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domingo, 20 de novembro de 2011

Mestres fundadores da sociologia: Marx, Weber e Durkheim - Paulo Roberto de Almeida


Antes de me especializar em relações internacionais e política externa do Brasil, eu era professor de Sociologia Política (no Instituto Rio Branco, a academia diplomática do Itamaraty, e no mestrado em Sociologia da UnB), tendo produzido alguns textos nunca publicados, como o que segue aqui abaixo, datado de 9 de maio de 2004.
Paulo Roberto de Almeida 

SOCIOLOGIA
Origens, contexto histórico, político e social
Mestres fundadores: Marx, Weber e Durkheim

Sumário:
1. Origens da disciplina: contexto histórico, político e social de seu surgimento
2. Um reformista social: Auguste Comte
3. Um reformista radical com ares de revolucionário: Karl Marx
4. Um pensador sistemático: Weber
5. Um funcionalista prático: Durkheim
6. A sociologia no Brasil: os mestres da escola paulista
Bibliografia

1. Origens da disciplina: contexto histórico, político e social de seu surgimento
            Como várias outras disciplinas modernas das ciências sociais aplicadas (economia, política, direito positivo, por exemplo), a sociologia nasce no contexto da revolução industrial na Europa ocidental, quando a reflexão sobre as organizações humanas, inclusive num sentido comparativo entre as sociedades civilizadas – em contraposição à comparação entre estas e as sociedades ditas primitivas, que redundará na antropologia –, começa a ser sistematizada pelos primeiros filósofos sociais, ou “ideólogos”, como foram chamados alguns deles, na passagem do Iluminismo para a sociedade capitalista, movimento aliás coincidente com a Revolução francesa. Alguns desses pensadores iluministas – entre eles Rousseau e Condorcet, por exemplo – colocam as bases de um discurso não mais simplesmente filosófico, ou apenas histórico, mas de natureza quase sociográfica sobre as formas de organização social e as instituições criadas pelos homens para regular as relações entre eles. O contratualismo inglês ou o de Rousseau, o progresso das luzes na visão desses ideólogos da sociedade civil e a evolução dos meios materiais (tecnologia), assim como as funções do Estado e os modos pelos quais os homens entram em relações de trabalho ou se organizam politicamente constituem alguns dos diversos elementos conceituais que integrarão, já no século XIX, essa nova disciplina que seria batizada pelo pensador francês Augusto Comte de “sociologia”.
            Antes dele, alguns “estatísticos” tinham começado a coletar dados sobre a vida dos homens em sociedade: nascimento, morte, trabalho, criminalidade, ocupações profissionais etc. Outros, preocupados com a amplitude do sofrimento humano – naturalmente existente ou provocado pelos próprios homens – e as desigualdades existentes (algumas aprofundados nessa mesma época), se dedicaram a preconizar grandes projetos de reforma das sociedades tradicionais, ou em transição para o sistema fabril capitalista, em função de projetos algo utópicos que também se situam nas origens das doutrinas socialistas. Entre estes se destaca o aristocrata francês Saint-Simon que, com base nesse tipo de valor ideal, passa a investigar as causas da organização social de sua época, com vistas a preconizar melhorias graduais no funcionamento da sociedade.
Desse tronco derivam as diferentes doutrinas socialistas e, no plano do método, as formas de interpretar os problemas sociais e eventuais formas de superá-los.
            Essa é uma era das revoluções, como intitulou Eric Hobsbawm seu estudo de história cobrindo essa passagem da antiga sociedade aristocrática e absolutista para uma outra na qual mais classes passam a ter acesso ao sistema político, em primeiro lugar a burguesia, mais adiante o proletariado. Mas, segundo ele mesmo, a era revolucionária deu lugar à era do capital, tão bem estudada por Karl Marx e seus discípulos, que faziam sociologia ainda que não de forma deliberada ou sistemática. Um desses seguidores, Herbert Marcuse, já no século XX, considerou que o surgimento da teoria social se faz sob o signo da negatividade, isto é, o fato de tentar superar o conjunto de contradições sociais negando o conjunto de relações sociais existentes em favor de formas superiores de organização social, o que revela a contribuição do hegelianismo para a configuração doutrinal dessa disciplina.
            Uma análise mais sistemática desses problemas sociais será proposta tanto por pensadores franceses, como o já citado Comte, como ingleses, entre os quais se destaca Herbert Spencer, adepto do evolucionismo e da seleção natural à la Darwin. É nessa época que a sociologia deixa de lado os aspectos morais e filosóficos para penetrar em um campo mais “científico”, com estudos quantitativos sobre as sociedades humanas. Mas a influência da “biologia social” sobre essa disciplina ainda é muito forte, pois a sociedade é pensada como um corpo orgânico, cujos “membros” (os homens) precisam cumprir certas funções para o maior benefício do todo. A intenção seria o de construir a “paz social”, algo violentamente negado por Marx e seus seguidores, que vêem no princípio da luta de classes o motor da história.
Nessa tradição, a sociologia aparece de fato como a ciência da luta de classes, mas os psicólogos sociais, sobretudo franceses (como Gustave Le Bon), buscam corrigir essa visão pela análise dos comportamentos humanos e das formas de sociabilidade. A fusão desses diferentes ramos das ciências sociais, inclusive o da história e o da economia, irá resultar numa das mais importantes obras já efetuados sobre o pensamento e o método da sociologia: a do pensador alemão Max Weber. Vindo da tradição da escola histórica alemã, mas também influenciado pelo marxismo (que ele procurará contestar), Weber deixa um importante legado que será recuperado por praticamente todos os sociológos do século XX,a começar pelos funcionalistas e pelos comparatistas. Com Weber a sociologia emerge, realmente, como disciplina completa e dotada de métodos rigorosos, para servir, não mais uma causa política – reformista ou revolucionária, como tinha sido o caso até então – mas um objetivo de análise científica da sociedade.

2. Um reformista social: Auguste Comte
            Auguste Comte se vangloriava de ter libertado a análise da sociedade de suas origens filosóficas, dando-lhe status de ciência, ou de “filosofia positiva”, como ele preferia dizer. Ele vê essa passagem da religião para a metafísica e daí para a ciência positiva como um movimento ascensional, em direção de mais ordem e mais progresso para o homem em sociedade. Ele também é um reformista social, mas pretende que seu trabalho corresponde à verdadeira essência da sociedade moderna, enfim liberta das névoas do misticismo feudal e da metafísica dos antigos.
            Comte era um verdadeiro continuador de Saint-Simon, pois que também via na tecnocracia e na revolução industrial os sinais precursores de uma nova sociedade. Ele foi, aliás, o inventor da palavra “sociologie”, que ele descrevia como o estudo científico da sociedade. Em sua época, estavam na moda os estudos administrativos, as “enquêtes” sociais, sobre as doenças humanas, as causas da mortalidade, a vida dos trabalhadores, as raizes da criminalidade e muitos outros problemas “sociais”, que eram medidos, comparados, colocados em progressão. Segundo Raymond Aron (Etapas do Pensamento Sociológico), no entanto, estatísticos e “investigadores sociais” como Quetelet e Le Play fizeram mais pelos progressos práticos da sociologia do que as elocubrações algo “metafísicas” de Comte. Ele próprio fazia pouco uso dessas novos métodos de investigação social, preferindo fundar a sua doutrina com roupagens prescritivas, mais até do que simplesmente interpretativas. Em outros termos, Comte pretendia estar no centro não apenas de uma nova maneira de interpretar a sociedade, como igualmente de transformá-la em seus próprios fundamentos.
            A despeito de seus esforços – que no final de seus dias mais pareciam aos do fundador de uma nova religião do que de uma nova ciência – Comte não fez muitos discípulos, a não ser na própria França e em alguns países latinos, entre os quais o Brasil. O movimento republicano brasileiro, em suas várias vertentes, mas sobretudo no castilhismo gaúcho, herdou várias lições do pai fundador da sociologia, a começar pelo binômio que foi entronizado na nova bandeira, “ordem e progresso”.

3. Um reformista radical com ares de revolucionário: Karl Marx
            Talvez Marx não tivesse plena consciência de “fazer sociologia”, mas toda sua obra, ainda na interpretação de vários mestres, como Raymond Aron, é basicamente uma sociologia convertida em princípio dinâmico da história. Apoiando-se na tradição filosófica alemã – sobretudo na dialética de Hegel – e nos historiadores franceses, Marx concebia a história em termos de luta de classes e de revolução. Para Marx, as lutas de classes eram o verdadeiro “motor da história”, como ele escreveu nos primeiros textos filosóficos e no Manifesto do Partido Comunista, em colaboração com seu amigo de toda a vida, Friedrich Engels.
            Marx, entretanto, subordina a política, isto é, a luta pela tomada do poder, à economia, já que ele atribuia as lutas de classes à situação de dominação provocada pelas forças econômicas predominantes na sociedade. A política seria uma espécie de superestrutura jurídica, ao passo que a infra-estrutura material era formada pelas forças materiais, das quais as mais importantes eram as forças produtivas, isto é, econômicas. Segundo o progresso destas, ocorria uma mudança nas relações de produção, ou seja, entre os principais agentes econômicos dominantes em casa época (senhor e escravo, senhor feudal e servo, burgueses e proletários). Em certos trechos de sua obra, o Estado moderno aparece como um mero apêndice do capital, em outros textos pode existir uma certa independência do político (como na análise do bonapartismo).
            Toda a obra de Marx está fortemente impregnada de filosofia da história e de sociologia, mesmo se não de forma explícita. Em todo caso, todo o aparelho conceitual da sociologia contemporânea já está presente na obra de Marx e nela tem raízes indisfarçáveis. Noções como aparelho de Estado, luta de classes, dominação política, exploração econômica, infra- e superestrutura e muitas outras, forjadas ou transformadas por Marx, fazem parte do instrumental analítico da sociologia contemporânea e foram consagradas até no vocabulário jornalístico. Mais até do que no trabalho propriamente intelectual, noções como as de “revolução” e de “luta de classes” penetraram nos movimentos sociais, sindicais e políticos e marcaram profundamente o caráter de nossa época, pelo menos até uma data relativamente recente. Mesmo o trabalho de sociólogos não comprometidos com a chamada “ruptura” com a sociedade de classes, como podem ter sido as atividades didáticas e de escritores como Max Weber e Raymond Aron, foi profundamente marcado pelas propostas políticas e pelos sistemas interpretativos oferecidos por Marx ao longo de sua obra. Esses autores, entre muitos outros, construiram suas obras respectivas num diálogo à distância, e até num certo confronto, talvez involuntário, com a sombra gigantesca de Marx.
            Esse reconhecimento público em torno da grandiosidade da obra de Marx não é sem justificativa, por mais que se possa fazer críticas – que foram feitas até em sua época, por economistas como John Stuart Mill e, pouco depois, por Vilfredo Pareto – às colocações marxistas a respeito do poder político, da violência como “parteira da história”, da necessária superação do poder burguês pela ditadura do proletariado e de outras propostas desse mesmo teor. Foi Marx quem pretendeu “revolucionar” – stricto et lato sensi – o mundo burguês de sua época, fundando um outro tipo de sociedade que deveria terminar por abolir o Estado e toda dominação de classe. Idéia certamente generosa, e idealista, essa, que no entanto se chocou com toda a realidade da dominação pura e simples. Antes de ser de classe, o poder é simplesmente poder, dos mais capazes, dos mais fortes, ou dos mais preparados a exercê-lo, sendo que o poder de classe teve muito poucas manifestações concretas na história. Esse idealismo marxista, de aspirar a uma redenção da dominação política através de uma classe pretendidamente universal, que deveria ser o proletiariado, revela o quanto de hegelianismo Marx ainda conservou na elaboração de sua interpretação sociológica da história, como revelado na excelente análise da tradição inaugurada por ele feita por Herbert Marcuse (em Razão e Revolução).
            Nesse sentido, a revolução assume na obra de Marx um caráter quase mítico, talvez messiânico e prometéico: a redenção da humanidade se faria pela ruptura revolucionária, protagonizada pela classe oprimida. Esse culto estético das revoluções seria recuperado por discípulos que viviam em situações de autoritarismo radical, ou de autocracia direta, como ocorreu no caso da Rússia. Mas já não foi seguido pelos líderes operários reformistas da Europa ocidental, que não viam muitas vantagens na luta revolucionária, preferindo o reformismo gradual.
            A bem da verdade, quando se examinam alguns textos de Marx e sua própria ação no movimento operário de sua época, pode-se constatar que ele foi mais reformista do que revolucionário, aconselhando os operários a lutarem por conquistas graduais que melhorassem sua vida cotidiana, até que as “condições objetivas” – a contradição entre as “forças produtivas” capitalistas e as “relações de produção” do sistema fabril, quase coletivo – pudessem oferecer uma chance real de passagem de um sistema social a outro. Já no próprio Manifesto, ele recomenda uma série de dez reformas parciais tocando o trabalho, a educação, a reforma agrária e os tributos, ao passo que na “crítica ao Programa de Gotha” (do partido social-democrata alemão) ele recomenda a acumulação de forças antes do enfrentamento final com a burguesia. Mesmo no auge das “lutas de classe” da Comuna de Paris, em 1871, Marx não entretem muitas ilusões quanto à possibilidade de um verdadeiro poder operário na ausência daquelas condições objetivas que sua análise econômica pretendeu “demonstrar”.
            Um outro aspecto foi mais importante tanto na obra de Marx como no destino ulterior do movimento socialista que ele ajudou a fundar: a recusa do mercado como elemento mediador das relações sociais e das próprias realidades econômicas. Marx tinha uma concepção extremamente negativa a respeito do mercado, terreno no qual ele via a predominância dos mais fortes e a espoliação dos mais fracos. Esse tipo de reação foi provavelmente despertada pela sua análise – que está presente em seus primeiros escritos e na sua obra máxima, O Capital – do fenômeno do fechamento das terras públicas aos camponeses pobres, o que fez surgir a grande propriedade de um lado e a mão-de-obra disponível para o sistema manufatureiro de outro. Essa visão se prolongou na análise do sistema fabril, para a qual contribuiu seu amigo Engels, ele mesmo dono ou administrador de fábricas de tecidos na Inglaterrra: o mercado é o terreno privilegiado da exploração do proletariado, da despossessão mais completa daqueles que só tinham sua força de trabalho para vender e por isso se tornam dependentes, escravos modernos, do grande capital.
            Esse tipo de preconceito contra o mercado iria influenciar poderosamente o pensamento de discípulos marxistas, e até a prática daqueles que primeiro chegaram ao poder: os bolcheviques russos. Sua recusa radical do mercado conduziu, provavelmente, o socialismo para caminhos inviáveis e insustentáveis, como pode ser provado, a posteriori, pela experiência chinesa de modernização, que pretende combinar a “ditadura do proletariado” (na verdade do partido único) com um regime de mercado que assegure um mínimo de eficácia ao sistema produtivo.
            O que restou do pensamento marxista, ademais dessa enorme contribuição à sociologia contemporânea, foi essa visão humanista da “libertação do homem” das agruras da exploração capitalista e da dominação política de classe (feudal, em alguns casos, burguesa em outros). Que ele tenha se equivocado em várias predições – como a da crescente polarização social na sociedade capitalista e o aprofundamento da miséria operária – não eliminou o atrativo de seu pensamento para uma classe específica de “trabalhadores”: os intelectuais, ou seus modernos representantes, os acadêmicos e universitários. Raymond Aron, por exemplo, passou grande parte de sua vida nesse “diálogo” com os intelectuais marxistas – a começar por Jean-Paul Sartre – e nunca deixou de criticar suas ilusões românticas, mas com muito pouca eficácia, diga-se de passagem, enquanto o socialismo persistiu enquanto sistema social alternativo.

4. Um pensador sistemático: Weber
            Max Weber começou sua carreira pelo estudo e a prática do direito, no final do século XIX, mas logo enveredou pela filosofia da história e pelo estudo comparado das religiões. Sua tese de doutoramento foi sobre a história das companhias de comércio da Idade Média, o que o fez debruçar-se nas inúmeras conexões entre história econômica e direito. Logo em segudo, sua habilitação se deu numa tese sobre as instituições agrárias da antiguidade, o que despertou a admiração do grande historiador alemão dessa época, Theodor Mommsen (introdução de Hans Gerth e C. Wright Mills aos Ensaios de Sociologia, de Max Weber).
            Weber teve uma carreira essencialmente acadêmica, entrecortada por problemas psíquicos e muitas viagens fora da Alemanha, mas a partir do início do século XX ele dá início a uma produção sistemática de estudo comparado das religiões e sobre a estrutura da sociedade capitalista, que ele examinou tanto pelo lado da racionalidade econômica como pela vertente da administração burocrática. Ainda que admirador do sistema político alemão e da sua eficiência econômica, ele também colocou seu país em contraste com a América democrática, concluindo pelo bom desempenho das associações livres entre os homens e o vigor da inovação técnica numa sociedade aberta. Ele colocou essas situações em contraste com os problemas da sociedade russa, convulsionada por revoluções e incapaz de se reformar.
            Sua viagem aos Estados Unidos permitiu-lhe recolher material suplementar para seu estudo já iniciado sobre a influência do fator religioso na evolução da sociedade, o que resultou em sua obra mais conhecida A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Muita polêmica se deu em torno das principais teses dessa obra, que no entanto não era apresentada por Weber como indicativa de uma correlação causal entre o protestantismo e o capitalismo, mas tão somente como reveladora de certas afinidades eletivas entre certos comportamentos religiosos, presentes em algumas seitas protestantes, e formas de organização social que tendiam a favorecer o referido espírito capitalista (frugalidade, predestinação, não rejeição do sucesso material, não aversão ao lucro, como na tradição católica, mas também a separação dos assuntos religiosos da condução do Estado).
            Participando ativamente dos trabalhos de uma associação de ciências sociais, a partir de 1908, Weber estimulou os estudos sistemáticos sobre grupos sociais, desde ligas esportivas, a seitas religiosas e partidos políticos. Datam desta época seus estudos que depois (creio que postumamente) seriam reunidos no volume Economia e Sociedade. Trata-se, provavelmente de sua obra mais importante, do ponto de vista da sociologia, muito embora ele tenha elaborado, igualmente, trabalhos sobre a metodologia das ciências sociais que ainda hoje possuem validade para uma reflexão sobre o estatuto da sociologia no conjunto das disciplinas científicas. Foi nas diversas partes de Economia e Sociedade que Weber aprofundou sua análise sistemática do poder e da burocracia, assim como sobre esses instrumentos analíticos que foram por ele chamados de “tipos-ideais”, isto é, estruturas arquetípicas de um determinado fenômeno social que recolhe elementos da realidade em suas definições mais generalizantes e puramente abstratas.
            Ainda que expressos de maneira abstrata, os tipos-ideais poderiam referir-se a elementos históricos concretos e particulares, como por exemplo a racionalidade ocidental (em oposição a valores das civilizações do Oriente), ou a cidade-Estado moderna, ou ainda o próprio capitalismo, tal como ele se desenvolveu na Europa ocidental e foi transplantado para a América. Mais relevante ainda, e até hoje usados na ciência política, sua designação dos tipos-ideais de dominação política, como sendo de natureza carismática, tradicional ou racional. São referências importantes na literatura sociológica contemporânea, ainda que poucos autores se dediquem a inovar a partir desses conceitos, preferindo usá-los como três tipos opostos ou excludentes (em alguns casos sucessivos) de dominação política, quando eles poderiam talvez ser combinados para explicar toda a complexidade das sociedades concretas.
Weber possui muitos outros escritos, de natureza política, de reflexão sobre a prática da política, assim como sobre os regimes políticos contemporâneos na Alemanha e na Rússia, mas seu legado principal deve ser considerado essencialmente como um pensador da teoria sociológica em suas formulações analíticas – por ele designada como Vertehen, ou compreensão –, inclusive em bases comparativas. Nisso, como observou Raymond Aron (Etapas do Pensamento Sociológico), ele estava muito longe de Auguste Comte, que tentava ver na sociologia um conjunto de leis que permitisse organizar e dirigir a sociedade. Ele achava que as ciências sociais deveriam sempre buscar aproximar-se do ideal de compreender o mundo, sem que se tivesse entretanto a ilusão de compreendê-lo em sua totalidade, inclusive por uma questão de cunho prático, o problema dos valores do pesquisador, que interferem na sua maneira de ver o seu objeto de análise.
Weber apreciava o método histórico de Marx, ainda que não partilhasse da maior parte, e provavelmente de nenhuma, de suas conclusões sobre o destino final do capitalismo. Existe entre ambos, como sublinharam vários autores, uma espécie de antinomia, entre de um lado o materialismo histórico de Marx, de base essencialmente econômica, e a abordagem multicausal, mas também histórica, de Weber, privilegiando os aspectos políticos de uma formação social, ou basicamente o fenômeno da dominação (que não se resume à suas dimensão de classe). Marx tendia a subordinar o político ao econômico, ao passo que Weber enfatizava a especificidade do primeiro e sua independência em relação à esfera material ou do processo produtivo. A concepção do Estado em ambos talvez reflita essa diferença de abordagem, já que o revolucionário alemão do século XIX tendia a ver no aparato estatal um mero reflexo da dominação econômica de uma determinada classe num momento dado da história, ao passo que o sociólogo alemão reformista do século XX – que enfatizava o monopólio do uso da força legítima – reconhecia a autonomia do político em face de determinadas injunções econômicas.
            Da mesma forma, a análise do capitalismo difere muito em cada um dos autores. Marx via irracionalidade e dominação brutal de classe no capitalismo, enquanto Weber enfatizava justamente os aspectos racionais do capitalismo, com aspectos similares podendo ser encontrados no Estado moderno, isto é, a racionalidade das estruturas burocráticas de qualquer governo moderno e dos sistemas de administração das grandes empresas. Onde Marx vê luta de classes para a superação do capitalismo, Weber vê a crescente afirmação da burocracia racional, ao ponto de constituir uma verdadeira “gaiola de ferro” burocrática, que aprisiona atores privados e agentes públicos numa teia de relações sociais que não tem nada daquele caráter de oposição política irredutível idealizada e também desejada por Marx. Em lugar da ditadura do proletariado, Weber via uma perigosa ditadura do funcionário público se aproximando. Ele não deixava, contudo, de reconhecer a racionalidade e a eficiência desse tipo de dominação.
            Um pensador brasileiro, José Guilherme Merquior, inovou nesse particular, propondo em seu livro Rousseau and Weber: two studies in the theory of legitimacy (não traduzido ou publicado no Brasil, ao que saiba) uma hipótese da dominação carismático-racional, que seria representada pelo tipo de dominação exercida pelo Partido Comunista da ex-União Soviética. Não conheço, entretanto, outras formulações brasileiras retiradas de Weber, em relação, por exemplo, ao exercício populista de poder no Brasil, que combina elementos tradicionais e carismáticos de dominação.
          
5. Um funcionalista prático: Durkheim
            Émile Durkheim é o primeiro grande sociólogo sistemático do século XX, tendo formulado as bases da análise social com um rigor próximo do “cientismo”, então em vigor na academia. Seu pequeno e conhecido livro, As Regras do Método Sociológico, permaneceu, e talvez ainda permaneça, como uma das leituras obrigatórias de todos os cursos de ciências sociais no Brasil e em muitos outros países. Mas ele começou sua carreira acadêmica com uma tese de doutoramento que está na base da reflexão sobre a vida em sociedade: A Divisão Social do Trabalho.
Ele rejeitava as explicações de tipo individual ou psicológico para expor um fenômeno básico da vida em sociedade, que é a da crescente integração entre os atores sociais, a despeito mesmo do declínio dos valores religiosos e dos laços de solidariedade (típicos das comunidades menores). A divisão social do trabalho, no entanto, não é apenas encontrada nas sociedades complexas: ela já existe nas sociedades primitivas, mas assume aqui a forma de divisão sexual do trabalho. Mas é na sociedade moderna, com seu regime fabril, que a divisão se aperfeiçoa em alto grau, com base na especialização profissional. Durkheim não deixa de traçar um paralelo entre essa evolução e a diferenciação nos organismos, para formas cada vez mais complexas. Nas sociedades, ele vê a passagem da solidariedade mecãnica, típica dos estágios mais elementares da vida em sociedade, para a solidariedade orgânica, mais estruturada e denotando formas superiores de coesão social.
Esse tipo de análise é reencontrada no estudo de Durkheim sobre o suicídio, que explora os casos patológicos de anomia, mas ele ainda aqui tende a enfatizar mais a ação dos fatores sociais do que psisológicos na determinação dos casos de suicídio. Ele chega a determinar três tipos de suicídio: egoista, altruista e anômico, sendo que as taxas relativas dependem da idade e do sexo e variam conforme as religiões (ele encontrou uma maior incidência nos indivíduos protestantes do que nos católicos).
            Sua outra grande obra, As Formas Elementares da Vida Religiosa, não necessariamente se ocupa da antropologia das religiões primitivas, mas sim – de acordo com o princípio já estabelecido nas Regras do Método Sociológico, de que os fatos sociais devem ser considerados como “coisas” – das formas mais elementares do culto religioso, que ele exemplifica pelo totemismo (ele seleciona como estudo de caso o totemismo australiano). As principais categorias utilizadas por ele nessa análise são as de sagrado e profano, que ele recupera de Fustel de Coulanges. Como na análise da divisão social do trabalho, o que está em causa é mais o coletivo social, do que o indivíduo no plano psicológico (ver Anthony Giddens, Capitalismo e Moderna Teoria Social, p. 165).
            A obra de Durkheim continuou a marcar e a influenciar as teorias sociológicas modernas, talvez mais pelo lado do método do que pela vertente de suas interpretações, que podem ter sido influenciadas pela época, com sua forte ênfase na organicidade, na anomia e na patologia e nos princípios morais e valores religiosos.

6. A sociologia no Brasil: os mestres da escola paulista
            A formação da sociologia no Brasil também esteve fortemente impregnada de cientismo e de organicismo, como enfatizado, por exemplo, na obra de Silvio Romero (um racista confesso, mas conforme aos padrões da época) e de Euclides da Cunha, este um dos primeiros autores a propor uma interpretação social, psicológica e moral ao grande problema que ele examinou como “espectador participante”: o conflito de Canudos, que ele explica pelo primitivismo religioso de populações desprovidas de qualquer sentimento moral mais elevado, mas no qual também vê as raízes sociais de um drama maior, que poderia ser traduzido em termos de “anomia durkheimniana” (mas Euclides não faz esse tipo de análise).
            O grande denunciador desse tipo de interpretação pretendidamente científica da realidade brasileira, mas que se encontrava eivada de racismo “científico”, será Manoel Bonfim, que nas primeiras três décadas do século XX realiza um obra de interpretação histórica e sociológica sobre a formação da nacionalidade brasileira (e latino-americana) que infelizmente passou despercebida durante e no imediato seguimento de sua atividade pública (ainda assim, um contemporâneo não deixava de registrar “a grande obra de sociologia brasileira de Manoel Bonfim…”; ver Bonfim, O Brasil Nação, p. 30). Nessa época, em especial nos anos 1920, estavam em voga análises relativamente pessimistas da formação e do “caráter” do brasileiro, como exemplificado na obra de Paulo Prado, por exemplo.
            Os grandes eixos de interpretação do Brasil moderno seriam dados pelas obras de um antropólogo, Gilberto Freyre, um bacharel em direito convertido em historiador auto-didata, Caio Prado Júnior, e um historiador, Sérgio Buarque de Holanda. Embora de qualidade e escopo muito diferentes, Casa Grande e Senzala, Evolução Política do Brasil (ambos de 1933) e Raízes do Brasil (de 1936) constituem marcos fundadores de uma ciência social fundada na pesquisa de fontes e na interpretação dos grandes movimentos sociais, humanos, econômicos e políticos que estiveram na origem da formação da nacionalidade, e não mais como simples extrapolações da realidade brasileira a partir de modelos analíticos extraídos de uma outra realidade.
            Foi precisamente nos anos 1930 que a disciplina “sociologia” é introduzida nos currículos dos cursos preparatórios para o ingresso no ciclo superior de estudos e é também nessa época (1933) que surge a Escola Paulista de Sociologia, seguida um ano depois pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (Oracy Nogueira, “A Sociologia no Brasil”, p. 193). Nesta última, o grande introdutor de Durkheim para os alunos brasileiros foi Fernando de Azevedo, muito embora vários mestres franceses tenham se sucedido nas matérias de ciências sociais (antropologia e sociologia), como Paulo Arbousse Bastide, Roger Bastide, Claude Lévy-Strauss, e também Fernand Braudel (este na história). No Rio de Janeiro atuou Anísio Teixeira e o francês Jacques Lambert.
            As primeiras turmas de formandos estiveram na origem de uma concepção propriamente brasileira de ciência social, sendo de se distinguir paulistas como Florestan Fernandes, Antonio Cândido de Mello e Souza e Dante Moreira Leite (entre muitos outros), ao passo que no Rio de Janeiro se formavam Alberto Guerreiro Ramos e Luiz de Aguiar Costa Pinto (Nogueira, op. cit., p. 194). A partir dos anos 30, e sobretudo nas duas décadas seguintes se forma uma verdadeira comunidade de sociólogos no Brasil, com importantes estudos conduzidos pelos discípulos dos primeiros mestres que marcariam o pensamento social brasileiro (sobretudo no estudo das raças e sua “integração à sociedade de classes”, para seguir o título de uma das obras do grande mestre Florestan Fernandes). Dentre esses discípulos podem ser citados Maria Isaura Pereira de Queirós, Duglas Teixeira Monteiro, Octavio Ianni (recentemente falecido), Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Juarez Rubens Brandão Lopes, Marialice Mencarini Forachi (falecida há muitos anos), Gabriel Cohn e muitos outros.

Bibliografia

ARON, Raymond:  Les Étapes de la Pensée Sociologique (Paris: Gallimard, 1980); consultada na edição americana: Main Currents in Sociological Thought (New York: Penguin Books, 1967, 2 vosl)
AVINERI, Shlomo: The Social and Political thought of Karl Marx (Cambridge, Cambridge University Press, 1980)
BEETHAM, David: Max Weber and the Theory of Modern Politics (London: George Allen and Unwin, 1974)
BOMFIM, Manoel: O Brasil Nação: realidade da soberania brasileira (2ª ed.: Rio de Janeiro: Topbooks, 1996; 1ª edição de 1931)
BOTTOMORE, Tom: Political Sociology (London: Hutchinson, 1979)
ELDRIDGE, J.E.T.(ed.): Max Weber: the Interpretation of Social Reality (London: Nelson, 1972)
GIDDENS, Anthony: Capitalism and Modern Social Theory: an analysis of the writings of Marx, Durkheim and Max Weber (Cambridge: Cambridge University Press, 1971; tradução portuguesa: Capitalismo e Moderna Teoria Social, Lisboa: Presença, 1984)
MARCUSE, Herbert: Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social (Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978)
MARX, Karl: Oeuvres, Economie I et II (Paris: Gallimard 1968 et 1969)
MERQUIOR, J.G.: Rousseau and Weber: two studies in the theory of legitimacy (London: Routledge and Kegan Paul, 1980)
MILLS, C. Wright: A Imaginação Sociológica (Rio de Janeiro: Zahar, 1980)
NOGUEIRA, Oracy: “A Sociologia no Brasil” in Mario Guimarães Ferri e Shozo Motoyama (orgs.), História das Ciências no Brasil (São Paulo: Edusp, 1981)
THERBORN, Goran: Science, Class and Society: on the formation of sociology and historical materialism (London: NLB, 1976)
WEBER, Max: Ensaios de Sociologia (Rio de Janeiro: Zahar, 1979, com introdução de Hans Gerth e C. Wright Mills)

2 comentários:

Anônimo disse...

Vossência disporia do estudo/ensaio em formato PDF?!Onde encontar?!

Vale!

Paulo Roberto de Almeida disse...

Vou postar no meu site, e avisar...