, entre eles uma prolongada e grave crise alimentar, resultado de problemas climáticos com grandes enchentes e diques mal conservados, impostos cada vez mais altos cobrados dos agricultores e, entre os altos funcionários da Corte, um embate persistente entre os defensores da modernização do império e os conservadores, avessos a ideias vindas de fora que contrariassem as tradições chinesas.
A partir de 1850 houve um recrudescimento da crise econômica e os grandes imperadores como Kangxi e Qianlong, que apesar de serem de dinastia manchu, eram admirados pela população em geral, estavam no passado. Com imperadores menos carismáticos e também menos capacitados na gestão do Estado, os chineses elegeram a dinastia como culpada por todos os problemas e surgiram reações populares de caráter nacionalista pedindo a derrubada dos Qing.
Uma das guerras internas mais trágicas de toda a história da China imperial e que causou milhões de mortos (há uma estimativa de 20 milhões de vítimas diretas ou indiretas da guerra) foi a chamada Revolta Taiping, que teve início no ano de 1851 e só terminou em 1864. O líder que deu início ao levante, Hong Xiu Quan, dizia-se cristão, mas fazia, em seus discursos, um amálgama do esoterismo taoísta e algumas referências ao cristianismo, que provavelmente havia aprendido de missionários estrangeiros, e se anunciava como filho de Deus e irmão mais jovem de Jesus. Apesar do desvairio de suas afirmações, conseguiu muitos adeptos porque pregava um mundo mais justo e melhores condições de vida para os camponeses que viviam em situação muito precária.
A difícil derrota dos Taiping, após 14 anos de uma luta devastadora só ocorreu com a ajuda das potências ocidentais que, apesar de seu caráter imperialista, desejavam obter concessões da China, mas não a deposição da dinastia reinante. Um oficial americano, Frederick Ward , e um britânico, Charles Gordon, comandaram os soldados chineses na luta contra os revoltosos Taiping. O mandarinato, independente de ser do grupo conservador ou modernizante, também se posicionou contra a Revolta, que conseguiu apoio da parte mais pobre da população.
Neste clima de descontentamento e de violência ocorreram também duas guerras oriundas de agressões externas para extrair vantagens sobretudo comerciais do Império, as chamadas Guerras do Ópio, que podem também ser consideradas como dois episódios de uma mesma guerra. O vício dos chineses em ópio era antigo. Inicialmente usado pela medicina tradicional como medicamento para diversos males, seu consumo foi se tornando um hábito de sociedade, inclusive entre o mandarinato, transformando-se em um vício em larga escala, principalmente a partir do século XVIII. A produção interna atendia bem a demanda até o século XVII, mas com o aumento do consumo os comerciantes chineses passaram a importa-lo dos ingleses, que abasteciam seus navios na sua possessão indiana de Bengala, onde havia grandes plantações de papoula.
A Companhia das Índias Orientais tinha o monopólio deste comércio e, da China, levava de volta em seus navios o muito apreciado chá chinês, altamente consumido na Grã Bretanha principalmente a partir do século XVIII. As transações entre os britânicos e chineses ocorriam no único porto então aberto para tal, que era o de Cantão (Guangzhou) e assim mesmo sob diversas restrições e intermediações de funcionários imperiais.
Como os chineses tinham pouco interesse em produtos europeus e consideravam que o Império produzia quase tudo o que eles necessitavam, a Balança Comercial entre ambos os países era deficitária para os britânicos e apenas a exportação ópio indiano poderia melhorar a situação.. No entanto, alguns imperadores tentaram frear o seu consumo não medicinal, considerando que o vício, alastrado inclusive entre altos funcionários da Corte, estava prejudicando o país.
A partir de 1831 começaram a ser feitas tentativas firmes para reprimir o seu uso e, em 1839 teve início uma repressão muito dura e bem organizada em todo o Império. Um funcionário de confiança da Corte e que administrava o porto de Cantão ordenou, no mesmo ano de 1839, a apreensão de 20.000 caixas de ópio de Bengala ali desembarcadas e fez uma queima pública de todas elas. Tal apreensão e destruição de um produto desembarcado pela Companhia das Índias Orientais foi considerada uma afronta aos britânicos tendo início, então, aquela que ficou conhecida como Primeira Guerra do Ópio. A Grã-Bretanha enviou seus navios de guerra para fazer o bloqueio de diversos portos chineses.
Como a China encontrava-se em grande desvantagem tecnológica em relação aos europeus e sobretudo a sua marinha nunca tinha se modernizado, já que os mandarins mais conservadores não acreditavam em algum possível ataque por mar, em 1842 os chineses foram derrotados e tiveram que assinar o Tratado de Nanjing, que seria o primeiro do que depois foi denominados “Tratados Desiguais”.
Pelo Tratado de Nanjing ficava estabelecido que a China pagaria uma elevada indenização aos britânicos, cederia a eles Hong Kong e abriria mais quatro portos (Ningbo, Xangai, Xiamen e Fuzhou) além de Cantão, que antes da guerra era o único que recebia navios estrangeiros. Na verdade, essa abertura dos portos era o principal objetivo das potencias ocidentais, demanda que se coadunava com as características do imperialismo do século XIX. E, abertos à Grã Bretanha, ficavam então os referidos portos abertos também às demais potências europeias e ao Japão.
Não havia, da parte dos europeus, nenhum interesse em derrubar a dinastia Qing, com a qual, em diversos aspectos, eles mantinham um relacionamento bastante amigável e lucrativo. O que existia era o desejo de abrir a China ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros, já que nenhum europeu esperava conquista-la ou integra-la às suas possessões, reconhecendo a especificidade chinesa, a força de um império milenar ainda que extremamente atingido por crises de vários tipos.
Entre 1856 e 1860 ocorreu a que ficou conhecida como Segunda Guerra do Ópio, com características muito semelhantes à anterior, desencadeada em resposta a um episódio de vistoria chinesa ao navio Arrow e às atividades de sua tripulação. Na mesma ocasião, houve o assassinato de um missionário francês, o que fez com que a França decidisse entrar também na guerra, apoiando os britânicos. Nova derrota para a China, novo tratado desigual, desta vez o de Tientsin, com mais portos sendo abertos aos navios mercantes europeus e japoneses.
Entre as vantagens conseguidas pelos europeus no rastro das derrotas chinesas, estava, desde o final da primeira Guerra do Ópio, o estabelecimento de “concessões”, além da abertura dos portos. Nelas, os estrangeiros poderiam residir sem que ficassem sujeitos às leis chinesas, mantendo seus hábitos, suas escolas e toda uma estrutura administrativa como se fosse território internacional. Entre os exemplos que ficaram mais conhecidos e que foram mais bem sucedidos estavam a concessão britânica de Xangai, que se manteve de 1845 até 1943, e a francesa na mesma cidade, entre 1849 e 1943.
Ainda que as concessões tenham sido uma exigência dos vencedores da guerra, muitos chineses consideraram-se beneficiários delas pois, em diversos casos, e em especial na de Xangai, ocorreu a criação de novos empregos e, durante a Revolta Taiping, serviu de refúgio para muitos mandarins e outros chineses que temiam a barbárie dos revoltosos. O grande desenvolvimento cosmopolita de Xangai é atribuído, mesmo pelos chineses, à presença de ocidentais em diversas atividades na cidade.
O século XIX, todo ele, vai ser de muitos conflitos também internos e em geral envolvendo sempre dois grupos opostos da elite letrada, que se constituía no corpo de funcionários mais qualificado de toda a administração imperial. Tais grupos eram o dos conservadores e o dos adeptos de uma rápida modernização tanto da Economia quanto do sistema escolar, muito engessado em função do programa dos concursos imperiais, todo ele focado nos Clássicos chineses. Deste embate entre tradição estrita e modernização vai surgir uma nova revolta, que ficará conhecida como a Guerra dos Boxers ou dos Punhos Justiceiros.
Para entender a Guerra dos Boxers é importante conhecer o contexto no qual ela ocorreu. A província de Shandong, onde se iniciaram os confrontos, era um importante centro do Taoísmo, abrigando também muitos centros budistas e a cidade natal de Confúcio, Qufu. Era – e ainda é – uma região de muitas memórias da civilização chinesa e na qual seus habitantes, principalmente aqueles ligados a atividades camponesas, tinham algumas práticas esotéricas de raízes ancestrais. Nessa mesma região, como resultado dos Tratados Desiguais, o Império havia arrendado aos alemães a baía onde ficava a cidade de Qingdao, na qual também se instalaram alguns outros europeus, principalmente britânicos. Eram indivíduos ligados ao comércio ou missionários, que fundaram escolas na região.
Os missionários eram bem vistos por parte da população, pois ensinavam novas técnicas em suas escolas e eram contrários à deformação dos pés das meninas, estendo as possibilidades de estudo também a elas. Para os conservadores, no entanto, este ambiente de modernidade era considerado ofensivo às práticas ancestrais chinesas, especialmente arraigadas na província de Shandong.
Neste quadro, ao qual somava-se a crescente crise econômica e o empobrecimento dos camponeses, uma sociedade esotérica de cunho altamente nacionalista e messiânico que se denominava Punhos Justiceiros (conhecidos no Ocidente como Boxers) insuflou a população com discursos contra os estrangeiros, acusados de perturbar os ancestrais com seus investimentos modernos, como a construção de estradas de ferro e do telégrafo. Aos missionários, acusavam de bruxaria e de assassinato de crianças para extrair seus órgãos para rituais religiosos. O nome Punhos Justiceiros devia-se a um tipo de luta que o grupo praticava e que era considerada “mágica”, impedindo que, em uma guerra, as balas dos opositores os atingissem.
A Corte manchu ficou em dúvida se os apoiava apenas para não arriscar novos levantes da população contra ela ou se ficava neutra em relação à revolta. Afinal, venceram os mandarins próximos ao imperador que o aconselharam a dar apoio aos Boxers, o que desencadeou nova guerra contra os europeus e os japoneses, já que as Legações em Beijing foram atacadas, violando-se assim o território dos diplomatas estrangeiros. A reação foi rápida, os europeus, os norte-americanos e os japoneses enviaram tropas, atacaram os Boxers e os derrotaram, numa guerra relativamente curta que durou entre 1899 e 1900.
O imperador Guangxu e sua tia Cixi, conhecida como a Imperatriz Viúva e que era a verdadeira eminência parda do Império, tinham se refugiado em Xi’an durante o conflito, procurando não se envolver diretamente nele, mantendo uma atitude bastante dúbia já que principalmente ela tinha um relacionamento amigável com os diplomatas estrangeiros em Beijing. Os estrangeiros, por sua vez, embora sendo alvo dos ataques nacionalistas dos Boxers, também não pretendiam derrubar a dinastia Qing e então, com os Boxers derrotados em 1901, foi assinado um Protocolo através do qual eram extraídas, do governo chinês, altas indenizações.
A China, a cada derrota, a cada guerra perdida, como havia sido o caso nas duas Guerras do Ópio e na dos Boxers, via suas finanças severamente comprometidas com as indenizações, passava pela situação humilhante de se mostrar tecnologicamente fragilizada, com precárias condições de combate, tendo ainda que enfrentar o imperialismo japonês, que lhe havia subtraído a Coréia como Estado Tributário (no conflito de 1894-95). A tudo, somava-se o avanço dos russos, que cobiçavam parte do território chinês ao norte.
Nesse contexto terrivelmente conturbado da segunda metade do século XIX e até o início do século XX destacou-se, às vezes nos bastidores, mas também muitas vezes na linha de frente, a Imperatriz Viúva Cixi. Concubina do imperador Xianfeng, com a sua morte ainda muito jovem, em 1861, ela chegou ao poder por ser a mãe do único filho homem do imperador, alçado ao trono ainda criança. Cixi, junto com a esposa oficial de Xianfeng, Cian, assumiu a regência que depois passou a exercer sozinha tanto por suas manobras bem sucedidadas quanto por um certo desinteresse de Cian. Desde que tomou as primeiras decisões políticas, Cixi nunca mais deixou o controle político do império. Com a morte do seu próprio filho colocou um sobrinho no trono, também criança e voltou a ser regente.
Há claras evidências de que foi com muita dificuldade que Cixi manteve o equilíbrio entre a valorização da milenar cultura chinesa que ela, mesmo sendo manchu, admirava, e a inevitável modernização, que entrava no império através dos europeus, dos norte-americanos e dos japoneses. Foi também Cixi que, antes de morrer, indicou aquele que seria o último imperador, Puyi.
De toda a movimentada história da China no século XIX, podem ser destacadas algumas considerações importantes:
1) a humilhação da derrota em diversos conflitos, com as potências impondo a abertura dos portos e sobretudo as pesadas indenizações, foi provavelmente o aspecto mais visível da decadência imperial;
2) a manutenção da integridade territorial, apesar de todos os conflitos, o que permitiu que a China, mais adiante, pudesse se recuperar e recuperar seu orgulho. Sempre houve o entendimento, da parte do Ocidente, de que o Império do Meio não seria conquistado e nem mesmo se constituiria em algum tipo de protetorado, ainda que tenha ocorrido um considerável avanço de caráter imperialista em mais de uma oportunidade.
A integridade civilizacional da China nunca esteve sob ameaça e, pelo contrário, os estrangeiros sempre demonstraram certo fascínio pelo que lá encontravam em matéria de arte e de filosofia. Por outro lado, os embates internos entre mandarins conservadores e modernizantes foram uma parte importante dos problemas enfrentados pelos imperadores e pela imperatriz Cixi. Os letrados confucionistas custaram muito a entender que o programa dos exames imperiais, calcado em estudos puramente literários, não preparava os candidatos e futuros funcionários para a realidade do mundo nos séculos XIX e XX, mas em 1905, antes mesmo da vitória dos republicanos, os exames foram extintos.
Sem uma personalidade forte para comandar o Império com a morte de Cixi, em 1908, e sem que o alto mandarinato tivesse conseguido se articular em torno de um projeto de monarquia constitucional que já tinha começado a ser esboçado, mas que nunca, efetivamente, foi levado adiante, os defensores da República conseguiram ganhar muitos adeptos.
A vitória da Revolução Republicana, sob a liderança de Sun Yat-Sen foi reconhecida sem maiores traumas já em 1911 e, em fevereiro de 1912, Puyi, o último imperador, ainda uma criança de seis anos de idade, abdicou do trono. Os republicanos venceram fazendo apelo ao fato de que o império era governado por uma dinastia estrangeira, de origem manchu, mostrando a corrupção que era endêmica na estrutura do mandarinato, mas também pelos altos impostos cobrados principalmente dos camponeses. O discurso nacionalista apontando igualmente para a influência das grandes potencias estrangeiras fortaleceu a criação do Guomintang, partido centralizador, pouco democrático, mas extremamente nacionalista, que apelava para a restauração do orgulho chinês.
Tanto Sun Yat-Sen quanto Chiang Kai-Shek eram populistas e nacionalistas e casados com duas irmãs de uma família da elite na China, a família Soon, cujo apoio foi importante na escolha de quadros republicanos. Até a emergência de Mao e a implementação do socialismo na China, as grandes famílias tradicionais estiveram no controle da República. Já a ideia de hierarquia, de centralização das decisões políticas permaneceu na passagem do Império para a República, da mesma maneira que permanecerá também durante e depois de Mao.
Concluindo esta breve apresentação sobre a história da China, eu gostaria de destacar alguns pontos que considero importantes para entender o presente. O primeiro deles é justamente o de que a força da hierarquia, que tinha raízes milenares com as lições de Confúcio, se mantém como regra até os dias atuais.
Houve um hiato de banimento da literatura Clássica e do Confucionismo em particular e este hiato foi durante o curto espaço de tempo da Revolução Cultural (1966-1976). Pois bem, não por acaso, os mentores da Revolução Cultural recrutaram para a temível Guarda Vermelha, jovens de 12 a 18 anos de idade, mas a maior parte deles entre 12 e 16 anos, a idade da rebeldia. A ideia era erradicar por completo as ideias confucionistas e mesmo a influência dos pais, convencendo os jovens de que os novos tempos pediam novas lideranças que não fossem intelectualizadas. Foram fechadas escolas e universidades e os livros Clássicos jogados no lixo. Adolescentes entre 12 e 16 anos encarregaram-se desse tipo de faxina para erradicar a cultura Clássica. No entanto, em uma cultura como a chinesa, tal disparate não poderia durar muito e a Revolução Cultural foi um hiato na longa duração da história da China.
A valorização do estudo e dos mestres atravessou os anos mais conturbados de guerras e de revoltas e, excluindo-se o período da Revolução Cultural, manteve-se firme em toda a China. Atualmente, mesmo com a espantosa modernização do país é muito claro o incentivo dado a pesquisas arqueológicas que trazem à tona uma história muito antiga. Quem visita o país encanta-se com a qualidade dos seus museus, repletos de objetos de muitas épocas passadas e para os quais há informações de muito boa qualidade.
Xi Jinping na minha opinião não deve ser visto como um ditador nos moldes ocidentais. Embora ele seja muito autoritário, é bem mais um autocrata com características imperiais, quem sabe um déspota esclarecido do que um ditador moderno como nós já tivemos a experiência na Europa e na America Latina. Trata-se de um homem culto, casado com uma importante cantora de ópera chinesa, oriundo de uma família admiradora de Confúcio e cujo pai sofreu nas mãos da Guarda Vermelha. A China nunca foi uma monarquia constitucional. De um Império fortemente centralizador, claramente absolutista, ela passou para uma República com líderes pouco democráticos, com Sun Yat-Sen, Yuan Shikai, Chiang-Kai Shek e depois Mao.
Antes de terminar a minha fala eu gostaria de fazer brevíssimas considerações sobre a questão do Covid-19 e da divulgação tardia de que se tratava de um vírus perigoso. Em primeiro lugar, a culpabilização do governo por hábitos ancestrais dos mercados de animais silvestres é injusta pois o governo chinês tem tentado, desde o tempo do Hu Jintao, modificar consideravelmente certos costumes alimentares, tendo inclusive proibido em mais de uma oportunidade (e nem sempre com sucesso) o festival que inclui a matança de cachorros. No entanto, em sociedades rurais com tais comportamentos não é tarefa simples a mudança de hábitos e o mesmo ocorre no Vietnã, na Coréia e em outros países asiáticos. No caso da China acrescenta-se a questão da medicina tradicional, na qual o pangolim, que foi o vetor de transmissão atual, é um dos insumos mais usados na fabricação de medicamentos .
É importante também deixar claro que a ocultação dos primeiros casos não foi uma decisão do governo central mas do provincial, o que também é parte da estrutura de governança da China, desde os tempos imperiais. Funcionários das províncias calculam até o PIB da sua área que depois é somado aos demais para a obtenção dos dados nacionais. A burocracia provincial tem muitas prerrogativas e, por outro lado, quando comete erros, recebe punições fortíssimas, exatamente como ocorria nos tempos do Império, o que certamente levou a que a informação sobre um vírus novo em Wuhan fosse incialmente ocultada. Zhou Xianwang, que era então prefeito de Wuhan, renunciou ao admitir ter escondido informações sobre o surto. Com tais considerações de modo algum minimizo o problema do ocultamento inicial dos dados, mas acho importante ter um olhar amplo sobre o que ocorreu.
Eu vejo como chance zero a ideia de democratização da China nos moldes ocidentais, porque são pelo menos cinco mil anos de uma história de centralização do poder, mas também porque, atualmente, a modernização do país tem sido favorável às pessoas comuns, ao povo em geral. Os governos de Hu Jintao e agora de Xi Jinping não são excludentes, os governantes apostaram e continuam apostando na inclusão dos chineses, com grande ênfase na inclusão pela educação, pela modernidade. É esse esforço de inclusão que faz toda a diferença para que, apesar de seu inegável autoritarismo, o governo tenha um considerável apoio popular. Não estou defendendo a autocracia contra a democracia, apenas tentando entender o contexto político do país sem enxergá-lo com as lentes de quem está de fora.
Há muito mais para ser dito e analisado sobre a história da China e a crescente modernização do país. Este resumo histórico tem como finalidade fazer apenas considerações pontuais, em um panorama bastante resumido da longa duração.
Segue uma bibliografia bastante básica. Na internet e em diversas páginas de cunho acadêmico há uma grande quantidade de textos sobre a história chinesa, facilmente acessíveis. Recomendo que os interessados coloquem as palavras-chave com relação a períodos ou temas que estiverem pesquisando, para obter resultados mais específicos sobre a China. Ressalto que esta é apenas uma bibliografia MUITO BÁSICA de livros acessíveis no Brasil ou que podem ser comprados online e até mesmo em sebos, sem dificuldade. Preocupo-me sempre em dar informações para leigos e também para os alunos do Ensino Médio e dos cursos de graduação em História. Os pesquisadores sabem onde procurar suas fontes…
CARVALHO, Evandro Menezes de e SILVEIRA, Janaína Camara da (org.). A China por sinólogos brasileiros: visões sobre economia, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Batel, 2019.
CHANG, Jung. A Imperatriz de Ferro. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
CONGER, Sarah Pike. Letters from China. Columbia, SC: Big Byte Books, 2020.
FAIRBANK, John King e GOLDMAN, Merle. China: uma nova história. Porto Alegre: L&PM, 2006.
HAW, Stephen G. História da China. Lisboa: Tinta da China, 2015.
HISTORY. https://www.history.com/tag/ancient-china
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011
PALAZZO, Carmen Lícia. “Os Jesuítas como atores privilegiados na comunicação de imagens da China para a Europa: século XVI a XVIII.” Curitiba: Revista Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 48, 2014, p. 13-31.
SPENCE, Jonathan. Em busca da China Moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
Muito instrutivo. Pena que as fotos não aparecem.
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