A Estranha Metamorfose de EA
(novela distópica)
Um dia, pela manhã, EA acordou sobressaltado, mas não saiu logo da cama. Estava tomado por certa sensação febril, não tinha vontade de levantar-se para iniciar a mesma rotina diária de todos aqueles anos. Ainda deitado, mas olhando para o teto, não teve vontade, nem disposição para calçar os chinelos, ao pé da cama, ir ao banheiro, completar a rotina matutina, tomar o café da manhã e sair para o trabalho. Não que o corpo pesasse, ou que apresentasse qualquer mudança estranha, fisiológica, isso não. Tudo parecia em ordem com os seus braços e pernas, com as costas e a cabeça, nada diferente, tudo parecia conforme ao que sempre fora, desde que saiu da juventude para a maturidade, e continuava antenado nas mesmas coisas de sempre: o trabalho, regular, aborrecido, mas de vez em quando uma nova tarefa, os livros no mesmo lugar, as roupas sóbrias de sempre, nada parecia predispô-lo a uma grande mudança.
E, no entanto, sentia que era chegada a hora de adotar uma nova atitude, operar uma verdadeira metamorfose em sua vida, começar a se comportar como realmente queria, não como os outros, os colegas, os amigos, os professores e os chefes queriam que ele fosse: um funcionário cumpridor dos seus deveres, sempre engajado no mesmo processo, nas mesmas rotinas, fazendo sempre o que lhe era demandado, e o que diziam que era o certo, mesmo não entendendo bem porque teria de ser daquela maneira, e não de outra, de acordo ao seu verdadeiro ser, a coisa em si, o mundo como ele achava que deveria ser, de acordo com a sua vontade, não o mundo como representação, de acordo com a vontade dos outros.
Ainda deitado na cama, e fitando o teto, resolveu tomar de coragem para começar a sua metamorfose: não mais seria como eles queriam que ele fosse, e sim seria como estava decidido a ser, o seu verdadeiro eu interior, aquele que tinha brotado da figura paterna, austera, responsável, temente a Deus, mas que tinha ficado submerso naquele universo de seres enquadrados na verdade do momento, que tinha de ser apenas figuração, porque na faculdade eram assim, e no trabalho também, todos convergentes para um universo espiritual com o qual não estava de acordo, mas com o qual tinha de concordar, tinha de aceitar, para não ser o discordante, o diferente, o verdadeiro.
Foi ainda deitado que começou a remontar o pensamento que lhe havia aflorado à mente quando se deitou para dormir, e que aparentemente ficou remoendo entre um sonho e outro, até que acordou com aquela sensação febril. Mas era uma febre diferente: em lugar de abatê-lo, de enfraquecê-lo, ela encheu-o de força, de vontade, e foi assim que decidiu assumir plenamente a mudança, em direção do seu verdadeiro eu, sua metamorfose.
Levantou-se da cama com energia, esqueceu até de calçar os chinelos, e foi até o telefone e chamou aquele que lhe tinha sugerido, na noite anterior, que deixasse toda aquela figuração de lado, aquelas duas décadas e meia de representação, de falsa conformidade, de hipocrisia, ao ter de servir ideias, homens e políticas com as quais não concordava, e que assumisse de uma vez a sua personalidade real, aquela legada por seu pai, e que correspondia aos seus sentimentos profundos. Disse, rapidamente, que tinha pensado muito naquilo, e que concordava, que estava decidido a anunciar uma nova etapa de vida, juntar-se ao movimento, para salvar o país da opressão e da mentira. Estava pronto, afinal. Disse que se arrumaria rapidamente e que poderiam combinar um encontro, naquela mesma manhã, para conversar sobre a melhor maneira de efetivar sua metamorfose.
(Continua…)
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