sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A vitória da China na nova diplomacia das Vacinas - Valor Econômico

 E se a China vencer a guerra das vacinas?

A China vem fazendo um grande esforço de exportação de suas vacinas, enquanto os países ricos do Ocidente estão priorizando vacinar as suas populações. Isso permite a Pequim ampliar sua influência no mundo

Valor Econômico | 19/2/2021, 5h

No século 20, os EUA lideraram o mundo no enfrentamento de duas ameaças globais. Venceram o nazifascismo, na Segunda Guerra Mundial, e o comunismo, na Guerra Fria, tornando-se a potência hegemônica. Quem vai liderar o mundo contra a covid-19? Esse papel vem sendo ocupado cada vez mais pela China. Uma vitória chinesa na guerra das vacinas poderá acelerar a ascensão do país neste século.

Apesar do otimismo recente com as vacinas, só uns poucos países conseguiram, até agora, avançar com programas amplos de vacinação. Os EUA aplicaram pouco mais de 56 milhões de doses. A China, 40 milhões. O Reino Unido, 16 milhões. A Índia, 9,42 milhões. Os demais estão abaixo de 7 milhões.

EUA e UE retém suas vacinas e dão espaço para avanço chinês

Faltam vacinas e, como alertou ontem o secretário-geral da ONU, António Guterres, a distribuição das vacinas é muito desigual. Dez países (incluindo o Brasil) concentram 75% das doses aplicadas, e 130 países ainda não receberam nenhuma dose.

Os países produtores deveriam aceitar vacinar mais lentamente as suas populações para enviar vacinas ao resto do mundo? A questão é complexa e a resposta tem repercussões importantes.

Os países ricos estão hoje mantendo quase exclusivamente para si as vacinas que produzem. Os EUA embarcaram numa política de America First. Em dezembro, Donald Trump assinou decreto que obriga as empresas que produzem no país a priorizar o mercado interno. Joe Biden manteve isso e recusou apelos recentes dos vizinhos México e Canadá e de aliados na

Europa pela liberação de mais vacinas. A União Europeia (UE), prejudicada por essa política americana, adotou regras para limitar a exportação de vacinas produzidas localmente, caso o mercado europeu não seja abastecido adequadamente.

Isso pode ser eleitoralmente eficaz nesses países, mas ameaça colocar o mundo contra o Ocidente e nos braços de China. 

A China, segundo levantamento divulgado nesta semana pelo jornal “South China Morning Post”, de Hong Kong, exportou ao menos 46 milhões de doses, entre vacinas prontas ou insumos para vacinas. Ou seja, mais do que aplicou localmente. É difícil saber quantas pessoas já foram de fato vacinadas no país. O dado é opaco, e suspeita-se que a vacinação começou bem antes de as vacinas serem oficialmente aprovadas. Ainda assim, a China não atingiu sua meta oficial de vacinar 50 milhões de pessoas até o fim de janeiro, algo insólito num regime que tem verdadeira obsessão por atingir metas.

O ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, já se referiu às vacinas chineses como “produtos públicos globais”. Enquanto a China fala diariamente em distribuir vacinas, EUA e UE falam só em quantas doses asseguraram para si mesmos. Na semana passada, Biden anunciou acordo para a compra de mais 200 milhões de doses da Pfizer e da Moderna, a serem entregues até julho. Além disso, essas empresas, que vêm atrasando envios para outros países, teriam concordado em antecipar entregas ao governo americano. Nesta semana, a UE anunciou acordos de compra de mais 200 milhões de doses da Pfizer e 150 milhões da Moderna.

Para a China, possivelmente é mais fácil exportar as vacinas em detrimento de seus cidadãos. Primeiro porque o país, assim como outros na Ásia, conseguiu controlar a epidemia, tendo poucos casos e poucas mortes. Mas também o regime chinês controla a mídia e a internet no país, e qualquer dissenso sobre a política de usar as vacinas para ganhar influência no exterior pode rapidamente ser abafado.

O impacto desse esforço chinês de fornecer vacinas para o mundo é evidente. Na América Latina, o México começou a vacinar primeiro, mas parou em 1,16 milhão de doses devido ao atraso das remessas da Pfizer. O mesmo ocorreu com o Chile, que também iniciou a vacinação em dezembro. As vacinas da Pfizer acabaram, mas a vacinação acabou decolando com a chegada das doses chinesas. Tem sido assim em todo o mundo.

Rússia e Índia também estão se movimentando nessa guerra das vacinas, mas sem o poder de mobilização da China. A Rússia, com pouca capacidade interna, fez acordos com dez países para terceirizar a produção da Sputnik V, mas esses países têm os seus gargalos, e a iniciativa ainda não decolou. A Argentina, que depende da vacina russa, aplicou até agora pouco mais de 600 mil doses. Já a Índia tem seus próprios obstáculos. Por ser uma democracia, o governo está sujeito à acusação de não priorizar a própria e imensa população. Assim, Nova Déli decidiu usar suas ainda escassas doses para ajudar os países vizinhos, numa disputa por influência regional com a China.

O atraso da vacinação não implica somente a continuidade da crise na saúde, com mais casos de covid-19 e mais mortes. Tem também impacto econômico (quem se vacinar primeiro sairá antes da crise econômica) e político. Muitos líderes pelo mundo estão sendo criticados e se sentem ameaçados por não conseguiram a vacina. Assim, obtê-la virou uma prioridade de sobrevivência política. Quem tiver vacinas para fornecer pode se aproveitar desse momento de fragilidade dos governos.

A França percebeu essa ameaça e ontem o presidente Emmanuel Macron propôs que EUA e UE repassem 5% de suas vacinas a países pobres. Mas o governo Biden rejeitou a proposta e reiterou que sua prioridade por enquanto é vacinar americanos.

É provável que, vencida a luta interna contra a covid-19, os EUA venham em socorro do mundo. A UE também já acenou com doar vacinas compradas e não usadas. Mas isso dificilmente acontecerá antes do fim deste ano. Até lá, é possível que a “diplomacia da vacina” chinesa já tenha sido retribuído com favores políticos, econômicos, comerciais e militares pelos países ajudados. Isso é ampliação de influência.

Não está claro se a China conseguirá manter essa política por muito tempo. Se os EUA vacinarem toda a sua população até meados deste ano, como pretende Biden, poderão ganhar uma vantagem competitiva importante, pois as medidas de restrição adotadas por Pequim para conter a epidemia têm um custo econômico e social alto.

Mas as implicações de longo prazo desse esforço chinês podem ser muitos importantes. As imagens de soldados americanos libertando a Europa na Segunda Guerra e da queda do Muro de Berlim levaram ao período de maior expansão global da democracia. Nas últimas décadas tem havido retrocessos. A cena das vacinas chinesas chegando pode ajudar Pequim a difundir o seu modelo.

https://valor.globo.com/politica/coluna/e-se-a-china-vencer-a-guerra-das-vacinas.ghtml


A política soberana ANTI-SOBERANA do governo Bolsonaro na Amazônia - Jamil Chade (UOL)

 O governo brasileiro naquele seu estilo falsamente patrioteiro, bate no peito e diz que está defendendo a soberania do país contra intrusões estrangeiras na Amazônia, mas ao mesmo tempo renuncia completamente à soberania, pois diz que depende da ajuda externa – o que é uma espécie de chantagem – para preservar os recursos naturais.

Nada mais hipócrita, falso e fraudulento, achando que assim pode enganar os parceiros estrangeiros com sua retórica vazia.

Paulo Roberto de Almeida 

Técnicos de Biden não compram versão do Brasil sobre esforços na Amazônia

Jamil Chade

UOL | 19/2/2021, 4h

Técnicos da administração de Joe Biden adotaram cautela e não se deixaram convencer com a versão do Brasil de que o governo de Jair Bolsonaro está lidando de forma eficiente com o desmatamento no país. Nesta quarta-feira, o representante de Joe Biden para assuntos climáticos, John Kerry, manteve uma primeira reunião virtual com os ministros brasileiros Ernesto Araújo e Ricardo Salles.

No evento, de pouco mais de 40 minutos, o governo brasileiro insistiu em repetir seu mantra adotado nos últimos meses: o Brasil está disposto a cumprir suas metas ambientais e reduzir o desmatamento. Mas, para isso, precisa de recursos e de apoio internacional.

Em outras palavras: o Brasil fará sua parte se contar com dinheiro da Casa Branca e de outros atores estrangeiros.

Esse recado passado à equipe de Biden havia sido o mesmo que o Planalto usou nas reuniões do Fórum Econômico Mundial, neste ano. O governo brasileiro indicou que, diante da recessão e dos gastos com a pandemia, teria sérias dificuldades para manter o orçamento para a proteção ambiental. A solução, portanto, teria de passar por recursos externos.

Em janeiro, o vice-presidente Hamilton Mourão criticou no evento de Davos o fato de que a comunidade internacional, apesar da pressão, não estar ampliando financiamento para operações na Amazônia para lidar com o desmatamento e proteger a biodiversidade. Segundo ele, depois da pandemia, governos não terão recursos para destinar para a região e o setor privado terá de ampliar sua participação. "Apesar de o interesse internacional no status da Amazônia ter aumentado de forma importante, o mesmo não pode ser dito da cooperação financeira e técnica internacional", disse o vice-presidente. "Ficou abaixo as necessidades atuais", alertou.

O que causa estranheza entre os delegados estrangeiros é que o pedido por dinheiro tanto para Biden como para a comunidade internacional ocorre dois anos depois que o governo brasileiro, de forma unilateral, interrompeu o acordo que existia de financiamento com alemães e noruegueses.

Biden e o cheque de US$ 20 bilhões

No caso americano, Washington está comprometido em colocar recursos para ajudar o Brasil e um pacote poderia chegar a US$ 20 bilhões. Mas um entendimento sobre como os recursos entrarão e quais serão os critérios exigirá uma conversa detalhada entre técnicos, que promete ser frequente.

Na condição de anonimato, embaixadores e negociadores confirmaram à coluna que, apesar de o contato ter sido um passo importante na aproximação entre os dois países e uma sinalização positiva por parte dos americanos, a reunião serviu do lado americano para confirmar de que terão de cobrar Brasília por conta dos dados relacionados ao desmatamento e as ações do governo.

De acordo com fontes diplomáticas, a Casa Branca fez questão de dizer que não existe qualquer ameaça à soberania brasileira na Amazônia. Mas a equipe de Kerry não se deixou convencer pelos argumentos apresentados por Araújo e Salles sobre a situação na região e nem sobre o que o governo vem realizando para frear o desmatamento.

Em Washington, os argumentos foram considerados como "insuficientes", inclusive sobre as metas do Brasil para atingir seus compromissos no Acordo de Paris. No final do ano passado, a ONU não aceitou o pacote apresentado por Salles e deixou o Brasil de fora de uma cúpula marcada para determinar a ambição das metas de cada um dos países.

Um dos resultados da reunião foi o compromisso de estabelecer um diálogo técnico reforçado e praticamente semanal para tratar tanto do desmatamento, como do apoio que o governo americano poderá dar para os esforços brasileiros. Também ficou estabelecido que esse diálogo técnico também envolverá a questão do financiamento, um ponto defendido pelo Brasil. "Todos os temas estão sobre a mesa", admitiu um interlocutor no Itamaraty.

Serão nesses diálogos técnicos que os americanos pressionarão por transparência por parte do Brasil, além de garantias de que haverá um compromisso político.

No encontro, os EUA reforçaram o convite para que o Brasil participe do encontro Earth's Summit (Cúpula da Terra) proposto por Biden. Os americanos confirmaram que estão preparando um pacote para assumir metas ambiciosas de redução de CO2 e que estão promovendo um diálogo com os principais interlocutores na área ambiental, a fim de antecipar visões convergentes para garantir que a Conferência do Clima, em Glasgow em novembro de 2021, não termine em mais um impasse internacional.

Do lado brasileiro, há uma aceitação de que o tema ambiental estará no centro da agenda diplomática internacional e que não há como escapar da discussão. Mas a percepção é de que cabe também ao governo americano provar que sua adesão do Acordo de Paris será acompanhada por medidas efetivas. Na visão do governo Bolsonaro, recai aos países ricos a maior responsabilidade pelas mudanças climáticas.

Após o encontro, um comunicado discreto do Itamaraty sobre a reunião foi emitido, evitando entrar em detalhes sobre o tom a conversa. De acordo com a nota, "os Ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mantiveram reunião virtual com o enviado presidencial para o clima do governo dos EUA, John Kerry, na tarde de 17 de fevereiro".

"Na ocasião, foram examinadas possibilidades de cooperação e diálogo entre o Brasil e os EUA na área de mudança do clima e de combate ao desmatamento. Acordou-se aprofundar o diálogo bilateral nas áreas mencionadas, com processo estruturado em encontros frequentes, em busca de soluções sustentáveis e duradouras aos desafios climáticos comuns", completou.

A reunião ainda foi seguida por uma mensagem nas redes sociais por parte do chanceler brasileiro, indicando uma postura no mesmo sentido. "O diálogo e cooperação sobre meio ambiente e clima serão mais um elemento agregador na parceira Brasil-EUA que continuamos construindo", disse. Salles também foi às redes sociais para insistir sobre a cooperação que se iniciava com os EUA.

Mas, da parte do americano, o encontro não foi alvo imediato de comentários oficiais. Foi apenas na quinta-feira que Kerry, em suas redes sociais, reforçou a ideia de que Washington está comprometido em reconstruir a cooperação em temas climáticos.

"Lidar com a crise climática exige impactos grandes que apenas podem ser atingidos por parcerias globais", escreveu o americano. "Boa conversa ontem sobre cooperação climática, liderança do Brasil e crescimento econômico sustentável com Ernesto Araújo e Ricardo Salles", completou.

A ordem dentro da Casa Branca é a de sinalizar com incentivos ao Brasil no tema ambiental, antes de falar em sanções ou afastamento de posições. Numa espécie de crédito, Washington continuará a tratar o Brasil como um aliado e convidar o governo a suas iniciativas, como a cúpula do clima em abril.

Mas Washington saiu do encontro convencido de que esse aceno da Casa Branca terá de ser traduzido em ação por parte do governo em termos ambientais e uma capacidade de medir avanços concretos. Biden, que se elegeu em parte por conta de uma agenda ambientalista e de direitos humanos, está sendo pressionado por congressistas americanos, ativistas e uma ala mais progressista de seu partido a manter uma postura dura em relação ao governo Bolsonaro.

Durante a campanha eleitoral nos EUA, Biden chegou a criticar a destruição da floresta brasileira e ensaiou uma ameaça. Na ocasião, Bolsonaro criticou a postura de Biden. Mais recentemente, no pacote ambiental do novo presidente americano, mais uma vez a proteção da Amazônia faz parte dos planos. Mas, pelo menos por enquanto, com gestos de colaboração.

Já Kerry, em 2020, usou uma premiação à líder indígena Alessandra Korap, da tribo Munduruku, para chamar a atenção sobre a situação da floresta. Para ele, os Munduruku resistiram "ao avanço constante, violento, ilegal e às vezes patrocinado pelo estado por madeireiros e mineiros para explorar suas terras".

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/02/19/tecnicos-de-biden-nao-compram-versao-do-brasil-sobre-esforcos-na-amazonia.htm

Governo Bolsonaro diz que reduzirá desmatamento na Amazônia apenas se Biden pagar

Em primeira reunião com Estados Unidos sobre o tema, Brasil disse que precisa de verba estrangeira para se comprometer com metas de preservação

Revista Fórum | 19/2/2021, 6h44

 

O governo Bolsonaro realizou sua primeira reunião com o governo dos Estados Unidos para tratar questões sobre o meio ambiente. Nesse encontro, autoridades brasileiras condicionaram a proteção ambiental no país a um eventual incentivo financeiro por parte do país norte-americano.

De acordo com reportagem do jornal Estado de S.Paulo, o argumento utilizado pelo governo Bolsonaro foi que, sem recursos estrangeiros, não é possível se comprometer com acordos internacionais de preservação.

Com isso, segundo uma fonte do governo brasileiro, o espírito da conversa entre os dois países foi o do “a gente faz, mas vocês vão ter de pagar”.

Participaram do encontro os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o enviado especial do Clima do governo americano, John Kerry.

Na conversa, Kerry teria dito reconhecer “a legitimidade e a soberania do Brasil para cuidar de seus temas” e que a gestão Biden não tem “nenhuma resistência em trabalhar com o governo brasileiro”.

Durante a campanha eleitoral, Joe Biden prometeu diversas vezes aplicar sanções econômicas ao Brasil caso o país não mudasse sua política ambiental e continuasse permitindo a devastação da Amazônia.

https://revistaforum.com.br/global/governo-bolsonaro-diz-que-reduzira-desmatamento-na-amazonia-apenas-se-biden-pagar/

A diplomacia brasileira vive o seu PIOR momento - Editorial Estadão (19/02/2021)

 ‘É parte da cura o desejo de ser curado’

É muito triste constatar que a diplomacia brasileira vive o seu pior momento

Editorial Estadão | 19/02/2021, 3h

 

Sábias palavras do filósofo romano Sêneca, o Jovem, ainda no distante século 1.º. Pena que essa antiga máxima não tenha sido adotada pelo governo brasileiro ao tratar a pandemia de covid-19. Ao contrário, assumindo explícito negacionismo o presidente Jair Bolsonaro só colecionou atos contrários ao fundamental “desejo de ser curado”: o rebaixamento de uma doença nova, desconhecida e por vezes mortal a “gripezinha”, a demissão dos ministros Mandetta e Teich, culminando com a convocação de um militar especializado em logística para a pasta da Saúde. Apesar de sua “expertise”, o planejamento do atual ministro mostrou-se caótico e obscurantista: recomendou medicamentos não apropriados e foi negligente com a necessária pressa na compra de vacinas, sobretudo pelas interferências do presidente.

Não bastasse, foi de enorme gravidade o vergonhoso papel desempenhado pelo Brasil na defesa de seus próprios interesses e de potenciais aliados em causas comuns na cena internacional. Em outubro, Índia e África do Sul propuseram à Organização Mundial do Comércio (OMC) a liberação do licenciamento compulsório e temporário de patentes com vista às pesquisas de vacinas e medicamentos de combate à epidemia. O Brasil votou contra a proposta dos parceiros do Brics, contrariando uma tradição de pioneirismo nesse assunto nas últimas décadas, preferindo seguir a orientação de Donald Trump. Dado o apoio chinês e russo à proposta de liberação, o Brasil ficou totalmente isolado na entidade que agrega as potências emergentes.

A ideia de licença compulsória obrigatória de patentes numa circunstância grave que a justifique não é modismo atual. Essa possibilidade de suspensão temporária de um direito de propriedade intelectual diante de um motivo de grande interesse público foi prevista na legislação britânica contida no Estatuto dos Monopólios do Reino Unido, votado no Parlamento em 1624. Posteriormente o tema foi tratado em acordo internacional firmado em Paris em 1883, quando foram estabelecidas regras gerais de licença contra o exercício abusivo de direitos sobre patentes. Só em 1967 foram estabelecidas regras específicas, num congresso em Estocolmo.

Por fim, em 1994 foi firmado na OMC o Trade-Related Aspects in Intelectual Property Rights (Trips), ou direitos sobre propriedade intelectual relacionados ao comércio. O Trips prevê a quebra de patentes em situações emergenciais, mas antes deve ser feita uma tentativa de negociação entre governo e empresa detentora. Caso não cheguem a acordo, está prevista a liberação temporária da patente e uma compensação em royalties ao proprietário intelectual.

Rússia e China não assinaram o tratado. Índia firmou, mas conseguiu exercer por dez anos uma carência de suspensão temporária, durante a qual montou sua próspera indústria farmacêutica atual.

Já o Brasil não exigiu a carência e perdeu o bonde industrial que a Índia pegou. Mas fez insistente pressão para enfrentar as patentes dos medicamentos contra a aids, conseguindo grandes conquistas com os genéricos, liberações e preços junto aos grandes laboratórios detentores da propriedade intelectual. Essa atitude constante brasileira foi elogiada e admirada pelo mundo todo, tendo a Índia como apoiadora de primeira hora nessa direção. Dentro desse contexto histórico, foi grande a decepção na África do Sul e na Índia com a posição brasileira em plena pandemia, alinhada com os grandes laboratórios norte-americanos e europeus na reunião da OMC. Até manifestações de rua houve nesses países criticando o Brasil. Embora derrotada pelas pressões americanas e europeias, a proposta foi apoiada por mais de cem países e cerca de 400 entidades internacionais.

É realmente muito triste constatar que a diplomacia brasileira vive erraticamente seu pior momento em sua respeitada história. Herdeira da eficiente diplomacia portuguesa do século 18, conduzida por brilhantes diplomatas como dom Luís da Cunha e Alexandre de Gusmão e continuada no século 19 pelos não menos brilhantes visconde do Rio Branco e seu filho, o barão. Este último e Joaquim Nabuco adentrariam o século 20 com um trabalho decisivo na discussão e consolidação de nossas fronteiras. E no decorrer do século o Itamaraty firmou-se no cenário internacional como exemplo de boas práticas diplomáticas para todo o mundo, despertando admiração e respeito. Prestígio confirmado pela atuação de Oswaldo Aranha no comando da Assembleia-Geral da ONU em 1947/48.

O mais surpreendente nessa guinada ideológica inconsequente da nossa diplomacia é que ela contraria até a política externa praticada pelo regime militar a partir de março de 1974, no governo Ernesto Geisel. O então chanceler Antônio Azeredo da Silveira, notabilizado como Silveirinha, anunciou a nova postura diplomática do “pragmatismo responsável”, em oposição ao anterior alinhamento automático aos Estados Unidos. Ironicamente, o Brasil adotava o mesmo pragmatismo comercial praticado pelos Estados Unidos em relação aos seus interesses. Ou como dizia John Foster Dulles, experiente diplomata conservador norte-americano dos anos 1950, “não existe amizade entre os países, apenas interesses comuns”.

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,e-parte-da-cura-o-desejo-de-ser-curado,70003620338


Bolsonaro é uma das maiores ameaças aos direitos humanos na América Latina - Jamil Chade (UOL)

 Bolsonaro é uma das maiores ameaças aos direitos humanos na América Latina

Jamil Chade

UOL | 18/2/2021, 18h25

O presidente Jair Bolsonaro representa uma das "maiores ameaças aos direitos humanos na América Latina". Mas a sociedade brasileira está dando sua resposta e precisa receber créditos por isso. A análise é do americano Kenneth Roth, diretor-executivo da entidade Human Rights Watch, ex-procurador federal dos EUA e uma das vozes mais ativas no campo dos direitos humanos no mundo.

Em resposta à coluna, o líder de uma das principais organizações no campo dos direitos humanos deixa claro que a situação brasileira preocupa. "Vemos uma séria deterioração no campo dos direitos no Brasil", disse. "E vemos isso tanto com Bolsonaro dando luz verde para ataques contra defensores do meio ambiente, abrindo caminho para as queimadas na Amazônia, vemos na deferência que ele concede à polícia que atira em suspeitos nas favelas, vemos em seus ataques contra a sociedade civil", explicou.

Seus comentários ocorrem às vésperas da primeira reunião do ano do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a partir de segunda-feira. Para o evento, o Brasil será representado pelo chanceler Ernesto Araújo e pela ministra de Família, Mulheres e Direitos Humanos, Damares Alves.

De acordo com o Itamaraty, em sua intervenção, Araújo "tratará dos persistentes desafios às liberdades fundamentais e aos direitos humanos no mundo hoje". Já Damares indicou que irá relatar o que o governo tem feito em sua resposta à pandemia da covid-19.

A reunião, porém, será marcado por um tsunami de denúncias contra o Brasil por parte de governos estrangeiros, relatores da ONU e dezenas de ongs.

Roth acredita que o Brasil hoje pode ser qualificado como uma "democracia que tem um líder autoritário que tem sido desastroso para tudo, desde pandemia à proteção de pessoas". "Mas trata-se de uma sociedade que está conduzindo uma autocorreção importante", defendeu.

"Ainda que ele (Bolsonaro) seja um dos maiores ameaças aos direitos humanos na América Latona, quero dar crédito às pessoas e as instituições democráticas por lutar de forma tão vigorosa até agora", disse Roth.

Roth acredita que existe um lado positivo diante da situação brasileira. "A boa notícia é que o Brasil é uma democracia muito forte e está lutando contra isso de diversas formas", disse. "Vemos limites sendo colocados contra a Bolsonaro no Congresso, pelas cortes, pela imprensa, pela pressão pública", disse.

Credibilidade do Grupo de Lima

Apesar da situação do Brasil, ele vê como um aspecto positivo no campo dos direitos humanos o fato de que, pela primeira vez em décadas, os governos da região estão dispostos a enfrentar a situação de repressores na América Latina. Em específico, ele cita o fato de que o Grupo de Lima tenha surgido para colocar pressão sobre a Venezuela e Nicaragua.

"O que foi revolucionário é que, pela primeira vez, latino-americanos assumiram o papel de criticar um governo latino-americano. Tradicionalmente, isso era algo de Washington e visto como imperialista". afirmou.

"Isso é algo novo. Na verdade, isso ocorreu com Trump quando ficou claro que ele não seria um ator com credibilidade para falar de direitos humanos na América Latina", disse.

Mas, para Roth, o teste de credibilidade do Grupo de Lima será se esses governos forem capazes de também lidar com outros problemas de direitos humanos na região. "Venezuela e Nicaragua não são os únicos violadores. Será um teste da democracia da América Latina lidar com os outros problemas da região, o que inclui lidar com Cuba. Mas também lidar com grandes países como Brasil e México", completou.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/02/18/bolsonaro-e-uma-das-maiores-ameacas-aos-direitos-humanos-na-america-latina.htm

O BOLSOCAOS do Bolso-desgoverno, também na área tributária e na interferência na maior empresa estatal de capital aberto

 O sistema tributário brasileiro é IRREFORMÁVEL, não pela sua estrutura, em si, ainda que esta seja prolixa, absurda, irracional e antieconômica. Também por causa de um sistema "federativo" deformado, aliás, antifederativo. Ou seja, qualquer tentativa de reforma, no sentido que pretendem os produtores primários de riqueza – empresários e trabalhadores –, de redução da carga fiscal, se torna impossível, em face das demandas dos entes sub-federados de aumento de suas receitas, ou seja, mais impostos, ou redistribuição para eles de receitas da União, de fato sobre-dimensionadas pelo uso oportunista, e egoísta, das contribuições, exclusivas do governo central.

Sobre tudo isso, ainda vem o CAOS criado pelo degenerado dirigente que, sem entender NADA DE NADA, ainda se mete a fazer a "sua" reforma tributária, para contentar bases espúrias, ao arrepio do processo legislativo, da racionalidade, do simples ordenamento constitucional que regula o setor.
O atual governo é um reflexo da INCOMPETÊNCIA do seu chefe, que criou um BOLSOCAOS!
Paulo Roberto de Almeida


Notícia do dia - Após um novo reajuste de combustíveis pela Petrobrás, o presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quinta-feira, 18, durante live semanal no Facebook, que a partir de 1.° de março não haverá qualquer imposto federal sobre o preço do óleo diesel. Bolsonaro considerou o aumento anunciado pela Petrobrás, o quarto do ano, “fora da curva” e “excessivo”. Ele reforçou que não pode interferir na estatal, mas ressaltou que a medida “vai ter consequência”. Os impostos federais que incidem sobre o diesel são PIS, Cofins e Cide. Com o anúncio da estatal, óleo diesel vai ficar 15,2% mais caro a partir de hoje, e a gasolina, 10,2%. Em 2021, diesel e a gasolina já acumulam alta de 27,5% e 34,8%, respectivamente. O presidente sugeriu, sem entrar em detalhes, que “alguma coisa” acontecerá na petrolífera nos próximos dias. “Não posso interferir e nem iria interferir (na empresa). Se bem que alguma coisa vai acontecer na Petrobrás nos próximos dias, tem de mudar alguma coisa”, disse. A Petrobrás afirmou ontem que não comentaria as declarações sobre a empresa e seu presidente, Roberto Castello Branco. A redução do PIS/Cofins no óleo diesel anunciada por Bolsonaro atende a uma demanda de caminhoneiros, base de apoio do presidente que tem pressionado o governo por causa do aumento do combustível. Em ameaça indireta a Castello Branco, o presidente citou que o comandante da estatal chegou a dizer, há alguns dias, que não tinha “nada a ver com os caminhoneiros”.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Minhas críticas à diplomacia bolsolavista SEIS MESES ANTES de sua implementação - Paulo Roberto de Almeida

 Reproduzo o que escrevi numa recente postagem no Facebook: 

Antes mesmo de começar o desgoverno do capitão, eu antecipei que a política externa a ter início em janeiro de 2019 seria um desastre, isso com base unicamente em cinco medíocres parágrafos esquizofrênicos contidos no seu programa de governo, liberado em agosto de 2018. Não só antecipei a ruindade que seria, como publiquei minhas críticas em meu blog Diplomatizzando. Eu só pequei por ingenuidade, achando que os estronchos iriam se corrigir uma vez sentados nas cadeiras do poder. Que ilusão! Não se corrigiram e conseguiram ser MUITO PIORES do que o imaginado, mas MUUUIIITO PIORES.

Minhas críticas, formuladas imediatamente após conhecer a porcaria de programa do candidato tresloucado na parte da política externa, foram "externadas" neste trabalho:
3321. “Um programa insuficiente de política externa: comentários pessoais”, Brasília, 15-16 agosto 2018, 5 p. Comentários à parte de política externa do programa do candidato Bolsonaro. 
Divulgado no blog Diplomatizzando (15/08/2018; link:
e no Facebook: 

China, a nova globalização e o Brasil pasmado - Diego Paugasso (Bonifácio)

 O autor é um especialista na temática do pós-Guerra Fria, com os vieses ideológicos que são típicos na academia. Importante são as informações objetivas sobre os avanços materiais e os progressos econômicos e sociais realizados pela China nas últimas décadas. 

Descarto completamente as considerações iniciais sobre a "imposição de políticas neoliberais" pelos EUA a outros países, "fragilizando suas estruturas industriais", pois isso não faz nenhum sentido, sendo apenas o reflexo dessa animosidade ideológica contra um inexistente "neoliberalismo", típico na retórica de acadêmicos progressistas. Descarto igualmente as considerações finais sobre a nova Guerra Fria e suas consequências geopolíticas, pois são meras especulações de quem se dedica ao assunto, mas atua nessa questão como astrólogo amador.

Como sempre afirmei, meu blog serve para debates inteligentes a partir de coisas relevantes, e esta matéria preenche vários dos meus requisitos, mas me preservo quanto ao direito de formular observações e comentários iniciais ao que posto.

Paulo Roberto de Almeida 

China, a nova globalização e o Brasil pasmado

Nova potência ascendente, China aposta em novos arranjos geopolíticos, fora dos domínios dos EUA e em tecnologias transformadoras. Momento é histórico, similar ao declínio dos impérios europeus, mas diplomacia brasileira fecha os olhos

Em esforço para compreender em profundidade a China, Outras Palavras publica série de textos do cientista político e geógrafo brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos. Uma entrevista com o autor pode ser vista aqui.


O artigo a seguir foi publicado originalmente no site Bonifácio.
Leia todos os artigos da série


Para fechar a série, abordaremos o panorama recente da história das relações internacionais, de forma a iluminar os atuais descaminhos da ordem global. Inicialmente, é preciso destacar que os EUA conseguiram consolidar sua hegemonia após as Guerras Mundiais, a partir da conformação das estruturas de poder vigentes ainda hoje no âmbito multilateral. E, apesar da bipolaridade e rivalidade com a URSS no período da Guerra Fria, os interesses de Washington triunfaram em escala internacional.

Com o colapso do campo soviético, abriram-se margens para a ascensão de narrativas marcadas mais por desejos do que pela objetividade analítica. Tanto os discursos do ‘fim da história’ e do mundo unipolar ignoravam tendências à multipolarização; quanto aqueles que anunciavam o recorrente declínio dos EUA – desde a década de 1970 – ignoravam seu persistente poder econômico e geopolítico.

Dessa forma, o desaparecimento da URSS permitiu a Washington potencializar seus interesses em escala global, ao menos num primeiro momento. De um lado, reafirmou a imposição das políticas neoliberais a diversos desses polos ascendentes, cujo resultado foi a fragilização de parte de seus parques industriais, o estreitamento dos direitos sociais, a eclosão de recorrentes crises financeiras e a potencialização das instabilidades político-institucional. De outro, redefiniu os parâmetros de suas escaladas intervencionistas a partir da agenda de combate ao terrorismo e ao fundamentalismo e/ou sob pretexto de defesa da democracia, do meio ambiente, do livre mercado e dos direitos humanos. Sem falar nas contumazes instrumentalizações de embargos e sanções econômicas, intervenções militares “humanitárias” ou políticas de regime change e revoluções coloridas – novas formas para as velhas práticas de covert actions e golpes de Estado.

Em 2018, a China ultrapassou os Estados Unidos e tornou-se o primeiro país do mundo em número de patentes registradas.

O que os entusiastas da unipolaridade não esperavam era o irrefreável e avassalador processo de desenvolvimento chinês, com importantes desdobramentos geoeconômicos e geopolíticos. Embora o PIB per capita estadunidense ainda seja bastante superior ao chinês, em 2050, segundo a PwC, a China terá nada menos do que 20% do PIB mundial medido em PPP, ante 12% dos EUA. Em termos de produção manufatureira, a China já responde por 28% da manufatura global, tão grande quanto a dos EUA, do Japão e da Alemanha juntos. Em função do peso da sua economia, a China é a principal parceira comercial de 130 países do mundo – o que suscita progressivo efeito gravitacional.

Em 2019, na condição de segunda maior economia do mundo em PIB nominal, a China (U$S 14,1 trilhões) já correspondia a quase Japão, Alemanha, Índia e Reino Unido juntos, com somatório de U$S 14,7 trilhões. Graças ao seu desempenho, a economia chinesa tem contribuído com cerca de 25 a 35% do crescimento mundial na última década (o dobro da participação dos EUA). A China tem 40% do mercado global de contêineres (ante 18% dos EUA), e 7 dos 10 principais portos marítimos mundiais (o maior dos EUA é o de Los Angeles, o 17º). Alguns dados são ainda mais surpreendentes: a China usou mais cimento entre 2011 e 2013 do que os EUA em todo o século XX. Em 2019, a China produziu 996,3 milhões de toneladas de aço bruto, enquanto os EUA produziram 87,9 milhões. O mercado chinês tem ainda uma classe média de cerca de 350 milhões de pessoas (maior que a dos EUA desde 2015), em franco processo de expansão.

e-commerce chinês deste ano detém números quase quatro vezes maiores do que o estadunidense. Também neste ano, a China está chegando à marca de 900 milhões de usuários de Internet. E são mais de 35 mil km de trens de alta velocidade cortando o país, além de uma notável modernização infraestrutural. Em 2018, a China superou os EUA em número de patentes registradas, e já forma anualmente cerca de quatro vezes mais profissionais nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática do que seu rival. A trajetória explicita os ritmos e volumes distintos e superiores com os quais a China vem liderando outros tantos segmentos – como destacamos no artigo sobre inovações em energias sustentáveis.

Assim, a China tem atuado para reformar e/ou influenciar as estruturas hegemônicas introduzidas, construídas e potencializadas historicamente sob a liderança de Washington, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). E, simultaneamente, Pequim tem promovido novos arranjos econômicos multilaterais, tais como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB); o Sistema de Pagamento Internacional da China, alternativo ao Swift; o China UnionPay, ao invés das bandeiras Visa e Master, e o Centro de Avaliação de Crédito Universal, em detrimento a Moodys ou Standard & Poors; áreas comerciais como a Parceria Regional Abrangente, entre outras. Nesse mesmo sentido, o governo chinês move-se na direção da concertação diplomática, equalizando instrumentos tais como os BRICS, a Organização da Cooperação de Xangai (OCX), o Fórum de Bao para a Ásia e, sobretudo, a Nova Rota da Seda – a mais acabada demonstração do que chamamos de projeto chinês de globalização, alternativo ao paradigma do Consenso de Washington. 

Voltando à história. Mais do que refletir a existência de um mundo bipolar, a Guerra Fria foi também o período de consolidação da hegemonia internacional estadunidense, sob a égide de uma estratégia de contenção ao polo rival socialista, anti-sistêmico. Cada vez mais, os noticiários e analistas ressuscitam o termo, mencionando a existência de uma Nova Guerra Fria. São sabidas as diferenças e semelhanças entre um e outro contexto. É nítido que a URSS e os EUA não detinham a sinergia econômico-comercial bilateral que têm hoje China e EUA; a competição técnico-produtiva não era tão aguda; os blocos possuíam maior coesão político-ideológica (não obstante as fraturas existentes em ambos, como ilustram os casos das relações da URSS com a Iugoslávia, a Albânia e a China). Por outro lado, as semelhanças também são importantes: as duas superpotências, apesar das assimetrias, eram dirigidas por forças políticas que reivindicavam, antagonicamente, o capitalismo e o socialismo; e as disputas entre os dois pólos eram travadas de forma mais clara em terceiros cenários.

Importa notar, pois, que o recrudescimento da retórica anti-chinesa – acirrada com o recente discurso de Mike Pompeo sobre A China Comunista e o Futuro do Mundo Livre – ajuda a iluminar a direção das contradições que se desenham. Ele instou “uma luta entre o mundo livre e a tirania”, e acusou o Partido Comunista Chinês de ser um “opressor nacional” e um “agente internacional desonesto”. Ora, são translúcidos certos elementos de continuidade: a China é, indiferentemente do debate acerca do quão anti-sistêmico é seu modelo, um país desafiante da hegemonia estadunidense, e comandado por um Partido Comunista de tradições marxistas-leninistas. Nesse sentido, os EUA replicam a lógica de contenção como forma de coesionar seus aliados e evitar a expansão do rival. Em suma, a Guerra Comercial, o apoio aos movimentos separatistas na China, o cerco militar, etc. fazem parte de um conjunto mais amplo de ações que obedecem a essa coerência sistêmica.   

É auto-evidente, contudo, que a história não se replica. Desde o final da década de 1960, a China abandonou a antiga política de fomento às revoluções socialistas em terceiros países, ainda que mantenha importantes laços ideológicos com os Estados nacionais onde o socialismo orienta as políticas governamentais. A ênfase da inserção internacional chinesa recai exatamente no pragmatismo, no respeito ao princípio da não-intervenção em assuntos domésticos de outras nações e, mais contemporaneamente, na busca da promoção das chamadas relações win-win. Afinal, diferentemente da URSS, Pequim tem conseguido, como já demonstrado, fazer frente aos competidores nas searas científico-tecnológica e econômico-comercial. Por paradoxal que pareça, a instrumentalização de conflitos internos de terceiros países, as ações voltadas à mudança de regimes políticos e a obstrução das ferramentas de concertação política multilaterais partem exatamente dos EUA, visando impedir o fortalecimento do gigante asiático.

Em suma, o fato é que se configura um período de transição sistêmica, prenhe de contradições. Para além da competição sino-estadunidense, está em curso uma profunda reorganização produtivo-tecnológica e civilizacional, com certos movimentos disruptivos precipitados pelo inesperado panorama da pandemia. E é nesse cenário complexo em que devemos pensar o papel a ser cumprido pelo Brasil.

Inicialmente, algumas lições são importantes: no começo do século XX, o Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, percebeu o deslocamento da hegemonia global dos braços da Grã-Bretanha para os dos EUA, e por isso estabeleceu a chamada aliança não-escrita com Washington, crucial para a potencialização de nossa autonomia e interesses nacionais à época. Já durante o ciclo desenvolvimentista, entre a Revolução de 1930 e a década de 1980, o Brasil adentrou seu mais notável período de modernização, sustentando um paradigma de inserção internacional sem alinhamento automático, apesar da interação privilegiada com os EUA.

Na atualidade, contudo, não se pode negar a condição de potência ascendente da China, tampouco o fato de que o principal eixo da economia mundial se desloca, progressivamente, para a Ásia Oriental. Ora, se foi Geisel, no ápice da bipolaridade, quem reatou com Pequim, colocando os interesses nacionais acima das preferências ideológicas, cabe ao Brasil de hoje se movimentar de forma a tirar o melhor proveito da competição sino-estadunidense.

O estabelecimento de um alinhamento automático com a potência declinante e a internalização de polarizações de uma Nova Guerra Fria contribuem apenas para dividir artificialmente o país e turvar a necessária concretização dos interesses nacionais de longo alcance. Resta, pois, a formatação de uma política externa compatível com as demandas, capacidades e responsabilidades de um país da envergadura do Brasil, moldando seus rumos em prol do desenvolvimento e da soberania nacionais. E sem compreendermos as nuances da atual encruzilhada sistêmica e o papel da China no mundo, dificilmente alcançaremos tal empreendimento.

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