Paulo Roberto de Almeida
O que é um professor universitário?
Marco Mello
Blog
Sobrevivendo na Ciência, em 12/02/2015
No Brasil, é comum ouvir bizarrices como “O Prof.
Fulano reclama de dar aulas demais, mas o cargo dele é de professor, né?”. Ou
seja, há muita confusão sobre quais seriam as reais atribuições de
um professor universitário. Como esse é o cargo mais importante
na carreira acadêmica,
vale a pena dedicar um post inteiro a
esclarecer essa questão.
É claro que, na prática, o que cada professor faz no dia a dia varia muito entre universidades. Na verdade, há uma enorme variação mesmo entre professores de uma mesma universidade. As atribuições também vão mudando, conforme se progride verticalmente na carreira: substituto > assistente > adjunto > associado > titular. Aqui não vou tocar em problemas como concursos-gincana, acomodação, estabilidade fácil, isonomia salarial, salário defasado em relação à inflação etc., que merecem outros posts. Vou focar no sentido maior do cargo.
Em outros idiomas e culturas, a diferença entre um
professor universitário e outros tipos de professor fica clara já no
vocabulário. Por exemplo, no inglês, o termo professor se aplica apenas ao professor
universitário, enquanto teacher é o
professor de escola e lecturer é o
docente universitário, geralmente com doutorado, mas sem título de professor.
Sim, nos EUA, Inglaterra e outros países, professor, mais do que um cargo,
é um título. No alemão também se diferencia o professor universitário através
do termo Professor, enquanto quem dá aulas em escolas é um Lehrer e quem dá aulas na universidade sem ter o
título de professor é um Dozent. Não é
uma questão de qual tipo de professor é melhor do que o outro, blablabla. Cada
professor tem o seu papel no sistema educacional e todos são importantes. É
apenas uma questão de diferenciar as carreiras e títulos, para se definir
claramente o que se espera de cada professor.
Então o que diferenciaria o
professor universitário dos outros? Simples: esse cargo foi inventado para ser
ocupado por profissionais que associam pesquisa e ensino. Sim, essas duas
atividades são indissociáveis no conceito original de professor universitário.
Mas, por que, Marco? Porque espera-se que um professor universitário esteja
sempre na vanguarda da sua área. Espera-se que ele atue na formação de
profissionais de nível superior, ensinando-lhes não apenas o conhecimento já
sedimentado, mas também as novidades e macetes.
Para se formar em uma profissão de nível superior, o
aluno tem que ser apresentado tanto aos fundamentos quanto à vanguarda.
Acima de tudo, espera-se que um professor universitário produza ele mesmo
algumas novidades. Sim, um professor universitário tem a obrigação não apenas
de transmitir, mas também de produzir conhecimento. E a transmissão de
conhecimento se dá principalmente em sala de aula, passando informações
consolidadas para os aspiras, e também divulgando descobertas em
revistas técnicas indexadas e revisadas por pares. Então um
professor universitário tem que fazer pesquisa também? Sim, claro! Ninguém
se atualiza tanto em uma área, quanto alguém que precisa disso para fazer as
próprias pesquisas, porque ama a ciência.
And the plot thickens… Pelas leis brasileiras
federais e estaduais, a carreia de professor universitário envolve, em
geral, cinco pilares:
§
Ensino:
coordenação e participação em disciplinas de
graduação e pós-graduação, presenciais ou à distância.
§
Pesquisa:
investigação científica ou tecnológica para produção de conhecimento. Na
verdade, a área da pesquisa envolve mais um monte de coisas além da
investigação e publicação, como revisão de artigos, editoração de
revistas científicas, organização de congressos, administração de sociedades
científicas, consultoria para agências de fomento, assessoria à
imprensa, assessoria política dentro da área em que é perito e muito mais.
§
Orientação: formação de novos cientistas através
de estágios e projetos orientados de iniciação científica, mestrado,
doutorado e pós-doutorado.
§
Extensão:
assessoria e divulgação de conhecimento científico e técnico para o público
externo à universidade através de consultoria, palestras, cursos, exposições,
museus etc.
§
Administração: cargos de chefia em geral, cargos em órgão representativos da universidade
(câmaras, conselhos, congregações), gerenciamento de projetos, captação de
verbas externas, contabilidade, direção de laboratórios, etc.
Dependendo da universidade e
do seu regimento interno, espera-se que o professor universitário envolva-se com
no mínimo dois ou três desses pilares. Os melhores professores acabam se
envolvendo com todos. O único pilar obrigatório é o ensino. Só fica
desobrigado parcial ou totalmente de dar aulas quem ocupa altos cargos
administrativos, como chefe de departamento, diretor de instituto, pró-reitor
ou reitor. Significa que, na prática, nem todo professor universitário é
obrigado a fazer pesquisa.
Vamos destrinchar um
exemplo mais concreto: as universidades federais brasileiras. De acordo
com a lei que rege essas instituições, o professor universitário “padrão”
(sem cargo de chefia ou outras condicionantes) é obrigado a dar
de 8 a 12 créditos por semestre. Cada crédito representa
mais ou menos 15 h em sala de aula. Ou seja, o sujeito é obrigado a passar
dentro de sala entre 120 e 180 h por semestre. Um professor dedicado, que
de fato gasta tempo e energia com as aulas, precisa de no mínimo 2 h de
preparação (slides, leituras, material biológico para aulas práticas,
preparação de computadores etc.) para cada 1 h em sala. Vamos considerar
que uma disciplina obrigatória de graduação tem 4 créditos (60 h) e
costuma ser organizada de forma a ocupar 4 h em sala por semana. Logo, das
40 h de trabalho semanais determinadas por lei, o professor acaba passando
pelo menos 12 h envolvido com a disciplina. Isso, fora as horas
gastas com atendimento de alunos e correção de trabalhos. Assim, a conta pode
facilmente chegar a 16 h por semana ocupadas com cada disciplina e
piora na época das provas e entrega de trabalhos, se o professor não contar com
ajudantes. Supondo uma turma com cerca de 60 alunos, imaginem a
seriedade da ralação. E, já que o mínimo são 8 créditos, o que nós,
professores, enfrentamos é isso vezes dois, pelo menos.
Para se ocupar com 2 disciplinas de 4 créditos
por semestre, totalizando 8 créditos, e realmente ministrá-las com qualidade, o
professor universitário não poderia se envolver com mais nada! A quem estamos enganando? A
única forma de aliviar essa carga é através da ajuda de pós-graduandos que
atuam como tutores e graduandos que atuam como monitores. Mas nem todo
professor ou toda disciplina contam com o apoio de auxiliares. Os tutores
remunerados conhecidos internacionalmente como “TAs” (teaching assistants), comuns nos EUA, Alemanha, França
e UK, chegaram a ter uma versão brasileira temporária durante o Reuni. Só
que o programa foi planejado para durar apenas cinco anos. Só para variar,
nada é pensado a longo prazo neste país, tudo é paliativo, tudo
é jeitinho. Como alguém pode se dedicar de verdade à pesquisa de ponta
tendo sobre os ombros o peso de uma carga didática massacrante como essa?
Como alguém pode fazer extensão e atender de outras formas o mundo real fora da
Academia, sendo obrigado a dar aulas igual a um burro de carga? Na
verdade, como seria possível conciliar qualquer um dos outros quatro pilares da
carreira com um ensino de qualidade em grande quantidade?
O Brasil tem um verdadeiro fetiche pela sala de aula!
Em universidades de ponta, a carga semestral obrigatória do professor não
ultrapassa 4 créditos. Na prática, os professores e alunos passam muito menos
tempo em sala, justamente porque se dá mais valor à independência dos aspiras.
O bom aluno do ensino superior gasta a maior parte do seu tempo estudando por conta própria,
sozinho ou em grupo, através de tarefas orientadas ou leitura espontânea.
O momento em sala com o professor na aula teórica (lecture ouVorlesung) serve para apresentar ou consolidar o
conteúdo principal, receber orientações, tirar dúvidas e passar tarefas.
No Brasil, castramos a individualidade, a criatividade,
a autonomia, a iniciativa e o livre pensamento, porque insistimos
em adestrar os alunos em cativeiro. Ok, estou divagando. Voltando ao
ponto de vista do professor, dá para entender porque nunca chegaremos ao mesmo nível de
qualidade em ensino e pesquisa do primeiro mundo? Ficou claro
porque estamos fadados a enxugar gelo e ficar sempre dois passos atrás dos
nossos colegas mais afortunados?
Por favor, nunca mais diga que
um professor universitário brasileiro não pode reclamar de dar aulas demais,
porque “tem cargo de professor”. Isso é tão estúpido quanto dizer que um
professor universitário que tem bolsa de produtividade está desrespeitando
a dedicação exclusiva, porque é também “pesquisador do CNPq”.
Leia também:
Fonte: PRISM.
Blog criado em 2012, onde
publico textos escritos por mim, Prof. Marco Mello, e
colaboradores eventuais. A origem do blog está em pequenos manuais que eu
escrevia para os meus alunos desde 2007.
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