domingo, 27 de janeiro de 2019

Governo restringe acesso as informacoes - Marcelo Issa (Transparencia Partidaria)

"DECRETO CAMINHA NA CONTRAMÃO DO QUE LEI DE ACESSO TENTA FOMENTAR", DIZ COORDENADOR DA TRANSPARÊNCIA PARTIDÁRIA

Ato assinado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, no exercício da Presidência, pode ser usado pela Justiça eleitoral por analogia, afirma Marcelo Issa. Ampliar autoridades com a possibilidade de restringir acesso a documentos pode aumentar burocracia no processo

Gabriel Hirabahasi

O decreto assinado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, no exercício da Presidência da República nesta semana, que regulamenta a Lei de Acesso à Informação foi alvo de organizações envolvidas com a transparência. Coordenador do movimento Transparência Partidária e conselheiro da Transparência Brasil, o advogado e cientista político Marcelo Issa disse que o novo decreto pode ser aplicado pela Justiça eleitoral na divulgação das prestações de contas dos partidos políticos e diminuir o acesso a informações de interesse público.

"Se algum servidor, por qualquer razão, achar que vencimentos de um dirigente partidário significa informação pessoal, corre-se o risco de não termos mais acesso a essas informações que são de claro interesse público", afirma Issa. Ele também afirma que outro argumento que pode ser usado para diminuir o acesso a essas informações é se os dados estiverem "subsidiando investigação ou fiscalização", o que seria redundante, segundo Issa, já que a função da Justiça eleitoral é justamente fiscalizar a aplicação dos recursos públicos pelos partidos.

Assim como mais de 70 organizações ligadas à transparência do poder público, Issa concorda com a revogação do decreto e pede que o texto seja debatido com as entidades civis e com o restante da sociedade. A seguir, a entrevista de Marcelo Issa a ÉPOCA:

ÉPOCA - Qual o impacto do decreto assinado ontem pelo vice, general Mourão, que afeta a lei de acesso à informação?

Marcelo Issa - A lei de acesso à informação prevê que seria possível a delegação para classificação dos atos, mas o decreto anterior [assinado por Dilma Rousseff em 2012] vedava para a delegação de atos considerados secretos e ultrassecretos. Quem argumenta que o decreto não seria tão grave assim diz que o decreto [do governo Bolsonaro] na verdade restringe a quantidade de pessoas que podem classificar os documentos. Só que o que sustenta a análise das organizações que trabalham com transparência é o decreto anterior [assinado por Dilma e revogado com esse assinado por Mourão]. Eu me convenci de que o decreto é um retrocesso porque quando se compara ao decreto que vigorava anteriormente, há uma ampliação na quantidade de funcionários que podem classificar atos como secreto ou ultrassecreto. O decreto caminha na contramão daquilo que a lei de acesso procura fomentar, que é a cultura da transparência.

Para nós que trabalhamos com fiscalização de poder público era muito claro, por volta de 2008, que vigorava a cultura do sigilo. Sempre que ligávamos para pedir informação, queriam saber de onde era, para que que era. Desde que a LAI passou a vigorar, vemos uma mudança nesse sentido, de uma nova cultura de transparência em vez do sigilo. Principalmente a nível federal, onde essa cultura parece já mais consolidada. Conforme vai descendo para estados e municípios, vai ficando pior. Quando permite que funcionários DAS 5 e 6 [alta hierarquia de cargos comissionados] sejam responsáveis por essa classificação, há um prejuízo para essa cultura.

ÉPOCA - O governo diz que o decreto contribuirá com a desburocratização.

Marcelo Issa - Eu entendo que vai gerar mais burocracia, porque vai haver mais recurso para a comissão de avaliação. Provavelmente, haverá um número maior de documentos classificados. Mais gente [servidores públicos] vai passar a ter acesso a esses documentos [e poder classificá-los como secreto e ultrassecreto]. Pode ser contraproducente desse ponto de vista também. Quando você permite essa função a um servidor em cargo de comissão, sem estabilidade, deixa de ser uma dinâmica no nível de estado e passa a ser no nível de governo. Esse funcionário está lá enquanto dura o governo. Da mesma forma que o presidente, mas o presidente teve voto para isso e ele escolheu os seus ministros.

Além disso, esse decreto foi feito sem debate. A Transparência Brasil participou da última reunião do conselho da CGU [Controladoria-Geral da União] e ficou registrado em ata que qualquer processo de revisão da LAI passaria pela análise e deliberação do conselho. Mas não houve esse debate. Como a gente não tem um detalhamento sobre o que deve ser classificado secreto ou ultrassecreto, cada funcionário vai ter seus próprios critérios. Isso também pode criar divergência entre documentos com a mesma natureza. Em um determinado estado, pode haver uma determinação em tal sentido. Em outro, pode não ser considerado.

ÉPOCA - Qual seria a vantagem de essa discussão ter sido feita com a sociedade antes da formalização do decreto?

Marcelo Issa - Eu apontei alguns problemas que poderiam ser solucionados caso tivesse sido discutido com as organizações de transparência. Por exemplo, o critério a ser utilizado por cada servidor para a classificação.

ÉPOCA - E o que as organizações pretendem fazer sobre esse decreto?

Marcelo Issa - As organizações querem conversar com o governo, com a CGU. É o que está sendo pleiteado, que se revogue o decreto, já que, uma vez feita a classificação, há uma burocracia grande para se reverter. Queremos que volte a valer o decreto anterior e, a partir daí, haja um debate com a sociedade, as organizações civis e a gente debata as mudanças na lei de acesso. Do jeito que foi feito, há muitos problemas potenciais, num nível não só do governo federal, mas de outras instâncias da federação e de outros Poderes. Seja a informação dos partidos e do Poder Judiciário, por exemplo.

ÉPOCA - Essa mudança pode representar um risco por abrir o leque de pessoas em diversas instâncias do poder público?

Marcelo Issa - Sim, é exatamente isso. Pode vir a ser utilizado por analogia por estados, municípios e por outros Poderes, como o Judiciário. Vai gerar esse efeito cascata.
ÉPOCA - Quais mudanças podem ser aplicadas na transparência dos partidos políticos?

Marcelo Issa - Hoje, as informações estão com o TSE, que é quem reúne tudo e pode divulgá-las. O que me preocupa é que a partir dessa alteração de ontem, os servidores da Justiça de nível inferior àqueles que a resolução do CNJ determina como competentes para a classificação de documentos que estejam sob a guarda do Judiciário, que são poucas autoridades, possam agora interpretar para diminuir o acesso da população a esses dados.

Há na resolução do TSE uma possibilidade de classificar uma informação se houver de alguma maneira uma informação pessoal. Mas é evidente que quando tratamos dessa temática, falamos sobre processos que correm em segredo de Justiça, é a interpretação hegemônica hoje. Mas se algum servidor, por qualquer razão, achar que vencimentos de um dirigente partidário significa informação pessoal, corre-se o risco de não termos mais acesso a essas informações que são de claro interesse público, já que recebem do fundo partidário, financiado com dinheiro público.

ÉPOCA - A Justiça poderia negar, utilizando esse decreto como base, acesso a informações de interesse público que constam nas prestações de contas dos partidos?

Marcelo Issa - Segundo o art. 3º, inciso II, da Resolução 215, de 2015, do CNJ, os portais das instituições de Justiça devem divulgar informações de interesse público, independentemente de solicitações. A resolução diz que só o presidente do tribunal pode classificar um documento como ultrassecreto. No caso da classificação como secreto, só o presidente e membros do pleno do tribunal. E, por fim, como reservados, apenas o secretário-geral da presidência e o diretor-geral, além das autoridades já mencionadas. Caso se aplique por analogia esse novo decreto, seria possível a restrição ao acesso a informações referentes aos partidos políticos por outros servidores, desde que recebessem delegação para tanto. Poderiam usar como fundamento, por exemplo, no inciso VIII da resolução, que permite a restrição da publicidade, caso os dados estejam subsidiando investigação ou fiscalização. Só que os dados fornecidos pelos partidos sempre têm essa finalidade, uma vez que cabe à Justiça Eleitoral fiscaliza-los. É evidente que uma interpretação como essa estaria equivocada, porque viola o princípio da transparência, expresso no inciso II, do art. 3º da própria Resolução do CNJ e, portanto, nessa situação, é bastante provável que houvesse recurso do solicitante, aumentando a burocratização do processo, ao contrário do que se justificou para editar o decreto.

ÉPOCA - O decreto estabelece que além dos funcionários de cargos DAS 5 ou 6, também poderão classificar documentos como secretos ou ultrassecretos, respectivamente, aqueles servidores "de hierarquia equivalente". Mas não está claro o que é essa hierarquia equivalente. Como a LAI elenca como um dos possíveis motivos para decretar sigilo de um documento a possibilidade de ele "pôr em risco segurança de alta autoridade", essa mudança poderia favorecer políticos investigados pela Justiça?

Marcelo Issa - Essa questão responde por que é preciso debater com mais gente esse decreto. Se não está claro o que é hierarquia equivalente, esse questionamento é completamente pertinente. O inciso III do artigo 27 da LAI usa a expressão "de hierarquia equivalente", mas deixa para a regulamentação específica de cada órgão a definição do que é essa hierarquia equivalente. E além disso, o decreto também não deixa claro como se dá a delegação. Outro motivo com o qual a sociedade poderia contribuir com o debate sobre essa regulamentação é que a delegação não tem critérios objetivos sobre como deve ocorrer. Isso deve ocorrer no caso a caso? Ou é algo geral que o superior hierárquico atribui às pessoas por um determinado período, ou enquanto ele estiver na instituição?


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