Paulo Roberto de Almeida
Rui Barbosa e o direito internacional
Sérgio Eduardo Moreira Lima
Paulo Roberto de Almeida
Correio Braziliense, 14/07/2016
Há cem anos, quando a Argentina comemorou o primeiro
centenário de sua independência, o governo brasileiro designou o senador Rui
Barbosa como seu representante nos festejos. Além de participar das cerimônias
oficiais, Rui Barbosa foi convidado a palestrar na Faculdade de Direito de
Buenos Aires, ali pronunciando uma das mais importantes alocuções da história
do direito internacional no Brasil. Dada a contribuição de suas reflexões para
a construção da doutrina jurídica que sustenta a essência da política externa
brasileira, bem como para a afirmação de valores e princípios da diplomacia defendida
pelo Itamaraty, vale relembrar alguns conceitos fundamentais dessa conferência,
ainda válidos em nossos dias.
Em 1983 a Casa de Rui Barbosa publicou o texto definitivo,
traduzido do espanhol, dessa palestra, “Os Conceitos Modernos do Direito
Internacional”, durante muito tempo denominada como “O Dever dos Neutros”. Rui já
era conhecido na Argentina, onde vivera entre 1893 e 1894, fugindo da
perseguição que lhe movia o governo de Floriano por sua posição em defesa dos revoltosos
da Armada. Depois de repassar os episódios mais relevantes do itinerário independentista
argentino – iniciado em 1806, avançando em 1810 e consagrado definitivamente no
Congresso de Tucuman, em 9 de julho de 1816, quando se proclamou a autonomia do
país em face da Espanha –, Rui Barbosa cita Juan Bautista Alberdi, que
condenava, no panfleto “A Onipotência do Estado”, o culto ao Estado como “a negação
da liberdade individual”.
Ele
chega então ao cerne de sua exposição: a condenação formal do uso da força, representada
pela violação da neutralidade da Bélgica por tropas do Império alemão, em total
desrespeito aos princípios discutidos poucos anos antes na Segunda Conferência
da Paz da Haia, na qual Rui fora o chefe da delegação brasileira. Suas
palavras, em defesa desse princípio, foram muito claras: “Entre os que destroem
a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer
dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre
o direito e a injustiça. (...) O direito não se impõe... com o peso dos
exércitos. Também se impõe, e melhor, com a pressão dos povos. (...) Não há
duas morais, a doutrinária e a prática. A moral é uma só: a da consciência
humana, que não vacila em discernir entre o direito e a força.”
Essa conferência de Rui Barbosa foi relembrada pelo
chanceler Oswaldo Aranha, em 1942, no exato momento em que o Brasil se viu
confrontado à extensão da guerra europeia ao continente americano, instando,
então, o país a assumir suas responsabilidades no plano dos princípios do
direito internacional e em consonância com os deveres da solidariedade
hemisférica. A Alemanha tinha, mais uma vez, violado a neutralidade da Bélgica,
para invadir a França. A postura de Aranha – que havia recepcionado Rui, como
jovem estudante no Rio de Janeiro, quando o jurista desembarcou em sua volta ao
Brasil –, foi decisiva para que, ao contrário da vizinha Argentina, então
controlada pelo Grupo de Oficiais Unidos, de orientação simpática ao Eixo, o
Brasil adotasse uma postura compatível com a construção doutrinária iniciada
por Rui e de acordo a seus interesses nacionais, nos contextos hemisférico e
global, em face do desrespeito brutal ao direito internacional cometido pelas
potências nazifascistas na Europa e fora dela.
Vinte anos depois, o chanceler San Tiago Dantas, um dos
grandes tribunos do pensamento jurídico da diplomacia brasileira, defende o
respeito ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros
Estados, que estava então em causa nas conferências e reuniões pan-americanas
em torno do caso de Cuba. Outros juristas e diplomatas brasileiros, ao longo do
século, a exemplo de Raul Fernandes, Afrânio de Melo Franco, Afonso Arinos e
Araújo Castro, participaram dessa construção doutrinal e pragmática dos valores
e princípios da diplomacia brasileira. Há que se reconhecer, no entanto, que
Rui Barbosa foi um dos responsáveis pela contribuição das grandes diretrizes
políticas e jurídicas que hoje integram plenamente o patrimônio da diplomacia
brasileira.
Sérgio Eduardo Moreira
Lima, embaixador, é presidente da Fundação Alexandre de Gusmão; Paulo Roberto
de Almeida é ministro da carreira diplomática e professor nos programas de
mestrado e doutorado em Direito do Uniceub.
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