domingo, 20 de novembro de 2011

E por falar em koala (mais um texto sugestivo, esquecido nos arquivos...) - Paulo Roberto de Almeida


O koala e a coruja
Paulo Roberto de Almeida
( 23 de dezembro de 2005)
            Os chineses têm o curioso costume de batizar, segundo um ciclo que se repete após um determinado período, cada ano do calendário com o nome de um animal, existente na natureza ou pertencente à mitologia: ano do macaco, do cachorro, da cobra, da lebre, do dragão, e por aí vai.
            Não sei se existe algum ano do koala e outro da coruja, mas agora me deu vontade de batizar, não o ano que começa, mas o ano que acaba de passar, como o ano do koala e da coruja, assim mesmo, com dois animais ao mesmo tempo. Explico porque e dou logo as minhas razões, para ninguém pensar que eu fiquei louco ou que estou, de repente, adquirindo manias chinesas. Se isso virar um hábito, assim seja: no ano que vem, invento dois outros animais (ou mantenho esses mesmos).
            É que eu tenho a maior simpatia por esses dois animais, que deveriam ser erigidos à categoria de ícones da paciência e da sabedoria, respectivamente (ou vice-versa). Já tive a oportunidade de escrever sobre “minha vida de koala”, e não vou repetir o prazer que senti em me imaginar um koala, desses bem normais, comendo suas folhas de eucalipto e descendo vagarosamente de galho em galho para ir se acomodando a uma vida tranqüila e modorrenta (na verdade, eu estava imaginando usar dois terços do meu tempo útil para ler, não para dormir, como faz o koala, mas isso não vem ao caso agora). Também admiro as virtudes “hegelianas” da coruja que, segundo aquele filósofo dialético, sempre acompanhava Minerva – Palas Atena para os gregos –, a deusa da sabedoria.
Pois bem, o que me faz introduzir esse novo hábito estranho de pretender batizar, duplamente e retrospectivamente, o ano que se passou com o nome desses dois animais? Acho que este ano de 2005 foi particularmente rico para mim, em dois sentidos: primeiro adquiri uma tranqüilidade e uma satisfação com a vida que não tinha conhecido em muitos anos; depois porque adquiri mais alguns grãos de sabedoria, que acho que têm a ver mais com a sensibilidade do que propriamente com o conhecimento.
Por um lado, parei de ter aquele frenesi de sempre escrever e publicar (talvez um livro por ano), essa terrível mania de estar sempre sentado na minha mesa de trabalho, lendo algum livro ou escrevendo algum texto. Passei a contemplar mais a vida, a ver as coisas com outros olhos, a caminhar pensando no muito que já fiz e no muito que ainda tenho por fazer. Nem tudo é uma questão de produtividade: aliás, se formos aplicar esse conceito ao koala, ele entra no Guinness dos recordes da improdutividade, vagabundagem e preguiça. A sua produtividade deve ser marginal ou próxima do zero: ele é a própria “teoria da classe ociosa” – a famosa leisure class, copyright do Thorsten Veblen –, a imagem mesmo do dolce far niente, um monumento ao droit à la paresse, como diria o Paul Lafargue, uma completa oisiveté, ou como diria o douto Bertrand Russell, in praise of idleness. Agora, me dou ao luxo de não fazer nada, ou melhor, contemplar a natureza e as coisas belas da vida, de preferência algo que combine beleza interna e externa, forma e conteúdo, caráter e substância.
Por outro lado, adoro a coruja, pelo que ela tem de simbolicamente profundo, de sensível, de olhos inteligentes e argutos, sempre atentos e prontos para entrar em ação no melhor momento de fazê-lo. Ela é, ao mesmo tempo, contemplativa e ativa, silenciosa e altaneira, expansiva e retraída, triste e alegre, aberta e fechada, enfim, “filósofa” e “normal”, digamos assim. Ter uma coruja como companhia é uma garantia de reflexão ponderada, mas também de raciocínio rápido, impecável na lógica, mas dotado de rara sensibilidade, como se ela nos transmitisse, de uma só vez, certezas e dúvidas, segurança e inquietação. Acho que todas essas características contraditórias são próprias do pensamento curioso, animado de um ceticismo sadio, das almas sensíveis aos desígnios da criação inovadora, mas também da preservação da boa tradição. É a coruja quem fica por cima do ombro do filósofo, provavelmente assoprando-lhe ao ouvido o que ele poderia cogitar sobre uma dada situação na vida, ou sugerindo-lhe alguma solução genial a um problema inesperado.
Por tudo isso, e também pelo prazer que essas figuras mais do que simbólicas me deram ao introduzir um novo significado em minha vida neste ano de 2005, não hesito um só instante em batizar, retrospectivamente, este ano que se encerra como o ano do koala e da coruja. Espero que esses simpáticos animais venham me visitar novamente em 2006, e que esta situação possa durar até onde a vista alcança...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, Sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

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