Minitratado
das Dedicatórias
Paulo Roberto de Almeida
Sempre
me intrigaram as dedicatórias, especialmente as estranhas (e, reparem bem,
existem as mais bizarras). Afinal de contas, para um leitor inveterado como eu,
impossível não tropeçar com elas bem no começo de um livro qualquer. Os bons
autores, maridos dedicados, pais extremosos, amantes amantíssimos, nunca deixam
de honrar seus amados, oferecendo-lhes a obra que você tem nas mãos, com
palavras obsequiosas, atenciosas, gentis. Normal tudo isso.
Mas,
depois de “enésima” tese ou dissertação acadêmica com que sou confrontado, em
leitura primeiro, em banca depois, sou obrigado a me render a esta simples
evidência: as dedicatórias são uma forma de arte como poucas outras, merecendo
por isso mesmo o que aqui vai agora exposto: um minitratado.
De
fato, eu há muito já vinha intrigado com esse tipo de exercício intelectual –
desde os menores, de poucas linhas, até os maiores, de uma página e meia –,
quando fui despertado para a importância da matéria por um colega de banca, que
se lembrava de outra tese de doutorado, em Paris, na qual seu autor, jurista
que depois ficou famoso, dedicou seu calhamaço à sua amada, de uma forma que
ficou famosa antes dele conquistar respeito e apreço dos seus pares. De fato, o
candidato em questão dedicava, o mais seriamente possível, sua tese a Marie
Josephine (o nome eu escolho, para resguardar a privacidade dos personagens),
“em memória do que aconteceu na tarde do dia 18 de junho de 19.., no jardim das
bétulas...” e por aí seguia em mais duas ou três linhas de uma exemplar
discrição amorosa. Mais do que a dedicatória em si, o que certamente intrigou
os leitores foi tentar descobrir a natureza daquilo que tinha realmente
acontecido naquela tarde de um final de primavera, no jardim das bétulas, entre
o muito sério autor de um tratado de direito internacional e sua doce Marie
Josephine. A imaginação não deixa de deslizar sobre o ocorrido naquelas poucas
horas em lugar tão romântico e convidativo: c’est
tout un programme, como diriam os franceses.
Bem,
deixemos por enquanto os amantes franceses de lado para nos dedicar, de modo
integral e completo, à arte das dedicatórias, no que elas merecem de atenção, de
seriedade e de relevância acadêmica, justificando, quem sabe até?, uma tese de
doutoramento, ou pelo menos uma dissertação de mestrado. Concordo. As
dedicatórias são suficientemente reveladoras do espírito do autor, de suas condições
de trabalho acadêmico, de suas influências intelectuais, para merecer um estudo
à parte, um que interrompa a leitura de livros e cartapácios universitários
logo nas primeiras páginas, desprezando todo o resto, apenas para ficar nas
doces palavras com as quais o autor da obra em questão homenageia deuses,
santos, padrinhos e amigos, chegando até ao sogro e à sogra (imaginem vocês!),
não poupando nem mesmo o cachorro ou o papagaio. Candidatos à autoria de teses
bizarras, apresentai-vos...
Os
livros universitários americanos comportam poucas dedicatórias exclusivas; no
máximo, uma frase de algum famoso escritor ou cientista, colocada em destaque,
como reveladora do espírito que animou o autor a se lançar em sua empreitada
intelectual. A dedicatória, mesmo, vem geralmente nas últimas linhas de
apresentação, nas quais o autor invariavelmente agradece ao cônjuge a
compreensão e o carinho demonstrados por tanta dedicação ao seu trabalho
durante tantas horas roubadas ao convívio pessoal e familiar, acrescentando, se
for o caso, dois ou três filhos no seguimento. Discretos esses americanos...
Mais
exuberantes são os brasileiros, tanto mais quanto eles não têm ainda uma obra
consagrada, e talvez nenhum título digno de Citation
Index a oferecer ao distinto leitor. Já reparei que quanto mais elementar é
o trabalho em questão – ou seja, partindo de um simples TCC, ou monografia de
final de curso, até a tese doutoral completa, passando por diversos tipos de
dissertações – mais empolada e grandiosa se apresenta a dedicatória, construída
para agradecer a todos os que colaboraram com o formidável produto que agora se
apresenta aos olhos do público.
Algumas
dedicatórias são sóbrias, comme il faut,
fazendo poucas concessões a uma arte tão rica de variações estilísticas e
floreios de expressão. Mas as melhores são aquelas que não esquecem
absolutamente ninguém na sua sanha abrangente e totalizadora, digna de uma Gesamtkunstwerk, quase uma obra de arte
total, como indica o conceito alemão. Elas geralmente começam por Deus, pelo
dom da vida, pela felicidade da existência, pela inspiração concedida e por
todas as graças alcançadas, e por aí vai. Deus realmente é único e indivisível,
pois ele aparece em parágrafo próprio, com o destaque das primeiras linhas,
onipotente, sem dividir a frase com nenhum outro personagem das mitologias,
sejam elas quais forem.
Depois
da invocação divina, o professor orientador é o primeiro personagem obrigatório
nessas dedicatórias universitárias, mesmo quando – e sobretudo quando – ele não
cumpriu com seus deveres de orientador e deixou passar vários equívocos de
substância e erros de forma que depois são detectados por membros menos
complacentes da banca (como eu próprio, por exemplo). Em todo caso, o
orientador é aquele que mostrou novos rumos, guiou de mão segura o aluno
aprendiz pelos tortuosos caminhos da verdadeira ciência, aplicou com toda
sapiência os mais rigorosos padrões da pesquisa acadêmica para que o resultado
fosse o melhor possível, aquele mesmo que se abre agora aos nossos olhos,
eventualmente de arquitetura estropiada em sua forma, conteúdo beirando o
aceitável e correção estilística merecendo um revisor bem remunerado. Mas,
enfim, orientador é orientador, e cabe-lhe, portanto, as honras e a glória do
TCC, da dissertação, da tese tão penosamente construída e finalmente terminada.
Podem
vir, em seguida, os demais professores, a instituição, a bibliotecária ou
secretária do departamento, enfim, todo o mundinho funcional que circulou em
volta do trabalho até que ele viesse a termo. São as honras da casa que é
preciso respeitar. Mas esse parágrafo é curto, comparado ao que vem depois.
Sim,
depois desses parágrafos protocolares é que aparecem as verdadeiras dedicatórias,
aquelas que justificariam uma tese inteira sobre as dedicatórias, essas joias
da literatura acadêmica que não mereciam ficar relegadas a páginas
introdutórias, pelas quais se passa rápido e sem prestar muita atenção, direto
para a consulta do índice e o início da leitura na introdução a obra tão
dedicada, justamente.
Nesse
setor, a imaginação é o limite, mas o carinho e os agradecimentos costumam estar
em primeiro lugar para os pais – se o candidato ainda é jovem – ou para o
companheiro, cônjuge, noivo ou namorado, dependendo do status matrimonial, ou
pré, do autor em questão. Não são ainda muito comuns as dedicatórias
homo-afetivas, mas elas sem dúvida não tardarão, consoante o Zeitgeist e o avanço dos costumes.
Também entram aqui irmãos, primos, amigos, companheiros de quarto ou de
República, colegas de curso (e das horas de infortúnio), enfim, todos aqueles
que, da bibliotecária dedicada ao pipoqueiro da esquina, colaboraram, de uma
forma ou de outra, para o sucesso do empreendimento e a conclusão da corveia.
Não
são incomuns, tampouco, as citações de terceiros, encimando ou terminando essa
página (por vezes página e meia) de dedicatórias: frases cultas, pretensamente
inteligentes, invocando alguma nobre missão ou contendo alguma pérola da
sabedoria universal; versos poéticos, tiradas filosóficas, mais raramente um
hai-kai ou slogan mobilizador. Os marxistas não deixam de destacar alguma frase
do 18 Brumário; os neoliberais podem
vir com uma resposta hayekiana; os anarquistas aproveitam para relembrar que, a
despeito de tudo, permanecem irredutivelmente rebeldes, sans Dieu ni maître; e os sonhadores, ou os muito religiosos,
transcrevem uma esperança qualquer. Nunca é tarde, ou cedo, para proclamar em
altos brados suas preferências intelectuais.
As
dedicatórias são, enfim, o equivalente dos diários íntimos, atualmente tão fora
de moda, substituídos, talvez, pelos blogs e outras ferramentas de comunicação
social. Elas merecem toda a nossa atenção e espírito investigativo. Vale uma
pesquisa mais extensa, para o que pretendo empreender uma garimpagem na coleção
de trabalhos acadêmicos depositados em duas ou três instituições universitárias
ao meu alcance. Aposto que vou encontrar verdadeiras pérolas, dignas de
transcrição entre aspas (preservando-se, é claro, os autores), exemplos de
imaginação criadora e espírito literário. Prometo voltar...
Por
enquanto, dedico este minitratado a todos os autores sequiosos de colocar em
ordem suas respectivas dedicatórias e declarando-me disposto a receber, como
contribuição a meu trabalho de pesquisa, todos os exemplos bizarros e mais
interessantes que meus leitores possam encontrar em suas andanças acadêmicas.
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 15/11/2011; rev.: 18/11/2011)
3 comentários:
Adorei esse texto! Comecei a lê-lo porque estou em pleno final de faculdade e começo a respirar minha monografia: ao inspirar, me peguei outro dia pensando sobre a dedicatória (a quem dedicar? como dedicar? dedicar?); expirando, deixei esses pensamentos perdidos na minha mente e fui arrumar algo mais frutífero para fazer. Ora, ao ler esse texto me veio logo aquela tal de inveja literária. Sabe aquela sensação de "como eu queria ter escrito isso"? Então!
O senhor me diverte!
Abraços
Adorei esse texto! Comecei a lê-lo porque estou em pleno final de faculdade e começo a respirar minha monografia: ao inspirar, me peguei outro dia pensando sobre a dedicatória (a quem dedicar? como dedicar? dedicar?); expirando, deixei esses pensamentos perdidos na minha mente e fui arrumar algo mais frutífero para fazer. Ora, ao ler esse texto me veio logo aquela tal de inveja literária. Sabe aquela sensação de "como eu queria ter escrito isso"? Então!
O senhor me diverte!
Abraços
Muito bom.
Dei boas risadas imaginando as dedicatórias e a expectativa do trabalho ser apresentado ao público mundial... Sobretudo, a presença obrigatória do orientador que mostrou como se faz ciência ao orientando...hehe
Mas, tenho uma exceção...Uma amiga teve a monografia "orientada"por um figurão da república que nunca deu as caras...No dia da apresentação ela deixou em branco o nome do orientador no painel da apresentação..Ficou conhecida como a "garota sem orientador"..Achei dez a postura dela.
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