sexta-feira, 25 de março de 2022

China: posição quanto à guerra na Ucrânia e sobre o papel do Brasil e da China no conflito - Eliane Oliveira (O Globo)

 ‘China e Brasil têm posições semelhantes ou idênticas’, diz chefe da embaixada chinesa em Brasília sobre guerra


Segundo Jin Hongiun, Estados Unidos e Europa impõem à Rússia sanções ‘extremas e sem precedentes’, mas posicionamento da China sobre a questão da Ucrânia é ‘objetiva e imparcial’

Eliane Oliveira
O Globo, 25/03/2022

BRASÍLIA — À frente do posto desde que o embaixador Yang Wanming voltou para seu país, o encarregado de negócios da Embaixada da China, Jin Hongiun, afirmou ao GLOBO que, mesmo divergindo em votações da ONU, brasileiros e chineses têm posições semelhantes sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia: são contra a aplicação de sanções econômicas aos russos e defendem o diálogo para um acordo de paz. Mas ambos os países têm votado de forma diferente na ONU e em fóruns como os Brics. Esta é a primeira vez que um representante de Pequim em Brasília fala sobre a crise no Leste Europeu e o papel do Brasil, e após o representante da embaixada americana no Brasil, Douglas Koneff, comentar o posicionamento do Itamaraty sob o governo Jair Bolsonaro.  

Por que a China não condenou a ação militar da Rússia contra a Ucrânia? Isto é uma aprovação tácita da invasão? 

A China sempre defende a paz e se opõe à guerra. É desolador ver qualquer país em conflitos armados. Diante da crise na Ucrânia, o que precisamos considerar é o que deve ser feito para resolver de fato o problema. Obviamente, a condenação e as sanções não têm esse efeito. Quanto mais complicada a situação, mais importante é manter a calma e a razão, priorizando o cessar-fogo entre as partes. Em relação ao conflito russo-ucraniano, a China defende que a soberania e a integridade territorial de todos os países devem ser respeitadas, os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas devem ser cumpridos, as legítimas preocupações de segurança de todos os países devem ser levadas a sério, e todos os esforços conducentes à resolução pacífica da crise devem ser apoiados.

O que a China tem feito, como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para ajudar a acabar com a guerra? 

Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e país responsável, a China vem fazendo todo o possível para trazer as partes à mesa de diálogo e negociações. No primeiro momento do conflito, a China já propôs à Rússia iniciar conversações de paz com a Ucrânia e vem trabalhando com a comunidade internacional para assumir um papel construtivo no processo de aliviar as tensões e promover o diálogo de paz. Ao mesmo tempo, a China acompanha de perto a situação humanitária na Ucrânia, apresentou iniciativas relevantes e tomou medidas concretas nesse sentido. A Cruz Vermelha da China está enviando ajuda humanitária de emergência à Ucrânia, os suprimentos estão chegando às mãos de refugiados. Novas remessas serão enviadas conforme as necessidades. 

O senhor acredita que esse conflito pode gerar uma nova Guerra Fria? 

A crise atual é resultado de uma combinação de fatores e da deflagração de desavenças acumuladas ao longo dos anos. Estrategistas ocidentais como George Kennan, Henry Kissinger e John Mearsheimer já haviam alertado sobre esta crise muito tempo atrás. Para encontrar o cerne da questão, será que não vale a pena refletir sobre a expansão irrestrita da Otan para o leste? A solução de longo prazo para garantir a segurança reside no respeito mútuo entre as principais potências, no abandono da mentalidade da Guerra Fria e de grupos confrontantes, construindo gradualmente uma arquitetura de segurança global e regional equilibrada, eficaz e sustentável. Os Estados Unidos e a Otan devem entrar em diálogo com a Rússia para desvendar o cerne da crise ucraniana e abordar as preocupações de segurança tanto da Rússia quanto da Ucrânia. 

O Brasil foi o único país do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que votou a favor de uma resolução condenando os ataques à Ucrânia pela Rússia. Os demais membros abstiveram. Como o Brics deveria se posicionar em relação a essa guerra?  

O Brics é um mecanismo de cooperação entre mercados emergentes e países em desenvolvimento, ao mesmo tempo que constitui uma força importante para a evolução da ordem internacional, o aprimoramento da governança global e a defesa do multilateralismo. Os membros do Brics têm posições semelhantes sobre a crise Rússia-Ucrânia, isto é, defender o princípio do respeito à soberania, independência e integridade territorial de todos os países, apoiar a manutenção do ímpeto das conversações de paz em busca da resolução de disputas através do diálogo e das negociações. Na presidência rotativa do Brics este ano, a China vai manter comunicações intensas com o Brasil sobre a salvaguarda conjunta da paz, da segurança, da justiça e da equidade no mundo, a defesa do multilateralismo e a recuperação estável da economia mundial. 

O Brasil condenou a invasão, mas já deixou claro que não concorda com a aplicação de sanções econômicas contra a Rússia. Como a China vê esse posicionamento da diplomacia brasileira?  

O Brasil é um país soberano e independente e nós respeitamos plenamente sua posição. Em relação à crise ucraniana, devo dizer que nossos dois países compartilham posições semelhantes ou idênticas. Ambos os países repudiam, por exemplo, o abuso das sanções. A China sempre se opõe às sanções unilaterais que não tenham fundamento no direito internacional, nem o aval do Conselho de Segurança. A história tem mostrado em repetidas ocasiões que sanções abusivas são como tentar apagar fogo com lenha, ou seja, em vez de resolver o problema, pioram os conflitos. Os Estados Unidos e a Europa estão impondo à Rússia sanções abrangentes e extremas sem precedentes, que ainda se agravam e se expandem. A essência desta ação é tornar a globalização uma "arma", o que terá severos impactos nas finanças, na energia, nos transportes e nas cadeias de suprimentos do mundo, prejudicando a recuperação da economia global e trazendo danos a todos os povos. A China e o Brasil também compartilham a mesma posição de promover a negociação de paz. O diálogo e a negociação são a maneira correta de lidar com questões internacionais e regionais. Ostentar o confronto jamais propicia a paz. A China apela a todos os países para concentrar seus esforços na criação do ambiente e das condições necessárias para o diálogo e a negociação, ao invés de aumentar o conflito jogando mais lenha na fogueira. 

A China apoiará economicamente ou militarmente a Rússia?  

Há quem alegue que a China sabia dos ataques de antemão ou tomou partido na questão da Ucrânia. Tudo isso não passa de desinformação feita com o propósito sinistro de negar os esforços da China e distorcer suas intenções. A posição da China sobre a questão da Ucrânia sempre foi objetiva e imparcial. Nossos julgamentos e manifestações são feitos de forma independente com base nos méritos dessa questão. O que a China forneceu ao povo ucraniano foi ajuda humanitária, e não armas e munições a um lado ou outro. A Rússia é um vizinho importante da China, e os dois Estados soberanos têm o direito de desenvolver suas relações com base no direito internacional. A relação de confiança mútua com a Rússia permite que a China desempenhe um papel especial nos esforços internacionais para promover as conversações de paz. 

 Os Estados Unidos defendem que os países que têm alguma relação com a Rússia, como a China e o Brasil, usem sua influência sobre Moscou para acabar com o a guerra. O senhor avalia que o Brasil pode ajudar de alguma forma?  

O Brasil é uma potência emergente com relevância global e uma força importante na manutenção da paz mundial e na promoção do desenvolvimento global. Certamente pode desempenhar e está desempenhando um papel significativo. A China vai manter uma comunicação frequente com o Brasil sobre a situação regional e internacional para que os dois países possam trabalhar juntos para desempenhar um papel ainda mais construtivo. 

Como a China vê os impactos da guerra no fornecimento global de alimentos e fertilizantes?  

A situação na Ucrânia acentua ainda mais os riscos de crise em alimentos, energia e finanças. Os países do mundo já enfrentam muitas dificuldades, como a pandemia, os conflitos, a recessão, o endividamento, a inflação, o desemprego e a fome. A humanidade está em uma encruzilhada, onde está o futuro? Neste momento, cada país e cada indivíduo deve assumir sua responsabilidade. Devemos prezar pela paz e manter a estabilidade, em vez de praticar um jogo de soma zero e dividir o mundo. Devemos ter respeito mútuo, ser abertos e inclusivos, ao invés de criar confrontos, semear divisões e erguer muros. Devemos ainda nos unir para lidar com os desafios, em vez de agir sempre em interesse próprio e transferir a culpa a terceiros. 

Há quem associe a crise da Ucrânia à questão de Taiwan, dizendo que se a China resolver a questão de Taiwan pela força, será uma ameaça à segurança regional e até mesmo global. Qual é o seu comentário a esse respeito? 

A diferença fundamental entre a questão de Taiwan e a da Ucrânia é que Taiwan é uma parte inseparável da China, portanto se trata de um assunto interno, enquanto a disputa entre Rússia e Ucrânia acontece entre dois Estados soberanos. Não há comparação entre um assunto com o outro. O princípio de “Uma só China" é o consenso geral da comunidade internacional, uma norma reconhecida nos relacionamentos internacionais, assim como uma importante premissa e base política para a China estabelecer e desenvolver relações diplomáticas com qualquer país. Algumas pessoas, enquanto enfatizam o princípio da soberania na questão da Ucrânia, prejudicam a soberania e a integridade territorial da China na questão de Taiwan. É um ato flagrante de duplo padrão. Ao especular "chantagem militar" da parte continental sobre a ilha, criar hostilidade e exagerar tensões, obviamente eles não estão trabalhando para promover a paz e a estabilidade da região. A China sempre defende e contribui para a segurança e estabilidade da região Ásia-Pacífico e do mundo inteiro, e jamais criou problemas. Trabalhamos e continuaremos a trabalhar com a maior boa-fé para solucionar a questão de Taiwan por meios pacíficos. Ninguém está mais preocupado com a paz e tranquilidade de seus compatriotas de Taiwan do que os 1,4 bilhão de chineses, e a segurança e o bem-estar deles dependem inteiramente do desenvolvimento pacífico das relações entre os dois lados do Estreito e da reunificação nacional. O que motivou a tensão atual no Estreito de Taiwan foi a tentativa das autoridades da Ilha de buscar a "independência", desrespeitando os interesses fundamentais dos compatriotas de ambos os lados do Estreito. Aqueles países que equiparam a questão de Taiwan com a crise na Ucrânia devem manter a coerência entre suas palavras e ações. Esperamos que eles coloquem na prática seu compromisso com o princípio de “Uma só China”, se abstenham de emitir sinais errados às forças secessionistas de Taiwan e contribuam de forma positiva para a paz e estabilidade regional. 

https://oglobo.globo.com/mundo/china-brasil-tem-posicoes-semelhantes-ou-identicas-diz-chefe-da-embaixada-chinesa-em-brasilia-sobre-guerra-25447332

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.