sábado, 26 de janeiro de 2019

Miseria da diplomacia ativa e altiva (2006) - Paulo Roberto de Almeida

Em 2006, quando escrevi o trabalho abaixo, eu me encontrava no mais completo ostracismo no Itamaraty. Impedido de dirigir, por um veto da alta chefia da nova administração, os estudos de mestrado do Instituto Rio Branco – para cujo cargo tinha sido convidado pelo próprio diretor do IRBr – desde o início do governo lulopetista, em 2003, eu permaneci fora de qualquer cargo na Secretaria de Estado durante TODA a duração desse regime, só vindo a ser novamente convidado para exercer funções no Itamaraty a partir do impeachment do poste do megalomaníaco (e criminoso) líder da quadrilha que assaltou o Brasil e os brasileiros entre 2003 e 2016. 
Estando fora do serviço diplomático direto, mas ainda sendo um funcionário de carreira do Serviço Exterior, eu evitei contrariar as normas diplomáticas publicando abertamente análises que contrariassem o Zeitgeist daquele momento.
Daí resulta que eu retornei a uma prática que só havia adotado durante a ditadura militar, ou seja, escrever sob noms de plume, o que fiz com gosto e liberdade, publicando vários artigos na imprensa escrita e nos meios eletrônicos sob outros nomes.
O que vai abaixo é um dos muitos exemplos da minha produção dos anos de "travessia do deserto", como eu classifico o meu longo (2003-2016) exílio interior, em paralelo a atividades acadêmicas que sempre mantive.
Tenho muitos outros, mas por enquanto vai este, que guarda relação tanto com os muitos artigos que publiquei neste meu livro de 2014: 

        Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014)

quanto com os que eu estou publicando agora, na sequência dele: 

        Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019)

Segue, portanto, uma das peças de meus "anos de chumbo" sob o lulopetismo diplomático.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de janeiro de 2019



Misérias da diplomacia lulopetista
como a atual política externa enfraquece o Brasil

9 de maio de 2006

Toda política externa, como de resto qualquer política pública, fundamenta-se, como parece óbvio, sobre valores e princípios. Ambos têm a ver com normas gerais, de caráter constitucional, e com o chamado “interesse nacional”, tão difícil de ser definido quanto são diversos, e por vezes divergentes, os objetivos políticos, sociais e econômicos identificados com os diferentes grupos sociais e movimentos políticos que compõem a sociedade nacional. Na prática, o cidadão bem informado sabe identificar claramente onde se encontra o interesse nacional quando confrontado a uma questão concreta, como, por exemplo, aquela relativa aos interesses nacionais respectivos do Brasil e da Bolívia em torno da exploração de gás naquele país.
Os valores e princípios sobre os quais se fundamentou, historicamente, a política externa brasileira foram sendo sedimentados ao longo de uma trajetória que se estende de meados do século XIX, passa pelo Barão do Rio Branco, no início do século XX, pela afirmação de autonomia na era da Guerra Fria e alcança um período recente, quando governo e sociedade souberam construir uma “ferramenta diplomática” adaptada às necessidades de desenvolvimento e de inserção soberana na economia mundial.
Esses valores e princípios estão sendo aberta e clandestinamente modificados e deformados pela atual diplomacia que se pretende “ativa e altiva”. Trata-se, na verdade, de diplomacia partidária e ideológica, que se distancia significativamente das principais linhas de atuação, quando não dos valores e princípios que sempre guiaram nossa política externa. Seus valores são estranhos à sociedade brasileira e seus princípios são os de um grupo sectário que pretende atrelar o país a fantasias mirabolantes há muito enterradas no grande fracasso do socialismo.
Contrariamente à propalada defesa da soberania e do interesse nacional — que a diplomacia partidária falsamente pretende assegurar —, jamais se assistiu, em qualquer época, a tão reiteradas manifestações de renúncia explícita e implícita da soberania e a tantos desvios do interesse nacional como nos três últimos anos. A renúncia de soberania começou, aliás, antes da inauguração do governo, quando o PT definiu, preliminarmente e de maneira totalmente unilateral, que determinados países – que não é preciso mencionar quais são – seriam os novos “parceiros estratégicos” do Brasil. Independentemente de uma suposta ou real comunidade de interesses entre os objetivos permanentes do Brasil e os desses países, escolhidos em função do viés ideológico do PT, jamais se assistiu, nos anais da diplomacia mundial, um governo pretensamente cioso da soberania nacional declarar, de forma absolutamente gratuita, que tal ou qual país é seu “aliado” em causas mundiais ou regionais. Isso é totalmente estranho a nossa tradição de relações exteriores e certamente bizarro em termos de práticas diplomáticas internacionais. Trata-se de uma “renúncia preventiva de soberania”.
Essa renúncia de soberania manifestou-se concretamente, depois, em vários gestos politicamente motivados e ideologicamente defendidos, adotados pela diplomacia petista em total descompasso com os interesses nacionais e na linha oposta do que foi sugerido ou defendido por empresários e exportadores. Mencione-se o reconhecimento da China enquanto “economia de mercado”, gesto impensado e ingênuo, assim como o tratamento leniente, quando não contrário aos interesses das nossas indústrias, concedido às salvaguardas ilegais, arbitrárias e unilaterais, adotadas pela Argentina contra produtos brasileiros de exportação. Em nenhum momento o governo defendeu de modo claro e explícito os interesses dos nossos exportadores, atacados e injustamente contidos em sua competitividade comercial pelas ações protecionistas do governo argentino, a mando de indústrias incapazes de conviver com as regras estabelecidas pelo Mercosul.
A diplomacia partidária do PT também se lançou numa furiosa campanha contra a Alca, sob a alegação de que esse projeto de zona de livre-comércio hemisférico colocava em risco o Mercosul e a própria economia brasileira, na verdade rendendo-se às posições totalmente ideológicas de grupelhos antiglobalizadores que passaram a ditar as orientações de nossa política comercial. Nunca se viu, nos anais de nossa diplomacia e em anos e anos de negociações comerciais multilaterais, delegações de técnicos e peritos na matéria serem constrangidas de forma tão canhestra e intimidatória por “delegados” de movimentos como o MST, a Via Camponesa, a Rede de Integração dos Povos e outros grupos de militantes incorporados a essas delegações. Tais grupos, assim como setores da própria diplomacia e mesmo do governo, mostraram o seu regojizo quando se reconheceu que, de fato, eles tinham conseguido “implodir” a Alca.
As consequências não tardaram: os Estados Unidos passaram a assinar acordos com quase todos os países da América Latina, não apenas conquistando posições que nossos negociadores foram incapazes de assegurar, como ameaçando os mercados dos exportadores brasileiros em todos esses países. Essa atitude ideológica é totalmente contrária aos interesses nacionais brasileiros e corre o risco de custar caro aos nossos industriais e exportadores.
Uma obsessão política mal orientada e mal inspirada dos responsáveis pela nossa diplomacia também subordinou interesses concretos do nosso país à obtenção pouco realista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, levando-nos a comprometer recursos que não tínhamos com a “compra”— ilusória como depois se revelou — do apoio de países em desenvolvimento. Fomos também levados a alinhar de forma ingênua nossas posições e demandas com países que, por motivos diversos, enfrentavam obstáculos a esse objetivo em suas próprias regiões, como o Japão e Índia, na Ásia e a Alemanha, na Europa. Essa obsessão também precipitou um engajamento mal concebido na aventura haitiana: trata-se de uma tragédia que pouco tem a ver com as tradicionais missões de paz da ONU e está bem mais incluída na categoria da “construção de nações” ou “recuperação de Estados falidos”, objetivos que certamente ultrapassam nossa modesta capacitação financeira, militar e técnica.
Outra obsessão mal pensada engajou novamente recursos humanos e materiais no estabelecimento de um ilusório programa de “fome zero universal” que duplica esforços já estabelecidos no âmbito de diversos órgãos da ONU – FAO, PNUD, Programa Mundial de Alimentos, e muitos outros – e que redundou, pateticamente, na introdução de uma nova taxa sobre passagens aéreas internacionais que seremos dos poucos, junto com a França, a aplicar. O objetivo do PT, originalmente, era contudo bem pior: o estabelecimento de uma taxa geral sobre as transações financeiras internacionais cujo único resultado seria o de encarecer um pouco mais a transferência de recursos para o próprio Brasil. Raramente se viu tanta cegueira e irracionalidade.
No plano regional, os equívocos e gestos mal pensados foram tantos e tão repetidos que desfiá-los por inteiro significaria um rol imenso de bizarrices que faria corar de vergonha o Barão do Rio Branco, se vivo estivesse. Começa pela proclamação absolutamente indevida e anti-diplomática de uma pretendida “liderança” brasileira na região, como se os países vizinhos estivessem esperando essa autopromoção do Brasil a “líder natural” para saudá-la com entusiasmo e entronizá-la no altar de uma preeminência regional “inconteste”. Nunca se viu tanta inconsciência quanto nesse tipo de pretensão, aliás desdobrada em atitudes de interferência nos assuntos internos de outros países, com declarações pela imprensa dos responsáveis da diplomacia petista por ocasião de crises políticas internas nesses países.
Acrescente-se a isso manifestações de preferências políticas em campanhas eleitorais, obviamente em favor de candidatos ditos “progressistas”, que partilham das mesmas miopias ideológicas que o PT, um típico partido esquerdista latino-americano, com sua quota tradicional, e totalmente ultrapassada, de antiamericanismo e de anti-capitalismo. Não é preciso mencionar a vergonhosa atuação presidencial e diplomática no caso da “nacionalização” dos recursos energéticos da Bolívia, quando a submissão inaceitável de nossos dirigentes a interesses econômicos estrangeiros – para não mencionar a inabilidade em face das pretensões de um líder histriônico como Chávez – deixam de pertencer ao terreno do ridículo para beirar os limites da traição à pátria.
Acrescente-se que, sob a diplomacia partidária, o objetivo da integração, em primeiro lugar no Mercosul, foi convertido de meio de modernização produtiva e de inserção competitiva na economia internacional em objetivo exclusivo e obsessivo – como tantos outros, aliás –, o que contaminou a agenda que vinha sendo pacientemente construída desde os anos 1980. Em nome desse objetivo finalístico mal definido e muito mal implementado, todas as concessões foram feitas. Invocou-se, como pretexto, uma tão equivocada quanto canhestra “diplomacia da generosidade”, que recomendava aos nossos importadores comprar produtos mais caros na região, apenas para ajudar os vizinhos, em lugar de contemplar o interesse primário dos nossos consumidores.
São tantos os gestos infantis, tão repetidas as iniciativas equivocadas, as ações politicamente motivadas e ideologicamente orientadas, que a diplomacia “ativa e altiva” do governo petista merece ser rebatizada de ingênua e desastrosa.
Reverter os efeitos dessa diplomacia partidária, que também deixa suas marcas no próprio Itamaraty – com exemplos tão bizarros como o de uma “escola de reeducação de diplomatas” funcionando na Secretaria-Geral –, não será tarefa fácil, pois os equívocos já atingiram o prestígio da diplomacia brasileira no exterior.

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