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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Um ornitorrinco no Itamaraty - Paulo Roberto de Almeida

 Alguns questionaram a capa de uma coletânea de "crônicas" de cronista misterioso, sobre o Itamaraty bolsolavista, cujo animal representado, o ornitorrinco, não figura em nenhuma das crônicas do nosso resistente do Itamaraty. 

A ilustração tinha sido feita para eventualmente ilustrar a capa de meu livro, a partir de um de seus capítulos, mas que acabou adotando outro título: O Itamaraty num labirinto de sombras. 

Abaixo reproduzo o artigo original, que não deixa de ser uma espécie de distinção, pois que esse animal é o mais estranho de todos, como pode acontecer em outros habitats, com certos seres bizarros...

Paulo Roberto de Almeida

Um ornitorrinco no Itamaraty

 

Paulo Roberto de Almeida

 

O ornitorrinco – nome científico: ornithorhyncus anatinus; em inglês, duckbilled platipus; em francês, ornythorinque; em alemão, Schnabeltier; em grego, platypodas – é um animal absolutamente único na natureza: mamífero, como os primatas, exibe, no entanto, um bico de pato, sendo, como esta ave, um palmípedo, o que já estava evidente pelo seu nome em grego. Os ornitorrincos vivem em paragens distantes do resto do mundo, botam ovos, mas alimentam os seus descendentes, não pelo leite extraído de mamilos, mas por meio de glândulas. A despeito de se parecer com um castor, o ornitorrinco não possui dentes, e não usa os sentidos tradicionais para caçar o seu alimento – olfato, audição ou visão – e sim por meio de vibrações elétricas, o que fica evidente por certo tremelicar no comportamento desse animal bizarro. 

Eles têm certa dificuldade em caminhar, apesar dos pés de pato, o que os leva a passar a maior parte do tempo enfurnados em alguma caverna, que constroem para si mesmos. Com toda a sua aparência inocente, ele pode ser um animal perigoso, pois tem um veneno terrível nos esporões de suas patas, o que é suficiente para matar outros pequenos animais. Mais curioso ainda, o ornitorrinco não possui estômago, o que os cientistas acreditam ser o longo resultado do processo evolutivo, o que acabou criando uma ligação direta entre o esófago e o intestino; tem também uma pele impermeável, o que o habilita a conviver em diferentes ambientes sem problemas aparentes, entre a terra e a água, com desenvolturas diferentes em cada um desses meios.

Na classificação zoológica, trata-se da única espécie de seu gênero, sendo ainda monotípica, ou seja, não tem subespécies ou variedades reconhecidas. Os cientistas ocidentais, no século XVIII, ao receberem um primeiro exemplar, trazido por visitantes da distante Austrália, pensaram tratar-se de uma fraude, ou seja, um animal semelhante a um castor, ao qual tinha sido costurado um bico de pato, e por isso, um desses cientistas denominou-o de Ornithorhynchus paradoxus. Verificou-se também que sua temperatura média era de apenas 32 graus, bem abaixo dos 37 normais nas espécies placentárias. O fato de ser um dos poucos, talvez o único dos mamíferos venenosos o torna, uma vez mais um animal absolutamente estranho entre os membros do seu gênero dos monotremados. 

Será que ele se sente solitário na natureza, pois que diferente de todos os outros animais? Provavelmente, mas ele não deve discutir esse tipo de questão filosófica. Em todo caso, para o que nos interessa, o Brasil do presidente Bolsonaro também é um país solitário no mundo, praticamente sozinho em determinadas políticas que o fazem sentir-se como um continente à parte, à deriva dos demais, talvez uma jangada de pedra, à maneira de José Saramago. Vive uma fase de transformações culturais que poderia ser apropriadamente chamada de EA, a Era dos Absurdos. Nada é tão mais conforme a essa designação do que a sua política externa e a sua diplomacia, aparentemente sob a condução, mas apenas aparente, de Ernesto Araújo. Ele é o verdadeiro ornitorrinco num governo feito de vários outros animais estranhos. 

Registre-se que as bizarrices começaram antes mesmo da posse do governo, pois que o chanceler, em plena campanha presidencial – o que, em princípio, deveria refrear ardores políticos de funcionários de Estado –, já deblaterava, num blog simbolicamente chamado Metapolítica 17: contra o globalismo, contra colegas que teriam se deixado seduzir pelo marxismo, o petismo, pelo esquerdismo, de modo geral. Depois de algumas décadas de carreira, ele já deveria ter aprendido que os diplomatas não são marxistas ou esquerdistas, e sim carreiristas, embora alguns sejam oportunistas (como, aliás, ele próprio, que se forjou uma identidade olavista para conquistar o cargo). Levantou sua lança contra o multilateralismo, contra um desconhecido “climatismo”, contra um mais estranho ainda “comercialismo”, mas sobretudo – para satisfazer o guru expatriado da Virgínia que o empurrou para cima – contra essa paranoia de conspiracionistas malucos que se chama “globalismo”, o que é propriamente estarrecedor para um diplomata. 

Desde o primeiro dia do governo, antes mesmo de assumir formalmente, já tinha declarado seu servilismo ao império, apoiando a instalação de uma base dos EUA no Brasil, no que foi imediatamente rechaçado pelos militares. Depois da posse – em latim, grego e tupi-guarani, sem expor sua “política externa para o povo” –, eles continuaram a controlar seu ímpeto adesista na tentativa de juntar-se ao projeto eleitoreiro de Trump, de forçar uma mudança de regime na Venezuela, incorporando o vice-presidente Mourão numa das reuniões do Grupo de Lima, para obstar qualquer aventura militar contra a ditadura chavista. Mas ordenou a imediata retirada do Brasil do Pacto Global das Migrações, uma imitação canhestra da postura xenófoba de líderes de extrema direita, quando esse acordo não ameaça em nada a “soberania” de um país que possui muitos mais emigrantes do que imigrantes. A suprema bizarrice foi atribuir ao asfalto a elevação dos termômetros usados pela “turma” do aquecimento global. Essa foi forte!

Uma obsessão doentia por agradar o seu chefe fez com que ofendesse o então candidato nas primárias argentinas, ambos alertando contra a emigração maciça dos hermanos ao Brasil se ganhasse a “esquerdalha”. O chefe, por sua vez, conseguiu brigar contra importantes chefes de governo da Europa, com a retirada de importantes suportes financeiros a programas de sustentabilidade ambiental e mais de uma vez a ministra da agricultura teve de amenizar posturas dos dois que ameaçavam as relações comerciais com a China e com países muçulmanos. Outro exemplo recente foi mais uma tentativa de agradar o chefe ao pretender demonstrar que a “maioria” do G20 não aplica políticas de isolamento na luta contra o Covid-19, o que eventualmente pode torná-lo cúmplice de uma das mais temerárias atitudes de um chefe de Estado no mundo. Ian Bremmer, do Eurasia Group, chegou a dizer que, perto de Bolsonaro, Trump parece um Churchill. 

Se esse é o critério, o ornitorrinco do Itamaraty tem como padrão o chanceler do governo militar Juracy Magalhães, para quem “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Na verdade, a Casa de Rio Branco não conhece precedentes ao estranho animal que intimida pela truculência os colegas diplomatas...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 29 de março de 2020

 

 

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