Ser um bom
internacionalista, nas condições atuais do Brasil significa, antes de tudo, ser
um bom intérprete dos problemas do nosso próprio País.
Paulo
Roberto de Almeida
Alocução de paraninfo
na turma de formandos 2º/2005
do curso de Relações
internacionais do Uniceub, Brasília
(16 de março de 2006,
20hs, Memorial Juscelino Kubitschek)
Senhor Coordenador do Curso de
RI, Professor Marco Antonio de Meneses Silva, aqui representando todas as
autoridades acadêmicas,
Senhora Patronesse homenageada,
Raquel Boing Marinucci,
Senhores professores
homenageados,
Meu caro amigo e dileto colega de
carreira, Professor Rodrigo de Azeredo Santos,
Caro Professor Marcelo Gonçalves
do Valle,
Senhora funcionária homenageada,
Vanessa de Faria Campanella,
Senhoras e senhores pais e demais
autoridades e colegas professores presentes,
Meus caríssimos alunos e agora
formandos em relações internacionais,
Estou ligado a este centro
universitário a bem mais tempo do que minha curta carreira de professor poderia
sugerir. A despeito de ter ingressado como professor nos cursos da faculdade de
Direito apenas em 2004, sob pressão do dileto amigo e coordenador, Marcelo
Varella, eu já freqüentava o campus
do Uniceub desde algum tempo, já que minha esposa, Carmen Lícia Palazzo, lecionou
no curso de história durante vários anos. Também estou ligado a esta cidade há
muitos anos, quando para cá me mudei, em 1977, ao ingressar na carreira
diplomática, tendo servido ao Brasil, por mais de 28 anos, aqui e no exterior.
Lembro-me, por exemplo, de, recém chegado a Brasília, ter vindo uma vez ao
modesto campus do então Ceub, para
ver, acompanhado de colega diplomata, um encarregado de cursos. Naquela ocasião,
uma remoção precoce para o exterior impediu que eu me vinculasse à instituição,
numa fase que antecede, provavelmente, ao nascimento e à idade atual da maior
parte de vocês, que hoje se formam.
Mantive contato preliminar com o
curso de relações internacionais do Uniceub ainda em seu estabelecimento,
fazendo ali uma palestra antes de minha partida para a Embaixada em Washington,
em 1999. Voltei depois em outras ocasiões, para palestras ou encontros com
professores. Em todas essas oportunidades, testemunhei o empenho desta
instituição em oferecer um curso de RI que se igualasse aos melhores do Brasil
e que servisse, adequadamente, aos propósitos de cada um de vocês de obter a
melhor formação possível, de maneira a habilitá-los a enfrentar a dura
competição pelo trabalho na vida profissional ou a continuar os estudos em
nível de pós-graduação.
Desejo, antes de tudo, agradecer a
todos pelo honroso convite para servir de paraninfo nesta cerimônia de colação
de grau. Isto se deve, aparentemente, ao fato de que eu possa ter servido como
uma espécie de bibliografia ambulante, ou seja, de que alguns de meus livros
possam ter eventualmente ajudado no propósito de iniciá-los nos meandros das
relações internacionais, ou, melhor ainda, à chance de que vários de meus
textos estejam livremente disponíveis em meu site na internet, podendo, assim,
ter salvado mais de um trabalho de última hora. Foi para isso mesmo que montei,
e continuo a alimentar, um site que oferece uma espécie de concorrência desleal
a vários dos meus editores. Mas nenhum deles ainda protestou por isso.
Meus caros formandos,
Creio já ter oferecido, por meio de
meus livros, palestras ou textos esparsos, mais de uma contribuição ao estudo e
à formação na área das relações internacionais no Brasil e do Brasil. Assim,
não pretendo voltar a tocar, agora, nos temas que ocuparam seus dias e noites
nos últimos quatro ou cinco anos, o que faz uma boa parcela de vida. Prefiro
deixar as relações internacionais de lado e ocupar-me daquilo que na verdade
tem sido a minha paixão e que representa grande parte de meus desesperos no
último meio século, ou quase: o próprio Brasil.
Intitulei esta alocução, ainda que
vocês não possam ver este texto (mas ele já está em meu site), desta forma: “ser um bom internacionalista, nas condições
atuais do Brasil, significa, antes de tudo, ser um bom intérprete dos problemas do
nosso
próprio País”. O que eu quero dizer com isto?
Vocês
adquiriram uma formação de internacionalista ou, pelo menos, pagaram para isso.
O canudo recebido, no entanto, é uma simples formalidade, pois a verdadeira
formação de vocês deve ser feita no exercício profissional e no estudo
constante e continuado das matérias que os ocuparam nos últimos anos e muitas
outras mais. Qualquer que seja a universidade, e sua excelência relativa, ela
nunca vai poder fornecer, a cada um, todos os elementos de formação de que
necessitam para convertê-los em bons profissionais na vida prática. Por isso, o
aperfeiçoamento constante e o estudo regular, na base do autodidatismo e das
leituras auto-impostas, devem ser a norma que precisa continuar a pautar suas
vidas daqui a diante. Minha primeira recomendação seria: assim que puserem o
diploma na parede e enquadrarem as fotos de formatura, voltem aos estudos, em
instituições ou por conta própria. Não parem, sobretudo, de se especializar e
de enriquecer o currículo com novas fontes de saber e de conhecimento,
adequadas à carreira que vocês pretendem seguir.
Mas o meu
argumento, hoje, é o de que, independentemente da carreira que vocês vão agora
perseguir ou, em alguns casos, continuar e a despeito de quaisquer projetos que
vocês possam ter na área de relações internacionais, vocês são, essencial e
fundamentalmente, internacionalistas brasileiros. Eu gostaria de acentuar o
adjetivo, isto é, vocês são profissionais atuando a partir da realidade
brasileira e possuindo uma visão global que busca, ou que pelo menos deveria
buscar, interpretar o mundo a partir do Brasil, de seus problemas e de suas
necessidades.
Quero
dizer basicamente o seguinte: o Brasil construiu, ao longo das últimas décadas,
uma economia industrial relativamente desenvolvida, sob certos aspectos até
sofisticada, haja vista a capacitação tecnológica exibida em várias áreas
avançadas, como na construção aeroespacial ou no agronegócio como um todo. Ele
também consolidou, no decorrer das últimas duas décadas, um sistema democrático
fundamentalmente estável, ainda que nossa democracia seja de baixa qualidade
intrínseca e de pouca densidade institucional, na qual os direitos fundamentais
do cidadão, sobretudo os mais humildes, nem sempre são respeitados. Ele conseguiu
montar, igualmente, um sistema científico de inegáveis méritos ao nível da
pesquisa básica, mesmo se deixando muito a desejar, ainda, no que se refere à
transposição desta para o plano do desenvolvimento tecnológico.
Não
obstante deficiências estruturais e sistêmicas, que dificultam um processo
sustentado de crescimento econômico a ritmos desejáveis e necessários, para
fins de distribuição de seus frutos, basicamente em virtude da excessiva carga
tributária que caracteriza nosso país, o Brasil possui uma economia moderna e
competitiva capaz de rivalizar com outros países emergentes ou, em determinados
setores, com as nações mais avançadas, em termos de desenvolvimento material.
Por isso mesmo, estava parcialmente correto o líder político que disse que o Brasil
não é mais um país subdesenvolvido, mas um país fundamentalmente injusto, ainda
que uma coisa possa não obstaculizar a outra, uma vez que a injustiça pode,
também, ser revelada pelo subdesenvolvimento relativo de determinadas
instituições, entre elas as educacionais, ou da própria justiça, cujas
condições de morosidade e de incerteza quanto à jurisprudência podem igualmente
impactar negativamente o ritmo de crescimento econômico.
Em outros
termos, o Brasil já não apresenta, no plano técnico, obstáculos intransponíveis
aos processos de modernização tecnológica e de aprimoramento da gestão
empresarial, mas ele ostenta, sim, graves problemas distributivos e várias
outras disfuncionalidades em sua organização institucional. Todos esses
problemas têm uma origem essencialmente doméstica, eles são 100% “made in
Brazil”, foram criados por nós mesmos e só poderão encontrar soluções, todas
elas internas, a partir de nossos próprios esforços e por uma vontade nacional
genuinamente auto-induzida.
Esta minha
convicção se baseia em simples observação dos problemas básicos do Brasil
atual. E quais são eles? Baixo crescimento econômico, insegurança e violência
na vida cotidiana, déficits orçamentários e graves problemas fiscais,
desequilíbrios regionais e enormes desigualdades sociais, disfuncionalidades
nas instituições políticas e corrupção nos negócios públicos, má qualidade da
educação, deterioração do meio ambiente, inclusive urbano, descrença, enfim, no
futuro do país, de que é prova visível o crescente movimento migratório, num
país que se caracterizou sempre pelo acolhimento de todo tipo de estrangeiro.
Todos esses
problemas não resultam de uma alegada dominação estrangeira sobre nossos
recursos naturais, de qualquer imposição imperialista quanto ao usufruto de nosso
trabalho produtivo, de nenhuma compulsão exterior ao nosso próprio modo de
vida, no que se refere ao funcionamento das principais instituições nacionais,
de nenhum complô alienígena que visaria, supostamente, impedir nossa
capacitação tecnológica ou o exercício de uma pretendida liderança natural na
região.
O que tem
a ver, por exemplo, uma imaginária dominação imperialista com a nossa não tão
prosaica corrupção política? Em que os capitalistas estrangeiros seriam
responsáveis pela má qualidade da educação brasileira, ou pela falta de
segurança em nossas metrópoles, ou pelo mau estado de nossas estradas, ou pela
condição calamitosa do atendimento hospitalar para as pessoas de baixa renda?
Por que, em outra vertente, o FMI seria culpado pelo déficit estrutural e pelo
descalabro e crise previsível do nosso sistema previdenciário? Em que sentido o
sistema financeiro internacional estaria na origem dos nossos desequilíbrios
orçamentários ou seria capaz de impor essas taxas de juros absurdamente altas,
quando elas resultam de nossa própria compulsão para o gasto sem medida e do
acúmulo contínuo de uma dívida interna que vai continuar pesando na vida dos
nossos filhos e netos? Por que não conseguimos crescer adequadamente, quando o
mundo se expande a taxas que são o dobro das nossas e os emergentes fazem o
triplo disso?
Não vejo,
sinceramente, nenhuma origem estrangeira na raiz dos nossos males principais,
assim como tampouco vislumbro qualquer solução vinda de fora a todos esses e
cada um dos nossos problemas mais cruciais. Por isso mesmo, quando vejo essas
imensas manifestações de protesto contra o “vil imperialismo” e contra a
“globalização assimétrica”, em ruidosos fóruns que nos prometem “um outro mundo
possível”, mas que sempre se esquecem de comunicar a receita milagrosa desse
mundo imaginário, eu fico pensando se é por ingenuidade, por desfaçatez
política ou por pura desonestidade intelectual que tantas pessoas medianamente
bem informadas continuam a repetir esses slogans furibundos, tão cansativos quanto
enganadores. Acho, sinceramente, que todas as reações paranóicas e xenófobas,
para não falar de uma certa visão conspiratória da história, são não apenas
anacrônicas, mas profundamente equivocadas e ilusórias.
Meus caros
formandos,
Não nos deixemos iludir: as causas
dos nossos angustiantes problemas estão aqui dentro mesmo, assim como terão de
ser genuinamente nacionais os diagnósticos e as soluções factíveis a cada um
deles. O verdadeiro internacionalista saberia, aliás, fazer essa constatação
elementar: o sistema internacional oferece, por certo, desafios e riscos a
qualquer país inserido nos circuitos da globalização econômica e da
interdependência planetária, mas ele não é de nenhum modo responsável pelas
nossas mazelas principais ou pelas nossas deficiências mais primárias.
A velha arenga das alegadas “perdas
internacionais”, ou a responsabilização da “dependência externa” pelas notórias
e manifestas carências da sociedade nacional já não convencem mais ninguém, e
quem ousa ainda empreender esse tipo de discurso só pode ser chamado daquilo
que é, verdadeiramente: ou um demagogo ou um simples enganador. De resto, seria
precisa muita ingenuidade ou muita má-fé, para atribuir a outros as raízes de
todos esses problemas a que já me referi.
Dessa forma, não tenho hesitação em
afirmar: a primeira condição que vejo como importante para que vocês se
habilitem enquanto internacionalistas competentes e enquanto profissionais
eficientes seria uma leitura apropriada dos problemas nacionais. A partir daí,
vocês serão capazes de exibir uma visão igualmente correta dos dados da
realidade internacional, em sua dimensão própria e em sua interação com aqueles
problemas domésticos. Vocês são internacionalistas brasileiros, mas a
brasilidade deve vir antes do internacionalismo. Por isso, mesmo buscando uma
maior especialização em questões internacionais, não deixem de estudar o Brasil
e seus problemas. O bom internacionalista é aquele que sabe, em primeiro lugar,
situar corretamente o seu país no quadro das relações internacionais, a partir
dos dados primários da realidade nacional.
Por isso, sejam internacionalistas
conseqüentes, começando por conhecer profundamente o seu próprio País! Esta é
uma regra de ouro, que sempre guardei comigo, como guia para os meus estudos e
trabalho durante toda a minha vida. De resto, todos e cada um dos meus livros,
independentemente do conteúdo mais ou menos “diplomático” ou de “política
internacional” que eles possam conter, tratam, básica e essencialmente, de um
único personagem: o Brasil!
Meus sinceros parabéns a todos
vocês, a seus pais e professores e o meu ainda mais sincero reconhecimento por
esta oportunidade de dirigir-me a alguns dos meus, até aqui não revelados ou
ainda pouco conhecidos, leitores. Sejam felizes, junto de seus familiares,
amigos e colegas, mas lembrem-se sempre: o Brasil antes de tudo!
Muito obrigado!
Paulo Roberto de Almeida
[8 de março de 2006]
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