1889: A REPÚBLICA SE APRESENTA AO MUNDO
Paulo Roberto de Almeida
BRANCATO, Sandra Maria Lubisco (coord.):
Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República
(Brasília: Ministério das Relações Exteriores; Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1º. volume: 1989, 222 p.; 2º. volume: 1993, 251 p.)
Em 19 de novembro de 1889, o Ministro das Relações Exteriores Quintino Bocaiuva expedia a seguinte circular aos governos dos países com os quais o Brasil mantinha relações diplomáticas:
Senhor Ministro,
O exército, a armada e o povo decretaram a deposição da dinastia imperial e a extinção do sistema monárquico representativo; foi instituído um Governo Provisório que logo entrou no exercício de suas funções e que as desempenhará enquanto a Nação soberana não proceder à escolha do definitivo pelos seus órgãos competentes; este Governo manifestou ao Sr. D. Pedro de Alcântara a esperança de que ele fizesse o sacrifício de deixar com sua família o território do Brasil e foi atendido; foi proclamada provisoriamente como forma de governo da nação brasileira a República Federativa, constituindo as Províncias os Estados Unidos do Brasil.
O Governo Provisório, como declarou na sua proclamação de 15 do corrente, reconhece e acata todos os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as Potências estrangeiras, a dívida externa e interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas.
No Governo Provisório, de que é chefe o Sr. Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, tenho a meu cargo o Ministério das Relações Exteriores, e é por isso que me cabe a honra de dirigir-me a Vossa Excelência, assegurando-lhe que o mesmo Governo deseja manter a relações de amizade que tem existido entre os dois países e pedindo o reconhecimento da República dos Estados Unidos do Brasil.
Num bom retrato do que, já então, se podia classificar de caráter ecumênico das relações internacionais do Brasil, um documento interno da Chancelaria brasileira informava ao mesmo Ministro Quintino Bocaiuva que os governos visados pela Circular eram, na ordem e grafia ali estabelecidas, os seguintes:
“Hespanha, Russia, Grã-Bretanha, Allemanha, Austria-Hungria, Italia, Belgica, Portugal, S.ta Sé, França, Suecia e Noruega, Paises-Baixos, Suissa (ao Presidente), Dinamarca, Rep.a de Venezuela, Chile, Peru, Estados Unidos da America, Rep.a Oriental do Uruguay, Republica Argentina, Paraguay, Bolivia, Guatemala, Columbia, Rep.a do Salvador, Rep.a Dominicana, Nicaragua, Costa rica, Haïti, Honduras, Equador, Imperio de Marrocos, Imperio da China, Reino da Servia, Reino da Romania, Imperio da Turquia e Imperio do Japão, Rep.a de San Marino e Reino da Persia”.
Outra circular, com o mesmo texto, acrescentava finais específicos para o México e para o Congo, neste último caso para o “Sr. Administrador Geral da Repartição dos Negócios Estrangeiros do Estado Independente do Congo”, Estado que nada mais era do que uma ficção geopolítica inventada pelo Rei Leopoldo, da Bélgica. Ficaram fora da Circular, por razões não esclarecidas, a Grécia e o Egito, países com os quais o Brasil mantinha relações consulares, através do Rio de Janeiro e de Alexandria, respectivamente. De grandes potências a nações praticamente vassalas das primeiras, o universo das relações interestatais no final do século XIX comparece nas listas da Chancelaria brasileira, testemunhando sua grande abertura internacional e precoce vocação para o pragmatismo político.
Em todo caso, esses eram os países envolvidos no relacionamento externo do Império dirigido por Pedro II e aos quais a nova República americana se dirige para solicitar reconhecimento diplomático. Com algumas exceções, são também esses os países que comparecem nos dois volumes do Arquivo do Reconhecimento da República, obra de referência documental cuja divulgação, iniciada na comemorações do centenário da República, foi tornada possível graças à capacidade de iniciativa e ao empenho pessoal demonstrados pela Profa. Sandra Brancato, do Curso de Pós-Graduação em História da PUC/RS, tanto na coleta do material de arquivo original como em sua organização para publicação pelo Ministério das Relações Exteriores. As exceções são poucas, em alguns casos por situações compreensíveis como a ausência de contatos diretos (Haiti, República Dominicana, Reinos da Sérvia e da Romênia ou a já mencionada ficção congolesa), em outros provavelmente pelas mesmas razões, mas produzindo lacunas mais lamentáveis, com é o caso do Japão ou da Turquia.
Não obstante, a coletânea de documentos relativa aos 36 países objeto da seleção conforma um panorama altamente ilustrativo da densidade das relações diplomáticas do respeitado Império brasileiro, herança que terá de ser retomada e desenvolvida pelo novo regime. Não são poucas as dificuldades iniciais, como demonstrado por diversos expedientes intercambiados com potências monárquicas da velha Europa: finalmente, a jovem República podia ser considerada como ilegítima, pois que resultante de um golpe de Estado militar contra uma dinastia que possuía numerosos vínculos familiares no velho continente. Em contraste, a obtenção do reconhecimento foi bastante mais fácil no hemisfério americano – objeto do primeiro volume da coletânea – já que o regime monárquico brasileiro é que era a avis rara num continente republicano.
Assim, é instrutivo seguir as diversas démarches empreendidas pela diplomacia brasileira junto a algumas monarquias europeias. O Império da Alemanha, por exemplo, manteria apenas relações oficiosas, até que o Congresso Constituinte se tivesse pronunciado sobre a nova forma de Governo. O da Áustria-Hungria, cujo Imperador Francisco José tinha laços de parentesco com D. Pedro II, não poderia senão ter sentido o “mais profundo pesar” pela proclamação da República. Mas, terminados os trabalhos da Assembleia Constituinte, em fevereiro de 1891, os dois Impérios reconhecem oficialmente o Governo republicano. Mais atribuladas foram as condições de retomada das relações com a velha Rússia dos Czares. O representante brasileiro em São Petersburgo era o mais sincero possível: “É preciso que o Governo da República se compenetre de que as simpatias da Rússia pelo Brasil tinham por único fundamento as nossas antigas instituições monárquicas que supunha tão sólidas como as próprias. Uma vez estas desaparecidas, entramos, para o Czar, no rol das nações cuja amizade tem por base, não a paz mas o armistício, estando nas mútuas relações substituída a simpatia pelo desdém mais ou menos aparente segundo os interesses em jogo”. Em outras oportunidades, pequenos contenciosos bilaterais, como em relação à França e às fronteiras do Brasil com a Guiana, ou até mesmo particulares, como no caso de uma companhia belga, prejudicaram o andamento das negociações ou retardaram o desfecho inevitável, na medida em que o novo regime se consolidava no Brasil e a volta da monarquia se afastava no horizonte.
A República passará bastante bem pelo seu batismo internacional e já em 1892 o relacionamento diplomático era normal com praticamente todos os países selecionados na coletânea. Os dois volumes constituem um guia bastante útil para o pesquisador especializado e reforçam a cooperação acadêmica que o Itamaraty vem ensaiando, desde alguns anos, com a universidade. Eles estão disponíveis junto à PUC/RS ou ao Centro de Documentação do Ministério das Relações Exteriores.
[Paris, 386: 07.01.94]
386. “1889: a República se apresenta ao mundo”, Paris, 7 janeiro 1994, 4 pp. Resenha do livro de Sandra Maria Lubisco Brancato (coord.): Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República (Brasília: Ministério das Relações Exteriores; Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; I° volume: 1989, 222 p.; II° volume: 1993, 251 p. 133-135). Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 37, n. 2, julho-dezembro 1994, pp. 133-135). Relação de Publicados n. 167.
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