O João Cabral "comunista" da era MacCarthy no Itamaraty:
Muitos anos atrás, às vésperas de mais um funesto aniversário do AI-5 – o instrumento da ditadura que cassou meus professores no recém ingressado curso de Ciências Sociais da USP, em parte responsável por minha saída do Brasil um ano depois, para um longo autoexílio na Europa, onde dei prosseguimento a meus estudos –, fui contatado por professores do Rio de Janeiro para colaborar numa obra projetada em torno do fatídico instrumento da ditadura, especificamente seu impacto no Itamaraty.
Argumentei que eu pouco poderia oferecer, pois em 1968, quando foi editado o mais violento ato "jurídico" da ditadura, eu era um jovem estudante, recém aprovado no vestibular da USP, tendo ingressado no Itamaraty dez anos depois, sem muito conhecimento do que havia ocorrido na Casa durante os anos de chumbo do regime militar. Tentei sugerir outros nomes, e cheguei a contatar diversos embaixadores aposentados que haviam sido contemporâneos do arbítrio, alguns até vítimas dele. Nenhum quis aceitar. Sob insistência dos organizadores acabei aceitando colaborar, e fiz algumas pesquisas e recolhi alguns depoimentos sobre o assunto.
Mas, para isso, fui pesquisar alguns casos anteriores, inclusive o da funesta investigação em torno da "célula Bolivar", no Itamaraty dos anos 1950 (segundo governo Vargas, em plena Guerra Fria), quando João Cabral de Melo Neto e outros foram afastados do serviço diplomático, por medidas que depois foram corrigidas pelo STF. Mas eu apenas tratei perfunctoriamente do caso, como se poderá verificar pelo trabalho abaixo.
Transcrevi, na postagem anterior, o excelente artigo do embaixador José Augusto Lindgren Alves, "Religião e liberdades truncadas", que discorre sobre as muitas impropriedades do discurso do chanceler acidental na formatura da turma João Cabral de Melo Neto do Instituto Rio Branco, uma excelente peça analítica, da qual recomendo leitura atenta.
Meu ensaio histórico está disponível, e transcrevo abaixo apenas as partes pertinentes ao "comunista" João Cabral de Melo Neto, remetendo os interessados no AI-5 ao link para o texto completo.
Quanto ao medíocre, indigno e insultuoso discurso do chanceler acidental, ele está aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=eeEawfB7X-g
O anticomunismo no Brasil tem causas reais, em 1935, notadamente, mas muito do anticomunismo posterior é hidrofobia de fanáticos ignorantes que, como os canalhas de Samuel Johnson, se enrolam na bandeira da pátria para suas causas extremistas.
Paulo Roberto de Almeida
Eis a ficha de meu trabalho:
1847. “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: o Itamaraty em tempos de AI-5”, Brasília, 31 dezembro 2007, 32 p. Ensaio histórico sobre os efeitos institucionais e o impacto do AI-5 na política externa para colaboração a livro coletivo. Publicado em Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (orgs.), 'Tempo Negro, temperatura sufocante': Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008; 396 p. ISBN 978-85-7866-002-4; p. 65-89). Relação de Publicados n. 866.
Eis o sumário:
1. Introdução: uma Casa conservadora, dotada de pensamento avançado
2. Pré-história: o Itamaraty nos tempos da Guerra Fria
3. Política Externa Independente: uma vocação recorrente
4. O realinhamento de 1964 a 1967: um interregno incômodo
5. Revolução na revolução: o Itamaraty na tormenta
6. Segurança e desenvolvimento: colaboração, ainda que relutante
7. Pós-história: os efeitos de longo prazo
Referências bibliográficas
Aqui o link para o ensaio na íntegra em Academia.edu:
https://www.academia.edu/44479134/Do_alinhamento_recalcitrante_a_colaboracao_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_
Agora os trechos pertinentes ao João Cabral, nesta seção:
2. Pré-história: o Itamaraty nos tempos da Guerra Fria
O ambiente maniqueísta do pós-guerra, com a necessidade de posicionamento em favor do “Ocidente” na época da Guerra Fria, marcou várias gerações de intelectuais e de expoentes da classe ilustrada, entre os quais se situavam diplomatas e altos funcionários do Estado. Próximos dos intelectuais e acadêmicos progressistas, muitos diplomatas se identificavam com as teses “neutralistas” ou “não-alinhadas” defendidas pelos propugnadores de uma “política externa independente”, em voga no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Tratava-se de uma ruptura com os princípios “tradicionais” da diplomacia conservadora dos anos de entre-guerras e do início da Guerra Fria, quando o alinhamento da política brasileira com os interesses americanos era, no entender dos historiadores, proverbial. O governo Dutra teria sido o protótipo do alinhamento subserviente, embora outras interpretações minimizem a substância mesma da convergência entre as posições diplomáticas do Brasil e as dos EUA. [Nota: Cf. Paulo Roberto de Almeida, “A diplomacia do liberalismo brasileiro”, in José Augusto Guilhon de Albuquerque, Ricardo Seitenfus, Sergio Henrique Nabuco de Castro (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990), 2a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; vol. 1: Crescimento, Modernização e Política Externa, p. 211-262.]
Essa época, marcada pelo maniqueísmo da era McCarthy nos EUA, produziu efeitos no Itamaraty, onde alguns diplomatas foram acusados de serem simpatizantes do Partido Comunista e do bloco socialista, tendo sido objeto de inquérito sumário e sancionados abusivamente, antes de serem absolvidos pela ação da Justiça. Em 1953, com base em denúncia de colega de carreira, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Antonio Houaiss foram submetidos a processo administrativo no Itamaraty, ao passo que outro diplomata, João Cabral de Mello Neto, foi objeto de inquérito a cargo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), como autor de crimes contra a segurança nacional. [Nota: O episódio teve início em 1952, com base em violação de correspondência pessoal por diplomata, que repassou o assunto ao jornalista Carlos Lacerda, o qual, por sua vez, denunciou a existência de uma célula comunista no Itamaraty, “Bolívar”, à qual estariam vinculados vários diplomatas, entre eles o ministro Orlando Leite Ribeiro: “Em inquérito presidido pelo embaixador Hildebrando Accioly, o Ministro Leite Ribeiro e os demais diplomatas foram inocentados da acusação pois se comprovou a inexistência da referida ‘célula’, fruto da maquinação de grupos anti-getulistas e do mesmo diplomata (...) que denunciou meu pai, Cotrim e outros colegas”; correspondência eletrônica do embaixador Guilherme Luiz Leite Ribeiro (Rio de Janeiro, 31/12/2007).]
Eles foram afastados do Itamaraty, sem qualquer defesa, pelo presidente Getúlio Vargas, que os colocou em disponibilidade inativa, não remunerada, com base em sumária “exposição de motivos” do Conselho de Segurança Nacional. A condenação dos quatro primeiros foi anulada em 1954 pelo Supremo Tribunal Federal, por vício de forma e cerceamento da defesa, “menos [João] Cabral, que teve de obter mandado de segurança separado, após o arquivamento do inquérito policial”.[Nota: Correspondência eletrônica do embaixador Amaury Banhos Porto de Oliveira (Campinas, 02/01/2008). Elementos da acusação de 1953 figuram no livro dedicado aos 80 anos de Antonio Houaiss, coordenado por Vasco Mariz: Antonio Houaiss: uma vida: homenagem de amigos e admiradores em comemoração de seus 80 anos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995; ver, em especial, considerações de natureza jurídica sobre o processo no artigo de Evandro Lins e Silva, “Punições por convicção política”, p. 60-73; reproduzido em Comunicação & política, Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, vol. VIII, n. 1, nova série, janeiro-abril 2001, p. 197-206.]
Ler a íntegra do meu ensaio neste link:
https://www.academia.edu/44479134/Do_alinhamento_recalcitrante_a_colaboracao_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_